Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1

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Meu Itinerário Espiritual Volume I


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MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Meu Itinerário Espiritual Compilação de relatos autobiográficos de

Plinio Corrêa de Oliveira

Volume I

~ Instituto Plinio Corrêa de Oliveira São Paulo, 2021 – 1ª edição


Responsabilidade editorial Associação Instituto Plinio Corrêa de Oliveira Rua Maranhão, 341 Bairro Higienópolis São Paulo-SP CEP 01240-001 https://www.ipco.org.br Editora Petrus Editora Ltda. Rua Javaés, 681 – 1º andar – Bom Retiro 01130-010 – São Paulo – SP Fones: 11-3331-4522 / 11-2843-9487 Whatsapp: 11-9-9459-9796 Site: www.livrariapetrus.com.br e-mail: atendimento@livrariapetrus.com.br e-mail: consignacao@livrariapetrus.com.br Pesquisa, compilação e adaptação Enrique Loaiza Revisão José Antonio Ureta Fernando de Oliveira Diniz Projeto gráfico e arte final Luis Guillermo Arroyave © Copyright 2021 Associação Instituto Plinio Corrêa de Oliveira ISBN 978-65-89510-08-6 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão deste livro, no todo ou em partes, por quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito da Associação Instituto Plinio Corrêa de Oliveira. 4

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Sumário SIGLAS DAS FONTES BIBLIOGRÁFICAS 9 AO LEITOR 13 INTRODUÇÃO 29 1ª PARTE: O MENINO PLINIO 33 O TEMPERAMENTO

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Confluência do temperamento dos antepassados paternos e maternos 33 Síntese do temperamento nativo 34 Emotividade sem vibrações 37 Propensão para a calma, para o sossego e para degustar a normalidade da vida 41 Propensão para viver numa clave transcendente, aristocrática e grandiosa 45 Propensão para a reflexão, a seriedade e a gravidade 48 Propensão para a lógica e a clareza de expressão 51 Harmonia entre contemplação e ação 54 Propensão para a ordem e para a reverência à autoridade 56 Propensão para a radicalidade e para a luta 57 Propensão para a truculência e para as soluções “transiberianas” 59 Equilíbrio temperamental resultante da temperança e do gosto pelos opostos harmônicos e pela unidade dentro da variedade 64 Um reflexo particular da harmonia temperamental: o equilíbrio entre pessimismo e otimismo, entre confiança e desconfiança 70 Carência de “nós” temperamentais 74 OS SENTIDOS FÍSICOS E A SENSIBILIDADE

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Correlação entre disposições físicas, as inclinações da sensibilidade e os traços psicológicos 75 Os cinco sentidos e as preferências sensoriais 77 O SENTIDO DA VISTA 77 Opção por cores, mais do que pelas formas Predileção pelo vermelho 79 O SENTIDO DO OUVIDO

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O SENTIDO DO OLFATO O SENTIDO DO TATO

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O SENTIDO DO PALADAR

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Preferência pelos sabores fortes e pelas porções grandes 88 Preferência pelos alimentos elaborados 89 Predileção pelos pães alemães e pela cerveja 91 Alimentos de que se gosta ou se rejeita por razões físicas ou metafísicas 93 Alcance simbólico do paladar 95 Correlação entre o apetite mental e o apetite físico, entre a vontade de saber e a vontade de comer 97 Correlação entre o prazer do corpo e o prazer da alma, entre a sede física e a sede metafísica 99 Na gastronomia e na leitura do jornal, os mesmos princípios se refletem 103 A SENSIBILIDADE DA ALMA – SENSIBILIDADE AO PULCHRUM Opção preferencial pelo pulchrum 103 O reverso da medalha: incapacidade de elaborar 104 Gosto em analisar os ambientes 105 Gosto pela largueza física e pela bonomia 106 Senso vivíssimo da própria dignidade 109 ALGUNS FEITIOS, GOSTOS, HÁBITOS E MODOS DE SER

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Inteligência intuitiva, mas ruminante e amiga de grandes construções feitas a partir de pequenas observações 110 Modo de escrever: frases longas, papel horizontal e prancheta, sentado numa poltrona 118 Equilíbrio entre mobilidade e imobilidade 119 SOCIABILIDADE

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Propensão brasileira e “luciliana” a estabelecer vínculos afetivos, a dar-se aos demais e a tratá-los com benevolência 121 Trato cerimonioso e cortês 125 Solenidade que impõe respeito 127 A INOCÊNCIA PRIMEVA 129 As manifestações primigênias da inocência 129 Ver tudo pelos seus aspectos maravilhosos 129 Saudades de um mundo paradisíaco

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Amor à arquetipia 131 Aspiração pelo mundo angélico e pelos horizontes da Fé 133 6

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Atrativo pela boa ordenação da sociedade temporal e pela cultura 138 As canduras de uma alma inocente 141 A FONTE INTERNA DA INOCÊNCIA: O “SENSO DO SER” E SEUS CORRELATOS O “senso do ser”

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144

A vontade de explicitar 147 O senso metafísico 148 O “senso do absoluto”

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O senso hierárquico 155 O senso do sacral

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OS FRUTOS DA INOCÊNCIA 161 Ausência de qualquer forma de inveja 161 Alegria pela harmonia entre a ordem interna e externa e a facilidade para fazer correlações 162 Certezas sólidas, filhas da admiração e fundadas nas evidências fornecidas pelos sentidos e na retidão interna da alma 168 Uma axiologia sã e firme: a ordem do universo é fundamentalmente boa 170 Felicidade de situação 171

2ª PARTE: A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 179 AS PRIMEIRAS MOÇÕES DA GRAÇA, FRUTO DO BATISMO

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Da inocência ao amor de Jesus Cristo 179 O pórtico de entrada da vida espiritual de Dr. Plinio: a devoção ao Sagrado Coração de Jesus ensinada por Dona Lucilia 182 O crescente amor à Igreja Católica 187 O itinerário desde os movimentos incipientes e inconscientes de piedade, até a comunhão frequente 192 O amadurecimento do amor pela ordem monárquica do universo 197 A aurora do entusiasmo pela boa ordenação da ordem temporal e pela Cristandade 200 O desenvolvimento do amor pela lógica 205 OS PRIMEIROS COMBATES ESPIRITUAIS

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O combate contra a atração pelo menos elevado e por um mundo aprazível sem pecado 210 O combate contra a tentação da mediocridade 215 O combate para preservar uma criteriologia inocente e cheia de Fé 218


O combate externo contra a visão prosaica e interesseira da vida e contra o espírito hollywoodiano 223 O combate para preservar o modo de ser cerimonioso, fazer-se respeitar e obter uma situação de superioridade 239 A formação de um primeiro filtro interior, católico e contra-revolucionário, anti-“heresia branca” 242 A cruz do isolamento 251 As primeiras noções da própria miséria

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O combate contra a falta de vigilância 254 O combate contra a preguiça e o amor crescente à combatividade 256 NOSSA SENHORA DAS VITÓRIAS ENTRA NO CAMPO DE BATALHA 278 A bondade de Dona Lucilia, pórtico da devoção a Nossa Senhora 278 A graça de Nossa Senhora Auxiliadora 280 As duas formas de auxílio de Nossa Senhora 289

ÍNDICE ONOMÁSTICO 291 ÍNDICE DE LUGARES 295

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Siglas das Fontes Bibliográficas Almoço ou Jantar (Conversas gravadas durante as refeições) CA (“Comissão Americana”: conversas com amigos da TFP norte-americana presentes em São Paulo a título de intercâmbio cultural) CB (Comissão de Estudos assuntos referentes à opinião pública) CEP (Comissão de Estudos que se reunia na antiga sede da rua Pará, em geral aos sábados de manhã, para estudos de ação na opinião pública) Chá (Conversas com discípulos durante o chá da tarde) CM (“Comissão Médica”: reunião de estudos para médicos da TFP e agregados) CSN (“Conversa de Sábado à Noite”: conversas com discípulos, realizadas regularmente aos sábados à noite na residência de Dr. Plinio) Despachinho (Despachos com secretários sobre assuntos diversos ligados à direção da TFP e ao relacionamento com as entidades afins do exterior) EANS (“Êremo do Amparo de Nossa Senhora”: reuniões realizadas na casa de estudos localizada na Fazenda do Morro Alto, no município de Amparo-SP) EE (“Êremo de Elias”: conversas e despachos realizados para os componentes da sede de estudo e trabalho no bairro de Itaquera, em São Paulo) ENSDP (“Êremo Nossa Senhora da Divina Providência”: conversas e despachos realizados para os componentes da sede de trabalho localizada na rua Atibaia, bairro Perdizes, em São Paulo) EPS (“Êremo Praesto Sum”: reuniões de estudo e formação para jovens da sede da TFP localizada no bairro de Santana, em São Paulo) ESB (“Êremo de São Bento”: reuniões de estudo e formação para jovens da sede da TFP localizada na rua Dom Domingos de Silos, em São Paulo) ESM (“Êremo de São Miguel”: reuniões de estudo e formação para jovens da sede da TFP localizada na cidade de Belo Horizonte-MG) EVP (Conversas com pessoas da direção da TFP) JG (“Jasna Gora”: sede onde se realizavam convenções, semanas de estudo, simpósios e reuniões regulares, mais tarde transformada em Êremo, passando a chamar “Êremo de Jasna Gora”) MNF (Círculo de estudos com pessoas mais especialmente aptas para abordagem dos assuntos filosófico-doutrinários atinentes à escola de pensamento da TFP) NC (Palestras para neocooperadores) Palavrinha (Preleções rápidas, de 10 a 15 minutos, durante o atendimento de grupos diversos de cooperadores da TFP) SIGLAS DAS FONTES BIBLIOGRÁFICAS 9


Palestra (Palestras para sócios e cooperadores da TFP que fogem da classificação habitual) Percurso (Comentários gravados durante percursos de automóvel) RE (Reuniões feitas em caráter extraordinário, sobre temas diversos que fogem da rotina) RN (Reuniões regulares para os veteranos da TFP) RR (“Reunião de Recortes”: reunião semanal e plenária da TFP em que eram analisados, numa visão de conjunto, os principais acontecimentos nacionais e internacionais) SD (“Santo do Dia”: reuniões plenárias e regulares de formação dos sócios e cooperadores, realizadas no auditório da TFP na cidade de São Paulo) SEFAC (“Semana Especializada de Formação Anticomunista”: simpósios de formação para jovens estudantes durante períodos de férias ou grandes feriados, mesclados com entretenimento e lazer) SRM (“Sede do Reino de Maria”: reuniões realizadas na sede central da TFP, em São Paulo)

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Plinio Corrêa de Oliveira durante uma reunião plenária de sócios e cooperadores, realizada no auditório da TFP em São Paulo.


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Ao leitor

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pós o falecimento de Plinio Corrêa de Oliveira, em 1995, seus aniversários têm sido ocasião para a publicação, pela Editora Artpress, de diversos livros que dão a conhecer ao público aspectos pouco conhecidos de sua personalidade e de sua obra. Em outubro de 2005, no 10° aniversário de seu passamento, veio à luz a obra Plinio Corrêa de Oliveira, dez anos depois, contendo relatos e resenhas escritos por 17 personalidades que tinham privado com Dr. Plinio – como seu primo Dr. Adolpho Lindenberg, o Príncipe Dom Luiz de Orleans e Bragança, ou seu secretário, Sr. Fernando Antúnez – ou que tinham podido apreciar à distância a repercussão de sua ação contra-revolucionária – como o Prof. Roberto de Mattei, o Conde de Proença-a-Velha, o embaixador Armando Valladares, o Sr. Morton Blackwell ou o recentemente falecido líder católico italiano Giovanni Cantoni1. Em dezembro de 2008, por ocasião do 100° aniversário de seu nascimento, foi publicado o livro A Inocência primeva e a contemplação sacral do universo no pensamento de Plinio Corrêa de Oliveira, contendo uma coletânea de textos inéditos, de caráter filosófico e psicológico, que desvendam a matriz de sua obra intelectual e o mostram como um grande contemplativo. O 20° aniversário de sua morte foi ocasião para o lançamento, em outubro de 2015, do denso trabalho “Minha Vida Pública – Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira”. Como o título o indica, a obra relata o bom combate travado ao longo de setenta anos em prol da causa da Igreja e da civilização cristã pelo grande homem de ação que foi ele, a ponto de ser merecidamente galardoado por dois professores universitários, em obras escritas a seu respeito, com o título de “Cruzado do Século XX”2, e por outro como o “Arauto da Contra-Revolução”3. 1 Além das pessoas citadas, escreveram artigos o Pe. David Francisquini e os Srs. Mario Navarro da Costa, Leo Daniele, Alejandro Ezcurra, Carlos Schaffer, John Horvat, Benoît Bemelmans, Antanas Racas, Bett Decker e Jacek Bartyzel. 2 ROBERTO DE MATTEI, “O Cruzado do século XX”, com prefácio do Cardeal Alfons Maria STICKLER S.D.B., Livraria Civilização Editora, Porto 1997. LIZANIAS DE SOUZA LIMA, “Plinio Corrêa de Oliveira. Um cruzado do século XX, Universidade de São Paulo, 1984 3 LUÍS FELIPE LOUREIRO FORESTI , “O Arauto da Contra-Revolução: O pensamento conservador de Plinio Corrêa de Oliveira” (1968 – 1976), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2013 AO LEITOR 13


A excelente acolhida que tiveram esses empreendimentos editoriais, assim como o crescente interesse pela personalidade de Plinio Corrêa de Oliveira despertado por elas, levou a alguns leitores a solicitar a elaboração de um trabalho, nos moldes dos precedentes, que expusesse sua vida espiritual. A proximidade do 25° aniversário do chamado de Deus a esse grandíssimo devoto de Nossa Senhora servia-lhes de grande argumento para insistir nessa publicação. Numa primeira abordagem, tal empreitada pareceu quase impossível de ser assumida, e isso por vários motivos. O primeiro deles é que todo homem tem uma grande parte de mistério, até para seus mais íntimos; e isso não somente do ponto de vista natural – quem pode discernir os refolhos mais recônditos da psicologia de uma pessoa? – mas também do ponto de vista sobrenatural, posto que mais misteriosas ainda são as relações de uma alma humana com Deus – ao ponto de dar fundamento ao adágio “de internis nec Ecclesia judicat”. Se isso é válido para os homens comuns – muitos dos quais são “almas sem reservas nem nobreza, abertas a todos os ventos, a todos os olhares, a todos os passos, como uma vulgar praça pública”4 – quanto mais é verdadeiro para os homens fora do comum, para não dizer extraordinários, cuja alma é como uma montanha tão alta que o seu cimo se perde atrás das nuvens! No caso específico de Plinio Corrêa de Oliveira, esse lado misterioso de todo homem era reforçado pelo fato de ele ser, pelo lado materno, profundamente paulista e, pelo lado paterno, profundamente pernambucano. E, apesar de sua loquacidade nordestina, herdada de seu pai, ele considerava muito aquela forma de solenidade que caracterizava as famílias tradicionais de São Paulo e Recife. Traço psicológico esse que nele era acrescido do fato de que se formou numa época em que todo homem que se prezava tinha de ter uma nota de senhorio, o que comportava, por sua vez, saber colocar distância com os interlocutores5. Tanto mais quanto, naqueles idos do início do último século (que não conheciam Twitter, Facebook nem Instagram) levantava-se uma barreira infranqueável entre a vida pública e a vida privada das pessoas, esta última ficando em uma área acessível apenas aos mais íntimos. O mais difícil, sem dúvida, era o fato de que, após a leitura de “A alma de todo apostolado” de Dom Chautard6, Dr. Plinio tinha feito um esforço 4 “Pater non mea voluntas, sed tua fiat”, “Catolicismo”, n° 40, abril de 1954 5 Ver “Meu primo Plinio – Aportes biográficos de Adolpho Lindenberg”. 6 Livro de autoria de Dom Jean-Baptiste Chautard (1858-1935), sacerdote e religioso na Abadia de Aiguebelle, da Ordem de Cister, e mais tarde Abade da Trapa de Sept-Fons (França). A obra tem como pressuposto o princípio de que a ação apostólica nasce do 14

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especial para combater toda forma de vaidade, de onde uma tendência a não falar de si mesmo, nem de suas obras, e de ser muito reservado quando era forçado a fazê-lo, minimizando seu significado ou dimensão. Dessa maneira, pode-se dizer que, por mais de duas décadas, o mundo interior de Plinio Corrêa de Oliveira permaneceu praticamente desconhecido para aqueles que constituíram o primeiro círculo de seus discípulos e que são conhecidos internamente como o “grupo da Pará”7 (com a exceção, relativa, de seu primo Adolpho Lindenberg, por razões fáceis de intuir). Várias circunstâncias, porém, o obrigaram, ao longo de sua vida, a sair dessa reserva que se tinha imposto – e são elas que permitem hoje apresentar aos leitores este trabalho. O primeiro fator que levou Plinio Corrêa de Oliveira a falar de si mesmo foi a necessidade de formar no espírito contra-revolucionário aqueles que integraram o círculo dos discípulos remanescentes daquele primeiro grupo. Posto que as duas Guerras Mundiais haviam derrubado a sociedade tradicional, não era suficiente ensinar a esses novatos os princípios teóricos da doutrina católica e da doutrina gnóstica da Revolução, mas era necessário descrever como tais princípios eram vividos pelos indivíduos e pelas sociedades e por que mecanismos psicológicos eles tinham passado do campo das tendências profundas para aquele das ideias e dessas para os fatos. O que impunha a Dr. Plinio, para melhor se fazer entender, utilizar das descrições de pessoas e de ambientes culturais onde se tinha dado tal embate entre a sociedade tradicional europeizada e a nova sociedade segundo o modelo de Hollywood. Obviamente que, tendo sido catedrático de História, ele se servia de muitos exemplos históricos para descrever as personalidades, os ambientes e as instituições até o fim do século XIX. Mas, quando se tratava de descrever as mudanças havidas no próprio século XX, era forçado a recorrer às suas próprias recordações, nas quais, necessariamente, ocupavam o primeiro lugar sua família, seus círculos sociais e os ambientes que ele tinha frequentado. E como ele mesmo tinha sido frequentemente protagonista dos casos que ele contava, isso redundava não poucas vezes em breves alusões às suas próprias reações interiores, as quais desvendavam ou faziam sair da penumbra alguns cantos de sua alma até então pouco conhecidos ou de todo em todo desconhecidos. Outro fator que forçou Plinio Corrêa de Oliveira a sair da reserva a respeito de si mesmo foi a mudança havida na psicologia da geração transbordamento de uma intensa vida interior, sem a qual qualquer obra de apostolado é estéril e até contraproducente. 7 Ver “Minha Vida Pública”, Parte V, c. XIII, “Estruturação e consolidação do pequeno grupo”, p. 316 e ss. AO LEITOR 15


que chegou à idade adulta após a Segunda Guerra Mundial, mudança que se acentuou ainda mais nas gerações posteriores. Se até 1945 a atenção das pessoas voltava-se preponderantemente para o que acontecia fora delas, focalizando os acontecimentos externos de ordem político-social ou religioso, a partir dos anos 1950 o interesse da geração rock‘n roll foi se centrando cada vez mais nos próprios problemas interiores e nos tipos humanos que essa geração poderia imitar (as correntes de esquerda também foram afetadas por esse fenômeno, com o aparecimento de novos militantes desinteressados pela ortodoxia marxista de cunho econômico e focalizados na liberação sexual e temas conexos). Dr. Plinio percebia que os auditórios ou círculos aos quais se dirigia eram cada vez mais apetentes de exposições pondo em foco a dimensão psicológica do confronto entre a Revolução e a Contra-Revolução e os respectivos tipos humanos. Naquela época, tal confronto exprimia-se na opção entre ser um varão católico ou um hippie, o que importava em dar maior atenção às questões de vida espiritual. Sendo visto ele próprio pelos seus ouvintes como um modelo de contra-revolucionário, pouco a pouco foi aumentando o número de perguntas envolvendo sua própria pessoa: como ele via as coisas, como reagia diante das situações, quais eram suas preferências pessoais em tais e tais áreas, como se tinha formado sua mentalidade etc.8 Vendo que esse interesse não era fruto de uma curiosidade frívola ou malsã, mas tinha como fundamento último a procura de um modelo espiritual, e notando que seus relatos despertavam nos jovens auditores desejos de aperfeiçoamento espiritual e de maior dedicação à causa da Contra-Revolução, Plinio Corrêa de Oliveira considerou seu dever entreabrir para eles o “horto fechado” de seu mundo interior e do trabalho que a graça tinha desenvolvido na sua alma. Na última década de sua vida, ele teve até que submeter-se, nas reuniões com os juveníssimos, ao exercício dos “fatinhos”: terminada sua exposição sobre um tema geral, pediam para ele relatar algum episódio de sua vida. Em geral, uma pessoa mais antiga na TFP que estivesse ali 8 Por vezes, Dr. Plinio era obrigado a fazê-lo simplesmente para conservar a atenção dos circunstantes: “Na geração da maior parte dos senhores e nas gerações anteriores, fixou-se o princípio de que sempre que a atenção se detém longamente num assunto, isso gera tédio. E a necessidade de variar, variar, variar, tornou-se um vício. Eu não posso corrigir esse vício agarrando as pessoas, metendo um joelho no peito e obrigando a prestar atenção. E, portanto, preciso entrar numa espécie de combinação com o tédio, de maneira a mudar de assunto tão logo o tédio se apresenta. Quase que minhas reuniões são duelos – às vezes bem sucedidos, muitas vezes mal sucedidos – contra o tédio. Dou um fatinho, conto uma coisa, mudo um pouco de tema etc., para ver se eu ventilo o tédio, para voltar depois ao assunto a respeito do qual acho necessário tratar” (SD 31/10/79). 16

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presente sugeria algum aspecto de sua vida ou de sua alma relacionados com o que tinha sido tratado9. Finalmente, uma consideração de ordem teológica levou Dr. Plinio a contrariar a tendência natural de sua geração a não franquear o interior da alma a pessoas alheias ao círculo dos mais íntimos. Tendo a Revolução se desenvolvido prioritariamente na esfera temporal – no campo artístico, com a Renascença; no campo sofístico com o Iluminismo; no campo político com a Revolução Francesa; no campo econômico e social com o Comunismo, reciclado em Revolução cultural e ecológica a partir de Maio de 1968 – com a única exceção do Protestantismo (que, aliás, foi uma derrota, na medida em que a Contra-Reforma e o Concílio de Trento revigoraram o catolicismo), ele desenvolveu organicamente, como antídoto à Revolução, uma espiritualidade que pôs em relevo o papel da criação natural e da sociedade humana para o conhecimento de Deus e a reta formação das almas. Com a preocupação de preservar o espírito de seus discípulos de qualquer influência revolucionária, e de formá-los para que pudessem ser eficazes instrumentos da Contra-Revolução na esfera temporal, Plinio Corrêa de Oliveira acabou por transformar-se, sem nenhum intuito prévio nesse sentido, no fundador e no guia espiritual de uma nova espiritualidade, e de uma família de almas congregada, como uma estirpe, em torno dela. Uma espiritualidade que põe em relevo os aspectos temporais e metafísicos da realidade como trampolim para subir até Deus. Em sua obra “O Cruzado do século XX”, publicada pouco depois do falecimento de Dr. Plinio, o historiador Roberto de Mattei já comentava que “não se pode negar a Plinio Corrêa de Oliveira as características de um fundador. Fundador, não porque quis impor-se neste papel, mas porque assim o veem espontaneamente milhares de católicos em todo o mundo. Fundador em sentido lato, não tanto de uma ordem específica como, mais amplamente, de uma escola espiritual e intelectual e de um estilo de vida de luta aberta contra a Revolução”, escola espiritual esta que “se caracterizou, de maneira cada vez mais profunda, como uma ‘família de almas’ não isenta de analogias com uma ‘família religiosa’”. O conhecido historiador fundamenta essa asserção no verbete “Fundadores” do Pe. Michel Olphé-Galliard S.J. do “Dictionnaire de spiritualité” que afirma o seguinte: “Tenham sido canonizados ou não, os fundadores são os portadores de um carisma que os habilita a suscitar uma família espiritual destinada 9 Salvo uma pesquisa mais aprofundada, o mais antigo pedido nesse sentido, registrado nos arquivos, data do SD de 14/02/81. AO LEITOR 17


a perpetuar a seiva da sua própria santidade. A autenticidade desta última reconhece-se, quer pela fecundidade da sua fundação, quer pelo exemplo da sua experiência pessoal. [...] A imitação do fundador nada tem a ver com o culto da personalidade que certas ideologias modernas adotam. Ela provém do princípio de mediação segundo o qual toda a paternidade vem de Deus (Ef 3,5).”10 Conta-se do humilíssimo São Francisco de Assis que, um dia em que se esquentava junto com seus frades em torno do fogo, um noviço picado pela mosca da ciência livresca pediu-lhe licença para possuir um exemplar dos Salmos de Davi. O santo respondeu: “Querido filho, se hoje você possui uma Salmódia, amanhã quererás possuir um breviário”. E, tomado de uma paixão ardente, pegou cinzas nas suas mãos e, esfregando-as na cabeça do noviço letrado como se a lavasse, repetia enfaticamente: “Eu é quem sou teu breviário, eu é quem sou teu breviário!”11 Outro exemplo eloquente foi-nos fornecido por São Pedro Julião Eymard, o fundador dos Sacramentinos, que chegou a queixar-se diante de seus filhos espirituais: “Não compreendeis o favor, a graça que o Senhor vos faz ao colocá-los junto da própria nascente do Instituto. Não me perguntais nada, não vos valeis disso. Eu também sou mortal, e quando não estiver mais aqui, nenhum outro terá as graças do fundador”12. Ciente de sua paternidade espiritual, também Plinio Corrêa de Oliveira sentiu-se na necessidade de desvendar as graças sobrenaturais que tinha recebido ao longo de sua vida (assim como as provações que as tinham motivado, na maioria dos casos) para que seus discípulos pudessem compreender e haurir o carisma fundacional que a Providência lhe tinha concedido, fazendo dele um paladino da Contra-Revolução. Disso tudo resultou que, nas milhares de páginas extraídas das gravações de reuniões e conversas, há uma quantidade ponderável de textos que abordam, às vezes circunstanciadamente, às vezes somente de passagem, o interior da alma de Plinio Corrêa de Oliveira, fornecendo elementos que ajudam a construir o grande edifício de sua espiritualidade e de sua trajetória espiritual. Esse acervo permitia, então, assumir a empreitada solicitada pelos leitores dos volumes precedentes. 10 Colunas 102-103. 11 Johannes Joergenssen, “Saint François d’Assise, sa vie et son oeuvre”, Ed. Perrin, Paris, 1920, p. 346. 12 Francis Trochu, “Le Bienhereux Pierre-Julien Eymard, d’après ses écrits, son Procès de béatification et de nombreux documents inédits”, Librairie Catholique Emmanuel Vitte, Paris, 1949. 18

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Mas apareceu o problema oposto: não tendo Dr. Plinio apresentado uma síntese geral de sua vida espiritual, como fazer a seleção e em que ordem apresentá-la, de modo a fornecer aos leitores que não o conheceram uma ideia global e objetiva de sua espiritualidade, posto que ela se manifestava tão profunda, variada e rica em aspectos até mesmo harmonicamente opostos? Pareceu que o melhor seria buscar inspiração nos manuais tradicionais de vida espiritual13, à procura de uma “grelha de interpretação” adequada. Essa intuição foi boa. Mas para que o resultado seja compreendido pelos leitores, torna-se necessário fornecer um breve sumário desses manuais. *** A santidade consiste na perfeição da caridade, ou seja, no amor a Deus e no amor ao próximo que dele decorre. Ela pode encontrar-se em três graus fundamentais: incipiente, proficiente e perfeito14, o que supõe, naturalmente, um desenvolvimento da vida espiritual, uma trajetória. Daí o título que foi dado a esta obra: “A minha trajetória espiritual”. “Em toda vida”, ensina Tanquerey, “há um tríplice elemento: um princípio vital, que é por assim dizer a fonte da vida; algumas faculdades que permitem produzir atos vitais; e, por fim, os atos que são seu desenvolvimento e contribuem para seu crescimento. Na ordem sobrenatural, ao viver Deus em nós, Ele produz em nossas almas esses três elementos. Primeiro, Ele nos comunica a graça habitual, que desempenha em nosso interior o papel de princípio vital sobrenatural, como que divinizando a própria substância de nossa alma e tornando-a capaz, ainda que de maneira longínqua, à visão beatífica e aos atos que a preparam. Desta graça, decorrem as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo que aperfeiçoam nossas faculdades e nos dão o poder imediato de fazer atos deiformes, sobrenaturais e meritórios. Para pôr em marcha essas faculdades, Deus nos concede graças atuais que iluminam nossa inteligência, fortalecem nossa vontade, nos ajudam a agir de maneira sobrenatural e a aumentar dessa maneira o capital de graça habitual que nos foi outorgada”. 13 Dois manuais serviram especialmente para isso: o famoso “Compêndio de Teologia Ascética e Mística” do Pe. Adolphe Tanquerey PSS e “Teologia da Perfección Cristiana” do Pe. Antonio Royo Marín OP. Ambos autores têm a vantagem de fundarem sua teologia espiritual em Santo Tomás de Aquino. 14 “Caritas cum fuerit nata, nutritur; cum fuerit nutrita, roboratur; cum fuerit roborata, perfecitur”, diz Santo Agostinho, assim glosado por Santo Tomás na “Summa”: “A caridade, uma vez nascida, cresce, o que é próprio dos incipientes; uma vez crescida, fortifica-se, o que é próprio dos que progridem; uma vez fortificada, aperfeiçoa-se, o que é próprio dos perfeitos. Logo, há três graus de caridade” (II-II, art. 24, 9). AO LEITOR 19


Se tal é o papel da graça, resta algum rol para a natureza? Ainda é o Pe. Tanquerey que responde: “Esta vida da graça, mesmo que distinta da vida natural, não é simplesmente superposta a esta última, mas a penetra por inteiro, a transforma e a diviniza. Ela assimila tudo que há de bom na nossa natureza, nossa educação, nossos hábitos adquiridos, e aperfeiçoa e sobrenaturaliza todos esses elementos e os orienta rumo ao fim último, quer dizer, para a possessão de Deus pela visão beatífica e o amor que a acompanha”15. Sendo a graça divina um dom gratuito, que Deus dispensa conforme os desígnios insondáveis de sua infinita Sabedoria, cabe a nós apenas colaborarmos para o aumento e o desenvolvimento da vida sobrenatural na nossa alma. Principalmente pela recepção dos sacramentos, pela prática progressiva das virtudes e dos dons, e pelo desenvolvimento da vida de oração. E, do ponto de vista negativo, pela luta contra o pecado e seus fomentadores: o demônio, o mundo e a carne, assim como pela purificação ativa das paixões e das potências da alma. E isso nos traz de volta ao papel desempenhado pela natureza na vida espiritual, pela parte que nela jogam o caráter e as paixões. Segundo o Pe. Royo Marín, o caráter pode definir-se como “a resultante habitual das múltiplas tendências que se disputam na vida do homem. É como a síntese de nossos hábitos. É a maneira de ser habitual de um homem, que o distingue de todos os demais e lhe dá uma personalidade moral própria. É a fisionomia ou ‘marca moral’ de um indivíduo”. O caráter é distinto, mas muito influenciado pelo temperamento, o qual pode ser definido como “o conjunto das inclinações íntimas que brotam da constituição fisiológica dos indivíduos, enquanto que o caráter é o conjunto das disposições psicológicas que nascem do temperamento enquanto modificado pela educação e pelo trabalho da vontade e é consolidado pelo hábito”. Três fatores influenciam principalmente o caráter: o nascimento, o ambiente exterior e a vontade. O menino “traz a marca de fábrica que lhe foi impressa pelos pais”, as ondas vitais que circulam pelas suas veias “ressentem-se de todas as gerações que têm percorrido sua estirpe antes de chegar até ele, umas boas, outras más, e, dessas inumeráveis influências do passado há por vezes uma que predomina, que o caracteriza, que é a proprietária e dona do temperamento. Mas o conjunto é tão complexo na sua composição como múltiplo na sua origem. [...] Uma sábia terapêutica na formação do caráter 15 Verbete “Vie et voie spirituelles”, em J. Bricout (dir.), Dictionnaire pratique des connaissances religieuses, vol. 6 col. 883. 20

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pode chegar a modificar profundamente as tendências inatas e mantê-las perfeitamente controladas pela razão e a vontade”16. O ambiente externo influencia nosso caráter – tanto o físico, quanto o clima, quanto o moral, no qual o ambiente familiar e social ocupam o primeiro lugar – e, em alguma medida, cada qual é tributário do seu entorno e é filho de sua época (ainda que seja para opor-se a seus traços dominantes!). A principal influência externa é exercida, obviamente, pelos bons ou maus exemplos recebidos e pelas amizades escolhidas. Se o sangue e o ambiente são duas forças formidáveis, “uma vontade enérgica e tenaz pode chegar a contrapesá-las e inclinar definitivamente a balança em seu favor”. Para isso, insiste o Pe. Royo Marín, “não basta um indolente ‘eu quereria’, mas um enérgico ‘eu quero’”. Do ponto de vista psicológico, o caráter ideal é aquele que é perfeitamente equilibrado, no qual “a inteligência é clara, penetrante, ágil, capaz tanto de amplitude quanto de profundeza”, a vontade “é firme, tenaz e perseverante” e a sensibilidade “é fina, delicada, serena, perfeitamente controlada pela razão e a vontade própria”. Como resulta óbvio, “ordinariamente só conseguem aproximar-se desse ideal aqueles que têm sabido perseverar anos a fio no rude labor de ir adquirindo tal caráter pouco a pouco”. Do ponto de vista moral, um grande caráter deve caracterizar-se: 1. pela retidão de consciência: “um homem sem consciência é um homem sem honra, sem a qual todas as demais qualidades se desmoronam”, e, pelo contrário, o homem reto “diz e faz em cada caso o que tem que dizer e fazer, sem se importar com aplausos ou vitupérios dos homens; não conhece a escravidão e a vilania do ‘respeito humano’”; 2. pela força de vontade pela qual se chega “à possessão de si próprio, ao domínio e emancipação das paixões e à plena libertação das influências exteriores malsãs”; 3. pela bondade do coração que faz da pessoa um ser “generoso, magnânimo, desinteressado”, que “não se cansa de fazer o bem”; e 4. pela perfeita compostura em suas maneiras, posto que “é preciso que as maneiras exteriores estejam de acordo com a beleza do mundo interior [...] convenham ao decoro da pessoa e se acomodem às suas circunstâncias, estado e situação, de maneira que não desentoem, mas em tudo resplandeça a mais perfeita harmonia”17. Posto que a Teologia ascética e mística é uma ciência ao mesmo tempo especulativa – porque baseada fundamentalmente nos dados da 16 Guibert, “El carácter”, cap. 4, n. 1, p. 80, cit. por Royo Marín, vol. 2 p. 704-705. 17 Todas as citações precedentes provêm da obra “Teologia de la perfección cristiana”, do Pe. Antonio Royo Marín, vol. 2, p. 704-708. AO LEITOR 21


Revelação – e prática – porque deve assumir a experiência das diferentes vias espirituais percorridas pelos iniciadores das diferentes escolas de espiritualidade – cremos que os futuros manuais deverão incluir, entre os elementos naturais que favorecem um grande caráter e o progresso na santificação acima enumerados, a inocência primeva, ou seja, aquela que, mesmo antes de ser enriquecida pelo Batismo, se maravilha com a Criação e procura instintivamente o Ser Absoluto. Esse aporte é, sem lugar a dúvidas, uma das grandes novidades da espiritualidade pliniana. Todavia, é preciso não perder de vista que, mesmo se a parte da natureza na vida espiritual é de inegável importância, ela empalidece se comparada com o papel da graça divina. O que é a pobre natureza quando confrontada com o mistério da predestinação? Pois é desta que resulta o grau de caridade de uma alma (ou seja, o grau de perfeição do amor divino e de inabitação da Santíssima Trindade numa alma), a qual, por sua vez, depende fundamentalmente da vontade libérrima de Deus: “Deus distribui suas graças entre suas criaturas em graus diferentíssimos, sem outro conselheiro que sua vontade onímoda: prout vult, como lhe apraz, diz o apóstolo São Paulo. São mistérios insondáveis que escapam em absoluto à pobre razão humana”. Mas, na medida em que nos é permitido descortinar esses horizontes, a razão mais profunda foi insinuada por São Paulo na Epístola aos Efésios, na qual ensina que “a cada um de nós foi dada a graça, segundo a medida do dom de Cristo [...] para o desempenho da tarefa que visa à construção do corpo de Cristo” (4, v. 7 e 12). A desigualdade de dons é portanto necessária para “obter a beleza suprema, a grandiosa sinfonia do conjunto total”, posto que a finalidade última da Criação é que “o Cristo total – a Cabeça e os membros – esteja subordinado e orientado para a glória de Deus, finalidade suprema, alfa e ômega dos planos de Deus nas suas operações ad extra”18. Todos somos chamados à santidade de uma maneira remota e suficiente, por uma vontade remota e suficiente de Deus. Mas alguns predestinados foram escolhidos e encaminhados por uma vontade próxima e eficaz, pelo que são enriquecidos, não apenas com graças suficientíssimas, mas com uma torrente de graças incomuns para atingir um grau de perfeição eminente da caridade. Um ponto que merece ser destacado – pois serve para explicar certo tipo de graças que Plinio Corrêa de Oliveira desde a infância e ao longo da vida – é que a perfeição cristã implica necessariamente a vida mística. Segundo explica o Pe. Royo Marín, “as virtudes infusas [as quais, como 18 Royo Marín, op. cit. vol. 1 p. 217. O resto é um resumo das eruditas explicações do Pe. Royo Marín no vol. 1, p. 211-222 da obra citada. 22

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foi visto acima, decorrem da graça habitual que todo fiel recebe no Batismo] não podem alcançar a perfeição [à que todos estamos chamados] senão sob a influência dos dons do Espírito Santo agindo ao modo divino e sobre-humano”. Acontece que tal atuação “constitui a própria essência da mística; logo, é impossível a perfeição das virtudes – e, por conseguinte, a perfeição cristã – fora da mística”19. Essa ação mística do Espírito Santo pode começar muito cedo na vida espiritual de uma pessoa: “Não devemos jamais imaginar que esses três graus fundamentais [de desenvolvimento da caridade] sejam como outros tantos compartimentos fechados a chave, de tal maneira que os principiantes não tenham jamais participação alguma, sequer fugaz e transitória, nas graças do segundo e ainda do terceiro grau. Acontece com frequência que Deus dá até aos principiantes graças particulares que são como relâmpagos da via unitiva própria dos santos e arras da perfeição da caridade. [...] A psicologia humana é demasiadamente complexa para emoldurá-la em quadros demasiadamente concretos e rígidos”.20 Já que mencionamos acima os “escolhidos de Deus”, seja-nos permitido acrescentar uma palavra a respeito do carisma daqueles que foram predestinados pela Divina Providência para serem fundadores. Como foi dito, uma família de almas que trilha uma nova via espiritual recebe sua vida de um dom original – o carisma fundacional – que o Espírito Santo concede, através dela, a toda a Igreja. Como seu divino Fundador, a Igreja cresce em graça e santidade e, por meio desses novos sopros do Espírito Santo, Ela pode revelar novos traços do rosto sagrado de Cristo e participar de modo mais profundo na sua missão salvífica. Como é sabido, os carismas são graças concedidas gratuitamente (sem mérito daquele que os recebe) para benefício de terceiros. E, mesmo que eles possam indiretamente servir para a santificação pessoal, situam-se muito abaixo da caridade e da graça santificante21. Em outras palavras, a possessão do carisma de fundação não implica necessariamente num alto grau de virtude. “O carisma do Fundador”, escreve a Irmã Silvia Recchi, que obteve um doutorado summa cum laude na Universidade Gregoriana de Roma com uma tese sobre a vida consagrada, “pode ser figurativamente comparado a uma ‘chave’ que abre uma porta de acesso ao mistério do Senhor, percebido, na sua globalidade, sob uma luz especial; dela decorre uma iluminação 19 Idem. p. 222. 20 Ibid. p. 212. 21 Ver Tanquerey, op. cit. p. 947 AO LEITOR 23


que se traduz num chamado, primeiro pessoal e mais tarde coletivo, assim como numa missão para se exercer dentro da Igreja”. Dito carisma marcará “como um código genético, a vida dos membros da nova família, seu estilo apostólico, seu espírito e as estruturas comunitárias”. Pela sua dimensão profética, o carisma do Fundador “cria sempre uma ‘novidade’ na vida da Igreja”, “transtorna as opiniões correntes e os critérios estabelecidos – nós diríamos as “opiniões religiosamente corretas” –, suscitando dificuldades, porque não é fácil reconhecer nele imediatamente a ação do Espírito Santo”. Essa é a grande cruz da vida dos Fundadores: serem incompreendidos. Não se deve crer, porém, “que esse sofrimento seja causado apenas pelas dificuldades para o reconhecimento do carisma ad extra, quer dizer, ao exterior do grupo, da parte dos meios sociais e eclesiásticos que, por vezes, antes de aceitá-lo, lhe colocam obstáculos. Frequentemente, há também uma dificuldade para ‘engendrar’ ad intra, quer dizer, entre os próprios membros da nova família, a plena acolhida do dom do Espírito e de todas as dinâmicas que o projeto suscitado exige”. É do impacto da vida do Fundador e de seu carisma original com seu entorno externo, e com a vida interna do primeiro grupo de discípulos “chamados a interagir com ele, que nasce a experiência fundante da nova família de vida consagrada, destinada a deixar uma marca profunda no seu desenvolvimento futuro e a constituir o fundamento de seu patrimônio carismático”22. Essas citações podem parecer um pouco longas e distantes deste trabalho. Na realidade, elas nos ajudam a compreender que Deus é como um ourives que toma delicadamente nas suas mãos uma gema bruta – os dados da natureza – e a transforma num diamante pelos seus certeiros golpes do martelo. Isso que é válido para qualquer alma, é sobremaneira válido em se tratando daqueles que Ele predestinou para serem o princípio de uma estirpe espiritual. Daí que os “fatinhos” de sua vida sejam relevantes para se conhecer não somente os traços de sua rica personalidade, mas sobretudo o desígnio providencial de sua ocorrência, enquanto meio de formação e motivação de uma graça. Tanto os sucessos quanto as aflições são uma ocasião de que a Providência Divina se serve para uma iluminação da inteligência ou o fortalecimento da vontade do futuro Fundador, ou mesmo para a expiação que Deus requer dele como preço a pagar para

22 Ir. Silvia Recchi, “Hommes et femmes de l’esprit - Le charisme des Fondateurs”, http:// fr.missionerh.com/content/view/4487/457/ 24

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o desenvolvimento do carisma fundacional no seu interior e na obra que ele é chamado a fundar. É por esse motivo que, para dar um quadro amplo e tanto quanto possível objetivo da vida espiritual de Plinio Corrêa de Oliveira, tornou-se necessário apresentá-la como uma trajetória disseminada de fatos, com suas respectivas repercussões espirituais. O que, por sua vez, explica o esquema de apresentação dos textos autobiográficos que se seguem. Na 1ª Parte do vol. I, “O Menino Plinio”, será apresentada a gema bruta, ou seja, os elementos naturais de seu temperamento e de sua psicologia – com especial destaque para a inocência – sobre os quais incidiram depois a graça do Batismo e suas virtudes infusas e dons, assim como as graças atuais que lhe sucederam, como aquelas ligadas à sua vocação contra-revolucionária. A 2ª Parte do vol. I, “A atmosfera primaveril da vida espiritual”, discorrerá sobre as primeiras moções da graça e os primeiros combates espirituais – sobre si mesmo e contra os aspectos revolucionários de seu ambiente –, rematando com a graça mística que recebeu de Nossa Senhora Auxiliadora. Na 1ª Parte do vol. II, intitulada “A travessia do deserto e os frutos do encontro com o Movimento Católico”, cobre o amadurecimento de sua vocação no meio da solidão de sua juventude, até o primeiro florescimento externo dela no seio das Congregações Marianas. A 2ª Parte do vol. II, “Novas provações no limiar da realização da própria vocação”, relata os grandes avanços espirituais que ele fez graças à leitura de alguns livros e muito notadamente do “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, de São Luís Grignion de Montfort. Já a 3ª e 4ª Partes do vol. II versam sobre “A intuição de uma missão universal de caráter profético” e “A mentalidade do paladino da Contra-Revolução”, nas quais aparece o diamante já inteiramente lapidado pela Santíssima Virgem e os principais fulgores que ele emite e são captados pelos seus discípulos. A 5ª Parte do vol. II o apresenta enquanto “Pai e fundador de uma família de almas e de uma estirpe espiritual” e a 6ª e última Parte, intitulada “Missão cumprida – ‘As vozes não mentiram’”, relata seus temores de não ter correspondido às graças recebidas e a confirmação sobrenatural que recebeu com a chamada “graça de Genazzano” de que, quaisquer que fossem as circunstâncias, cumpriria a sua missão. Como é inevitável num esquema sob a forma de um percurso espiritual, há algumas repetições, posto que as mesmas visualizações e graças da infância foram se desenvolvendo ao longo da vida e chegaram à sua plenitude na idade madura. Na medida em que o próprio relato o permitia, AO LEITOR 25


elas foram colocadas na seção onde pareciam mais relevantes, procurando apresentá-las sob outro ângulo e com novo sabor. *** São estes os traços gerais deste livro, que queríamos de início salientar. Cabe assinalar que, ao longo desta compilação, optamos deliberadamente por manter tanto quanto possível a linguagem coloquial, informal mesmo, empregada por Plinio Corrêa de Oliveira nas reuniões e conversas com os seus discípulos. Esta opção se prende ao desejo de introduzir o leitor no ambiente de autenticidade quase familiar em que tais reuniões e conversas se desenvolveram, preservando assim o charme e a vivacidade próprios a uma linguagem não literária, a qual seria prejudicada se a adaptássemos às regras acadêmicas. Não obstante, deparamo-nos muitas vezes com a necessidade, a bem da clareza e da fluidez da leitura, de adequar essa linguagem falada à linguagem escrita. Essa licença editorial em nada diminui ou prejudica a fidelidade aos originais que serviram de base a esta compilação. Pelo contrário, é total o compromisso com a reprodução autêntica do sentido da narração feita por Plinio Corrêa de Oliveira. Toda a vastíssima e valiosíssima documentação utilizada é meticulosamente indicada em notas que poderão ser encontradas ao pé de cada página. Convém ter presente o significado de algumas siglas que se repetem nessas indicações. Para tal, ver o quadro Siglas das fontes bibliográficas, logo adiante. Também ao pé da página virão as notas de esclarecimento de responsabilidade do Compilador. Sublinhamos ainda que não tivemos a pretensão de esgotar os múltiplos aspectos que caracterizam a espiritualidade e a Weltanschauung de Plinio Corrêa de Oliveira. Tal não seria viável, quer pela complexidade da matéria, quer pela riqueza de conteúdo e de aspectos dela. Foram destacados apenas os elementos que permitem ao leitor formar uma ideia, a um tempo fiel, substancial e clara, de sua marcante espiritualidade e personalidade. *** No curso da leitura, poderá acontecer que pessoas não afetadas por preconceitos revolucionários – e especialmente as infensas a preconceitos religiosos originados no Modernismo – verão nesse ou naquele lance, ou ainda nesse ou aquele comentário de Plinio Corrêa de Oliveira, laivos mais ou menos translúcidos de santidade ou, pelo menos, da prática heroica dessa ou daquela virtude. 26

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Os que tiveram a graça de conhecê-lo, e mais ainda os que tiveram o privilégio de partilhar sua intimidade, não hesitam em considerá-lo como um santo. E rezam para que, uma vez superada a imensa crise que hoje afeta a Igreja, Plinio Corrêa de Oliveira seja inscrito entre seus santos. Mas seus discípulos não se adiantam ao julgamento d’Ela e, mesmo que invocando a proteção celeste de seu Pai espiritual a título exclusivamente individual, eles se abstêm absolutamente de render-lhe qualquer forma de culto público. Nessa expectativa de uma futura glorificação, e qualquer que seja a decisão final da Santa Igreja, uma coisa seus filhos espirituais afirmam com toda convicção e sem temor de serem contraditados: que Plinio Corrêa de Oliveira realizou inteiramente o perfil moral do contra-revolucionário que ele mesmo descreveu sucintamente na sua obra magna, “Revolução e Contra-Revolução”: “Em estado atual, contra-revolucionário é quem: “– Conhece a Revolução, a ordem e a Contra-Revolução em seu espírito, suas doutrinas, seus métodos respectivos. “– Ama a Contra-Revolução e a ordem cristã, odeia a Revolução e a ‘anti-ordem’. “– Faz desse amor e desse ódio o eixo em torno do qual gravitam todos os seus ideais, preferências e atividades.” Enquanto realização plena desse modelo ideal, Plinio Corrêa de Oliveira é, para a estirpe dos seus discípulos e daqueles que os sucederão no futuro, um verdadeiro paladino e o guia espiritual da Contra-Revolução na sua plenitude. Se a presente narrativa em forma autobiográfica permitir uma melhor compreensão da amplitude, riqueza e, de modo especial, grandeza da obra realizada por Nossa Senhora na alma desse “varão católico, todo apostólico e plenamente romano” – é esta a inscrição que se encontra em sua lápide no Cemitério da Consolação, em São Paulo –, daremos por bem pagos os esforços que nos custaram este trabalho – que foi sobretudo ocasião de muitas graças e alegrias. A Ela oferecemos este livro, que é uma homenagem a um varão da sua destra e a um filho que lhe foi tão querido e amado, e que A amou extremosamente. São Paulo, 8 de setembro de 2021 Festa da Natividade da Santíssima Virgem

INSTITUTO PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA AO LEITOR 27


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Introdução

O

s senhores me pediram para lhes descrever a minha mentalidade. Colocado diante desse pedido, como fundador de nossa família de almas, não poderia subtrair-me de atendê-lo. Se a vocação dos senhores é seguir os meus passos, hei de lhes dizer para onde meus passos correm23. Digo mesmo que, debaixo de certo ponto de vista, até se impõe que eu entre neste assunto. E dou-lhes, portanto, toda a razão em inquirir-me sobre a minha pessoa e a minha mentalidade.

* Quando se analisa a vida de um homem desde a sua mais remota infância, o que mais interessa é a gênese de sua mentalidade: como esta se formou, que dificuldades e que fatores favoráveis encontrou, que esforços foram necessários para a conservar ou para a melhorar. Nesta tarefa, somos obrigados a fazer a distinção entre o interesse muito pequeno de certos episódios, e o significado que esses episódios tiveram na formação espiritual, intelectual e moral da pessoa, significado este muito grande. Assim sendo, o que julgo poder interessar aos senhores na minha vida é o relato de como se formou em mim o espírito ultramontano24, de que elementos se compôs, que dificuldades encontrou25. Estes são temas que nunca considerei de frente, por julgar que a opção preferencial pela humildade deveria me levar a isto. E o fiz com certa ferocidade, por saber que a agressão do orgulho e da vaidade no homem é mais feroz do que todas as ferocidades que possam haver em nós. É preciso, portanto, um redarguir também feroz a essa agressão. 23 CSN 17/8/85 24 Ultramontano era a designação dada no século XIX à corrente de católicos franceses defensores do Primado Pontifício e militantemente contrários aos católicos liberais. Como Roma estava além dos Alpes, dizia-se então que esses católicos eram ultra (além) montanos (dos montes). O termo depois se estendeu a outras nações, sempre para designar os católicos antiliberais. 25 SD 4/8/73 INTRODUÇÂO 29


Então repito: no momento histórico em que chegamos, justifica-se que eu26 faça para os senhores uma espécie de autobiografia espiritual27. É justo que queiram saber o que se passa na cabeça do fundador de uma organização a que os senhores dedicaram toda a sua vida28.

* A minha história não é a de uma conversão, mas de uma perseverança. Perseverança que se exerceu de algum modo contra todos, contra todas as dificuldades, em todas as lutas29. No curso dessa história, terei de referir-me a episódios de minha vida. Mas não me permitiria a mim mesmo tomar o tempo dos senhores dando reminiscências de caráter meramente pessoal. O que irei expor é, insisto, a gênese do ultramontanismo na minha cabeça30. Cada cabeça tem suas complicações e suas simplicidades. Pretendo, portanto, “desmontar” a minha, para tentar explicar como funciona o meu processo mental interior31. Para quem não é brasileiro e não vive no ambiente brasileiro, o mais interessante será saber como, nesse ambiente brasileiro, o ultramontanismo pôde nascer32.

* Debruçando-me sobre os tempos longínquos em que tinha a idade dos senhores, tive evidentemente de lutar com problemas parecidos com aqueles que os senhores têm de enfrentar nos dias de hoje. Os homens eram outros, os problemas se formulavam certamente em termos diversos, mas tais problemas não eram diferentes. No fundo, eram os mesmos, apenas com aspectos diferentes33. Se, pela bondade de Nossa Senhora, o que haverei de dizer for elogioso, não ocultarei, nem me farei acusações sem propósito, nem direi: 26 MNF 2/12/88 27 MNF 17/11/94 28 Chá SRM 13/11/90 29 CSN 27/9/86 30 Conferência 11/8/54 31 CM 6/5/90 p. 5 32 Conferência 11/8/54 33 SD 13/11/76 30

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– “Não, sou ‘un petit vermisseau et misérable pécheur’, um ‘vermezinho e miserável pecador’. Não procurem em mim virtudes porque não há”... Não me prestarei a esse papel de falsa humildade. Narrarei as coisas objetivamente como elas são34. Seguirei, neste ponto, o exemplo d’Aquele do qual não se pode apenas dizer que é perfeito, mas é a própria Perfeição, Nosso Senhor Jesus Cristo, que em várias circunstâncias da sua vida terrena falou de si mesmo, e possantemente a respeito de si mesmo. Também na vida de São Paulo, e igualmente na vida desse ou daquele santo, encontramos episódios que nos mostram como deve proceder um apóstolo quando, coagido pelas circunstâncias, se vê obrigado a falar de si mesmo: agir com toda a naturalidade, seguindo o exemplo daqueles que fizeram o mesmo35. Na verdade, fazer de mim mesmo um autoelogio não me valerá de nada, porque o que receberei em paga da parte do mundo serão pedradas. Isto porque, eu me elogiando, candidato-me a pedradas, e não a flores nem a louvores. Aliás, analisando a minha história, os senhores verão que os louvores e as flores não correm atrás de mim.

* Permitam-me uma expansão. A minha impressão é de que, se os senhores conseguirem formar um mapa exato do meu subconsciente e do meu consciente, isto lhes poderá abrir um panorama cuja consideração terá como efeito facilitar a própria vida espiritual. No entanto, fica-me a dúvida sobre se esse desejo, o de procurar compreender o ponto mais profundo de minha alma, produz mesmo esses efeitos. Entretanto, como não vejo nada de reprovável dentro desta tentativa, estou disposto a andar por este caminho36.

34 Chá SRM 18/9/94 35 Chá SRM 27/6/93 36 MNF 17/11/94 INTRODUÇÂO 31


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1ª PARTE

O MENINO PLINIO O TEMPERAMENTO Confluência do temperamento dos antepassados paternos e maternos Desde que comecei a observar as pessoas, pude notar muitas vezes que, quando se conhece o pai e a mãe, ou a família paterna e a família materna, sobretudo quando o pai e a mãe são de duas famílias inteiramente diversas, ou quando são de nacionalidades diferentes, nota-se uma espécie de encontro de águas que confluem para formar um terceiro rio. Aquelas águas, quando há esse encontro, se remexem, turbilhonam um pouco, vão para cá, vão para lá e acabam tomando um certo rumo, se homogeneízam ao cabo de algum tempo. Tudo isto dá numa espécie de remelexo que forma, dentro da pessoa, um certo enriquecimento sem dúvida, mas não um enriquecimento da ordem. Forma uma espécie de desordem e de entrechoque. É possível, ou pelo menos não é impossível, que alguns notem isto em si mesmos. Às vezes a pessoa percebe que, dentro de si, está falando mais a família paterna, outras vezes a materna, ou mesmo a nação paterna ou a nação materna dela. Debaixo desse ponto de vista, Nossa Senhora proveu muito misericordiosamente a meu respeito, fazendo com que o temperamento de meu pai e o de minha mãe, embora fossem profundamente diversos por alguns lados, eram muito semelhantes por outros lados, e que essas semelhanças entrassem quase sem entrechoque. Com a graça da Fé e da observância dos Mandamentos, isto tomou uma ordenação própria, tal como deve tomar no católico. E formou uma espécie de unidade de temperamento que me deu muito mais facilidade em encaminhar as coisas do que se em mim houvesse uma pluralidade de temperamentos presentes37.

* 37 CSN 21/3/81 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 33


A unidade do Brasil é tal que não se cogita de separatismo, mas as diferenças regionais existem e se afirmam sob a forma de qualidades e de defeitos. Meu pai era pernambucano. Minha mãe bem paulista. O pernambucano tem uma forma de inteligência muito rasgada, muito aberta. Numa porção de campos, de temas, pega as coisas num olhar só e estabelece correlações. Flanar, quando a flanação é feita com arte, é um modo de contemplar. E meu pai, inteligente, era um flanador como todo senhor de engenho do tempo dele. A vastidão de temas nos quais ele flanava era enorme. Era um flanador por excelência e que tinha inteligência rasgada, que estava entre a contemplação e a ação neste ponto: subia de bom grado às coisas mais altas, sobretudo jurídicas. De largos horizontes doutrinários, portanto. A doutrina jurídica ele pegava muito bem. Por outro lado, espectador da realidade e divertido. Gostava de se divertir vendo a realidade. Quando a realidade não o divertia, acabrunhava-o. Mas daí a pouco se esquecia daquilo e estava de novo se divertindo e observando o fatinho miúdo. Era entusiasta do fatinho. Minha mãe já era paulista. E o paulista, sem ser o mais inteligente dos brasileiros, tem o senso de organizar a vida. Arquitetura da vida, como se vive, como se estrutura a vida, como se faz o ambiente, como se tocam as coisas. E isto o paulista do café tinha. Hoje em dia não é mais assim. Essas qualidades, em mim, coabitam muito harmonicamente. Noto que tenho inteligência voltada para grande quantidade de temas. Noto que sou observador muito atento, gosto muito da observação. E vejo que tudo isto se conjuga muito bem, sem afirmar que se casam de modo esplêndido, faustosamente. Há uma harmonia38. Síntese do temperamento nativo Meu temperamento eu classificaria nativamente da seguinte maneira: Ao mesmo tempo muito calmo, calmo até a indolência; muito equilibrado, equilibrado até o incrível, até o inconcebível. Muito rijo em uma coisa: naquilo que me convém, deito-me com todo o peso. Mas muito mole também, detestando luta, detestando briga, detestando qualquer coisa assim39. 38 CSN 28/5/83 39 Conferência 6/8/1954 34

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Mas essa moleza era para movimentos físicos, para jogos, enfim, para tudo o que as crianças fazem. Não era uma moleza de espírito. Quer dizer, se tivesse que sustentar uma briga, ser-me-ia muito desagradável brigar. Eu era muito cordato. Em parte, por ser muito afetivo. Em parte, por achar que briga era uma trabalheira, uma coisa desagradável. Em parte, também porque, do ponto de vista temperamental, não do ponto de vista doutrinário, as questões ditas de honra sempre me picaram muito pouco. Por exemplo, o sujeito dizer de mim que ele é mais inteligente do que eu, deixo dizer. Quem sabe se é? Isto, de si, se eu fosse só assim, produziria para quem trata comigo a impressão de uma pessoa numa posição incompreensível, mas a partir da qual eu seria muito lógico. De outro lado, eu causaria a impressão de insipidez. Isto porque a falta de qualquer reação temperamental nessa displicência em olhar coisas que habitualmente tocam os nervos dos outros, redunda em insipidez, em “sem-gracês”. Tinha bem a ideia de que, por alguns aspectos, por causa de meu temperamento, eu era sem graça. Daí também a minha aversão ao exercício físico, porque supunha uma disposição temperamental que habitualmente eu não tinha. Aversão a tal ponto que, em pequeno, vendo uma pessoa sendo conduzida em cadeira de rodas, tinha inveja – não sabia do futuro que me aguardava... – e dizia: “Quem sabe se poderia me sentar nessa cadeira e pagar uma pessoa para me conduzir, para não ter que me mover?”40 Era, entretanto, um temperamento que, dentro da moleza e de outros defeitos assim, poderia se chamar, para um homem concebido com pecado original e, portanto, com todas as reservas que a palavra comporta, um temperamento fundamentalmente temperante41.

* Nasci com um temperamento o mais oposto ao que minhas condições exigiam, porque me sentia como um homem que, no berço, nasce no rebordo do lado de fora de uma janela, com o risco de cair e tendo que me agarrar nos ornatos do prédio para não me escarrapachar. De um lado, por causa de uma situação cheia de incertezas que descreverei daqui a pouco. De outro lado, por uma espécie de bipartição dentro da alma, que me lanhava debaixo dos seguintes pontos de vista.

40 CSN 13/10/91 41 Conferência 6/8/1954 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 35


Primeiro, um feitio de compreensão extremamente categórico: o que eu via, via, e não era por turrice ou obstinação, mas porque era mesmo! Quer dizer, uma confiança na própria compreensão, que não era megalomania, mas era a própria objetividade: é! E um consequente não querer o que não queria, quer dizer, um desagradar-me do modo mais violento e mais truculento caso acontecesse o que eu não queria. Depois, uma falta completa de coragem para escorar a luta e uma falta completa de resistência temperamental e nervosa para essa luta. Poderíamos até figurar, enchendo a armadura de metal de um guerreiro, um homem de pirão de batata. Um homem com o olhar inteiramente lógico e que quer de modo inteiramente deliberado fazer a guerra, mas que paradoxalmente se sente um pirão de batata que não quer deixar de guerrear, mas não encontra meios para guerrear42.

* Nisso tudo creio que entrou uma graça da Providência que me veio em quantidade – se é que se pode falar em quantidade em matéria de graça – e em qualidade especial, mas abundante, intensa, rica, e que Nossa Senhora concedia-me com ordem a uma vocação. Essa graça veio para que não parecesse que, obedecendo aos meus impulsos, obedecia ao meu temperamento e seria um homem de maus bofes, que gostava de fazer sofrer os outros. Então, para não parecer isto, Nossa Senhora me deu um temperamento muito cordato e sem explosões de raiva. Não tenho explosões de raiva, tenho julgamentos. Aquilo precisa ser combatido, é um dever combater. Nunca se terá ouvido dizer: “Dr. Plinio hoje amanheceu irritadiço e por isso está brigando com todo o mundo”, porque graças a Deus não sou assim43.

* Eu não era um menino vivaz, lampeiro e que dizia coisas, mas tinha muita vida. E notava que se achava que eu era um menino engraçadinho. Algumas pessoas gostavam de brincar, de gracejar um pouco comigo44.

42 MNF 16/10/79 43 Jantar EANS 4/5/92 44 CSN 29/10/94 36

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Eu era muitíssimo afetivo e cheio de apegos à minha família, em todos os graus possíveis45. Emotividade sem vibrações Sou talvez o menos vibratório dos homens46. Assim, diante das coisas, sinto em mim mesmo o que sentiria um espelho diante daquilo que nele está projetado: as coisas que se passam diante de mim não me causam particular emoção. Já internamente, pela razão e pela vontade, posso gostar muito ou excluir muito. Isto dá em truculência47 de aplausos ou de porrete. E se traduz em tudo, até na minha inflexão de voz. Mas na hora do porrete ou na hora do aplauso, o meu temperamento está átono, sem vibração48. E assim pode acontecer que uma alma como a minha, muito expansiva, muito comunicativa, muito afirmativa, muito ativa ad extra, seja ad intra uma alma muito tranquila, muito serena, muito estável. De maneira tal que, mesmo as coisas grandes que se passam dentro dela, se passam com uma serenidade de quem está navegando num rio que não tem agitações. Os senhores me viram em todas as situações possíveis. Viram-me em momentos de muita alegria, viram-me até no dia da morte de Dona Lucilia. Mas devem ter notado que a minha reatividade não está em proporção com o que se teria o direito de achar que é de acordo com a ordem das coisas. Por exemplo, na nossa viagem à Europa em 1988, notava que minhas manifestações exteriores eram muito menores do que aquilo que eu estava achando. E notava que era por um mecanismo interno qualquer que não sei exprimir. Em Chambord, por exemplo. Estava encantado com Chambord, mas o que se refletia na minha fisionomia era muito menos do que o comentário que faria de Chambord depois. Ad intra, eu me achava numa relativa imobilidade, numa relativa atonia. A parede entre a minha alma e o que lhe é exterior não dava a entender o que se passava parede adentro. E isto se dá comigo em quase todas as coisas, mesmo naquelas que mais seriam próprias a arrancar de mim exclamações49. 45 Jantar EANS 4/5/92 46 RR 20/8/73 47 Dr. Plinio costumava empregar esta expressão em seu sentido não pejorativo, para exprimir a afirmatividade de sua posição enquanto católico. 48 CSN 21/3/81 49 CSN 7/11/81 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 37


Ao pé da letra, propriamente o que me emociona – mas com que calma – são dois gêneros de coisas. A primeira, a Igreja globalmente tomada, mas especialmente nos aspectos que têm mais relação com a minha vocação. Isto verdadeiramente me emociona, mas é a tal emoção não emocionada50. Uma pessoa me disse certa vez: “O senhor, à noite, quando está sozinho, deve chorar pela Igreja”. E disse: Meu caro, sozinho, nunca verti uma lágrima pela Igreja, e à noite cuido conscienciosamente de ir dormir. Faço as minhas orações e durmo. Porque sei que devo dormir tanto quanto possível para, no dia seguinte, lutar pela Igreja”. A pessoa poderia ainda objetar como ser possível uma pessoa ver a Igreja Católica nessa crise, e ver a operação feita para desfigurá-la e lhe tirar todo o aspecto divino do unum, bonum, verum, pulchrum; além do mais, tirar isto de toda a ordem temporal e de toda a ordem social, de toda a ordem humana; como é possível a uma pessoa que sabe como são essas coisas, por mais fleumática que seja, não chorar ao olhar isto? Respondo: não precisa chorar. E teria vontade de acrescentar: “Não chore: estale. É muito melhor do que chorar”. Como é possível não estalar, se temos o hábito de ver a crise da Igreja? Não é nem chorar, nem fazer drama, mas é estalar. Outros terão o dom das lágrimas, eu não tenho. Mas mesmo sem ter o dom das lágrimas e sem ser emotivo, podemos estalar. O que então eu entendia que se devia fazer? Era manter-me na maior das calmas e tratando das coisinhas: tomando um café, encontrando uma pessoa de pouco voo e conversando com ela sobre o champignon que está comendo, e está acabado. Compreendia que, se fosse da glória de Nossa Senhora, era sobre isso que se devia conversar51.

* Muitos dos senhores já me viram rezar em várias ocasiões: na igreja do Sagrado Coração de Jesus, diante da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, ou no Convento da Luz, onde gosto tanto de ir; ou em qualquer outro lugar. Os senhores hão de notar que não me emociono. Posso rezar com muita atenção, com o espírito muito fixo nas minhas orações, e querendo muito o que quero. Emocionar não. Não me emociono. Cada um é de determinado modo. 50 CSN 21/3/81 51 CEP 6/5/67 38

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O que sinto nessas ocasiões? É certa consonância muito profunda com aquele ambiente, a qual dá uma espécie de felicidade e de bem-estar que, curiosamente falando – não sei como descrever –, não toca a sensibilidade epidérmica. Aquilo é calmo e por algum lado mais acentuado do que a sensibilidade epidérmica de muitos. Mas, de outro lado, é em mim uma como que insensibilidade.

* A segunda coisa que me emociona são as muitas coisas que tocam a mamãe. Estão também nessa linha. As cartas que escrevi para ela eram literalmente transbordantes, e o meu modo de tratá-la era também literalmente transbordante52. Os senhores dirão: “E o Grupo?” O Grupo está por demais ligado a mim e eu a ele para que sinta a alteridade que sinto, por exemplo, em alguma medida com a Igreja, em medida maior com mamãe53. Assim, em relação a coisas de nossa causa, às quais dei e me dou muito mais do que a mamãe, a minha reatividade externa é de uma placidez desconcertante54. De tal maneira me reflito no Grupo e reflito de algum modo o Grupo, que é um pouco como se perguntassem a um homem se ele se emociona a propósito de si mesmo. Não tem sentido. Vejo que muitos outros não são assim, não têm essa estabilidade. E noto que esta estabilidade possa passar por sem-graçês, por insipidez. Não me posso fazer outro, sou assim. Não colide com a lei de Deus e, portanto, não há razão para me alterar. Tenho que me conservar como sou e carregar o fardo até o outro lado do caminho. Quero bem crer que no Céu haja lugar para almas assim. Às vezes fico até sem saber o que dizer a pessoas que esperam de mim reações tristes ou alegres muito fortes, por notar que a reação que o outro esperava eu não estou tendo. Posso ter uma reação assim: “Darei meu sangue por isso”. Ou: “Farei tudo quanto possa, dentro da lei de Deus e da lei dos homens, para acabar com isso”. Mas isto não se refletirá na minha aparência. Na realidade psicológica profunda as águas não se movem. 52 CSN 7/11/81 53 CSN 21/3/81 54 CSN 7/11/81 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 39


O meu raciocínio será: “É preciso acabar com isto? Está bom. Qual é a primeira providência? Vamos lá. É preciso, pelo contrário, defender? Pois não. Qual é a providência? Vamos ver”. A emoção em mim é, portanto, tão pobre de repercussão nervosa, que é igual ao índice zero55.

* Da parte das gerações que vieram depois da minha, noto uma espécie de utilização do sentir como elemento para agir. Então, uma captação ávida do que se sentiu para motivar a boa atuação, a boa ação. Para mim, as emoções muito fortes são desgastantes. E o que, na minha idade, possa haver de seiva, de vitalidade, vem de uma forma de placidez na qual cabem enfaticamente todos os sentires, mas sem trepidação, sem vibração. Por esta forma, quando acontecem certas coisas, fico não com a preocupação de sentir tudo aquilo que logicamente é sensível, mas de me conservar na placidez suculenta que a mim facilita a ação. São sistemas de mobilização de recursos pessoais diferentes. Por exemplo, os acontecimentos previstos por Nossa Senhora em Fátima, eu os espero avidamente. Quando esses acontecimentos chegarem, a principal preocupação é evitar os grandes sismos psicológicos e tomá-los com a placidez de quem encosta com a mão na água e diz “é ela”. Mas não é uma atitude tomada com uma frieza calvinista, que detesto. Nem é por uma espécie de recusa do valor do sentimento como uma riqueza da alma humana. Não é nada disso. Mas é algo em mim que me faz ver que, agindo assim, procedo de acordo com peculiaridades minhas56.

* Nossa Senhora talvez tenha obtido de Deus para mim uma grande alteridade pela qual sou muito outro em relação a tudo quanto é “torcida”57, não me deixando penetrar por aquilo que eu chamaria, numa linguagem empolada, as câmaras mais interiores do meu ser. Isto é uma forma de renúncia, de abnegação, de alteridade calma, plácida, que faz com que o lado intelectivo se desenvolva enormemente. Porque esta é a própria definição da distância psíquica. 55 CSN 21/3/81 56 Chá ENSDP 10/6/83 57 MNF 26/11/86 40

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Se uma pessoa está habituada a se ver no centro de todos os panoramas, e a se imaginar no centro dos panoramas e de todas as suas cogitações, esta pessoa não pode deixar de ter uma série de reações vis, algo como de galinha ameaçada, com medo da morte. Quando digo que não me engajo na “torcida”, isto não quer dizer que não tome o gosto pelas coisas. Tomo gosto, mas sem apegos e sem aflições. Por exemplo, quando eu como crêpe de framboesa, gosto de uma coisa dessas, e gosto com ênfase; mas não entra nenhuma vibração nervosa nisso. Quer dizer, se for preciso deixar de lado a crêpe para tratar de outra coisa, não vou perder um minuto com a crêpe. E há noventa e tantos por cento de possibilidade que eu esqueça da crêpe58.

* Tudo isto considerado, sei bem que não se diz de mim – e não há fundamento para se dizer – que eu seja uma pessoa de um temperamento nem um pouco frio, nem indolente, nem inerte59. Graças a Deus, não tenho nada desses indivíduos endurecidos e incapazes de uma emoção, secos como uma tábua de lavar roupa. Não! É evidente que não60. Propensão para a calma, para o sossego e para degustar a normalidade da vida A placidez, acho que temperamentalmente herdei sobretudo de mamãe. Porque essas coisas têm algo de psicossomático que é herdável. Ela tinha isso61.

*

Quando me lembro de mim em pequeno, recordo-me de uma debilidade que me obrigava a ser estático. Sempre tive uma memória muito ruim. E diante das muitas coisas que se sucediam, nascia em mim a necessidade de me lembrar delas para conseguir coordená-las. E então sentia a impossibilidade de conter todas. 58 MNF 17/3/95 59 Chá SB 19/11/92 60 Chá PS 27/11/85 61 CSN 2/2/85 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 41


Daí uma espécie de susto de fazer muita coisa, mover muita coisa, e depois aquilo escapar de mim. E era preciso ter as garras prontas diante do que vai sucedendo. Na coisa estática eu me sinto à vontade. Sou enormemente estático. Lembro-me de reflexões assim em pequeno, olhando para a imagem do Sagrado Coração de Jesus: “Como Ele é parado! Sempre mostrando o coração, sempre na mesma disposição de alma, não variando, movendo-se num círculo pequeno. Como é uma coisa apreciável! Como eu o entenderia mal se Ele fosse agitado, se Ele fosse um homem de corre-corre!”. Ia até lá o meu gosto da estabilidade62.

* O feitio de meu espírito é um tanto dado ao pesadão. Conhecendo uma coisa e formando uma certeza, para essa coisa tenho uma memória de ouro e aquilo fica conhecido, marcado e feito. Eram então certezas muito firmes, muito definidas. E, tendo um gosto enorme pela estabilidade, em que não me vejo muito acompanhado pelas pessoas das gerações posteriores à minha: “Felizmente esta coisa ótima é assim. Estudei-a até onde se pode estudar e vi que tem toda a estabilidade de que uma pessoa ou coisa é capaz; e, portanto, é um bem firme e estável que está posto na minha vida. Posso fazer meus planos de navegação e de guerra, pois no lugar onde deixei tem esta árvore com flores e frutos”. Nisto entra uma espécie de gosto da certeza, da estabilidade, da continuidade, que vai de ponta a ponta. E isto se reflete nos meus hábitos. Rezo as mesmas orações. E depois faço o mesmo giro de automóvel que costumo fazer às tardes63. No meu escritório, sento-me sempre no mesmo lugar, e o ritmo é do mesmo jeito. E quando vou a Amparo, os senhores sempre me veem sentado no mesmo lugar. Tenho assim hábitos de toda ordem, os quais formam padrões muito fixos e constantes, muito uniformes ao longo da vida, com poucas sensações, poucas surpresas, muitas previsões, muitos planejamentos e dente atracado no adversário. Sou muito fixo64.

* 62 CSN 26/8/89 63 CSN 14/8/82 64 CSN 13/10/91 42

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Não pude ter na minha vida o sossego que quereria ter tido. Mas apreciei muito o sossego que não tive. Examinei muito a vida das pessoas sossegadas e analisei profundamente o sossego dos outros. E arranjei um jeito de introduzir esse sossego nas frestas pequenas, mas bem cultivadas, da minha vida, onde esse sossego cabia. Sei que tenho um sono sossegado, um repouso sossegado, sei que tenho sossego até nas ocasiões em que outro se desassossegaria. Até mesmo nas horas de grandes apreensões, ainda aí, tenho sossego. Quer dizer, a vida que não pude levar por inteiro, eu a introduzi mais ou menos em aspectos de minha vida. E a minha vida não é isenta de sossegos, não é falha de sossegos: ela tem os seus sossegos. É assim que compenso o mundo de preocupações, de aborrecimentos e de outras adversidades que fazem cavalgata em torno de mim. São cavalos que tenho de cavalgar, corcéis medonhos e furiosos que tenho de segurar de cá e de lá como for possível. Mas o sossego está ali pelo meio entre outros estados de espírito65.

* Graças a Nossa Senhora, eu sentia muita facilidade em conservar a calma diante de algo muito apetecível, sendo que normalmente as coisas muito apetecíveis levam o homem a não querer depois as coisas menos apetecíveis. No entanto, havia um lado no meu temperamento pelo qual o sumamente apetecível me cansava quando durava um pouco mais. E tinha então vontade de voltar ao normal, sentindo no normal a apetecibilidade maior do que nas outras coisas muito apetecíveis66.

* Fiz um esforço para degustar, em minha vida, todas as pequenas coisas que a Providência permite que existam em torno dela. Mas uma por uma. E degustar de tal maneira que era mais ou menos como se pela primeira vez a estivesse degustando. Assim, procurei várias vezes em minha vida deleites agradáveis, e várias vezes Nossa Senhora permitiu que os tivesse, e os senhores sabem que sou de uma natureza truculenta. Por exemplo, gosto de panoramas enormes, de coisas colossais. Se é para ver uma coisa, ver uma coisa magnífica, estupenda. Se é para ter um 65 RR 5/2/83 66 MNF 25/9/86 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 43


grande jantar, é qualitativa e quantitativamente um super jantar. Sou muito enfático em toda a minha pessoa. Quando as circunstâncias se apresentaram, degustei o que pude. Mas sempre compreendendo que, ou essa degustação não estancava em mim a degustação da normalidade da vida, ou ela estava me viciando. E que era preciso conservar esse frescor de alma no qual a menor coisinha produz uma satisfação, uma degustação, uma alegria. Do contrário nós estamos nos viciando e nos intoxicando com a nossa própria felicidade67.

* A posse habitual da calma comporta um gosto parecido com o gosto de navegar em um canal largo, bem construído, num bom barco. Isto pode ser melhor do que navegar num mar agitado. Pode-se até gostar de navegar num mar agitado, não pelo gosto da agitação, mas pelo gosto do heroísmo. Este será então um gosto desapegado68. A legítima fruição da vida parte do momento em que se ensinou ao indivíduo o deleite da calma. Quando ele compreende que a calma é o maior prazer da vida, ele compreendeu o que é a vida, e que a vida é uma partida que vale a pena ser jogada69. Há duas escolas de felicidade. Uma é a escola desapegada que supõe não ter volições nervosas e contorcidas. Supõe também saber saborear o gosto de uma vida levada com muita calma, mas não com indiferença diante das coisas. Pelo contrário, é um gosto até com ênfase, mas sem certas caraminholas e certos apegos enfermiços, doentios, doloridos que acompanham o gosto que as pessoas têm pelas coisas habitualmente70.

*

Quando por uma razão qualquer não era possível ter um prazer maior, eu me acomodava ao prazer mais simples com muito frescor de alma e de muito boa vontade, e fruía intensamente daquele prazer mais simples, embora tivesse sido privado de um prazer maior. Isto estava ligado à inocência. Não é dizer que não gostasse das coisas excelentes: gosto mesmo! Por exemplo, eu tinha um primo que se tinha formado em Direto e os pais deram a ele uma viagem à Europa. E o acompanhei até Santos, 67 RN 8/8/75 68 CSN 2/2/85 69 MNF 25/9/86 70 CSN 2/2/85 44

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onde ele embarcaria, porque naquele tempo toda a família acompanhava até o porto quem ia para a Europa. Conhecemos então o naviozinho alemão de classe turística no qual ele ia embarcar. Não era um grande navio, mas era um mimo: todo ele com boiseries, possuindo um bar magnífico com sanduichérrimos, pães pretos de perder a cabeça, butter em quantidade, licores, bebidas. De bebida nunca fiz muita questão, mas os rótulos me encantavam. E as estantes estavam cheias de bebidas. E comi nesse navio. Depois desci do navio e voltei para Santos, com a ideia de que provavelmente nunca poderia ir à Europa por falta de dinheiro. E à noite, ainda em Santos, eu jantava, não jururu, mas contente, no restaurante Marreiro. Entrava muito em tudo isto um gosto enorme pelo sossego, pela aprazibilidade das coisas, e a ideia de que qualquer coisa que se goste com agitação está mal gostado, que o sossego é o grande deleite da vida – logo eu, que tive uma vida tão desassossegada! – e que viver sem sossego não vale nada. Sustento que, do ponto de vista do tirar partido da vida, a primeira coisa é: procurem o sossego. Optei pelo sossego em todos os campos da vida71.

*

Sei que, pelo favor de Nossa Senhora, tenho tomado atitudes muito corajosas ao longo de minha vida, atitudes quase temerárias, em que tenho jogado tudo. Mas no fundo do meu espírito existe muito do espírito securitário português, o qual me leva a pesar o pró e o contra até o último ponto. E em geral me resolvo só depois de tudo muito pensado, e levando em conta muito mais o temor do contra, do que o desejo da vantagem do pró. Quer dizer, muito mais em atitude de defesa do que em atitude de ataque72. Propensão para viver numa clave transcendente, aristocrática e grandiosa Aqui no Brasil os senhores sabem que é muito comum encontrar pelos caminhos pedras que não têm nada de precioso, mas com um colorido 71 CSN 2/2/85 72 CSN 15/6/91 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 45


muito bonito. E, desde muito cedo, em passeios pelo campo, habituei-me a olhar essas pedrinhas e a catá-las. Minha ideia era: “Como seria gostoso morar dentro da pedra, e haver um ambiente que fosse todo ele da cor e da consistência daquela pedra, e onde pudesse respirar, onde pudesse ficar sossegado sem ter que falar com ninguém, nem ninguém falar comigo, e pondo meu temperamento nas condições da pedra, assimilando tudo quanto ela tem, por assim dizer esmeraldando-me, rubificando-me, safirizando-me, de maneira que algo daquilo, não sei, como que entranhasse em mim e me enriquecesse”. Aquilo era para mim uma história de fadas sem fadas, em que a fada era o puro ambiente, era a pura cor dentro da qual eu moraria, e dentro da qual, durante algum tempo, encontraria meu contentamento. Daí o meu gosto por esse tipo de pedras e meu êxtase quando descobri que os vitrais de algum modo proporcionavam isso. E depois, quando descobri que certos olhares indicavam que certas almas vivem numa como que pedra interior, ou numa água interior, ou num ar interior, e que metaforicamente elas habitam em algo ou algo habita nelas, numa ambientação interior que é como um líquido no qual elas existem e que traz fecundidade, força, serenidade, inspirações, voos que constituem uma espécie de redoma dentro da qual a pessoa vive. Esta ideia de viver em algo que não é o real, mas que poderia ser o real algum dia e no qual minha alma quereria viver, isto passou a constituir uma espécie de tendência frequente no meu espírito. Lembro-me de que certa vez fui jantar num restaurante ao longo do rio Arno, em Florença. Os italianos, com muito bom gosto, fizeram um restaurante quase como uma cidade lacustre, porque a maior parte dele não era em terra, mas em um tablado cravado sobre o Arno e tão perto da água que se ouvia o barulho dela correr. Neste restaurante, sentei-me em um lugar onde a prancha do chão estava meio rachada, e via o Arno passar por debaixo. A mim a água do Arno pareceu-me uma pedra líquida. Não era transparente como uma pedra preciosa, mas uma pedra opaca, de um verde que seria da cor de um azinhavre pouco escuro. Era como um rio de azinhavre correndo por baixo e que me dava uma impressão ultra deleitável. Então, era o rio Arno com sua história, correndo com aquela substância líquida, e eu jantando em cima. Ideia imediata: morar dentro do Arno. A essa ideia de um locus onde morar e no qual minha alma encontrasse toda uma realidade transcendente, correspondia à ideia do que eu chamaria de claves. 46

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Porque não tardei a perceber que as coisas tinham claves. E que o mesmo objeto posto num lugar ou posto noutro, a mesma palavra dita por um homem ou dita por outro, a mesma fórmula de polidez dita por uma pessoa ou dita por outra eram como se fossem outra realidade. E que, portanto, em todas as coisas havia claves, e havia presenças deliciosas que punham clave em todo um ambiente: modos de tratar deliciosos que punham clave em todo um ambiente, e que todas as coisas podem ser vistas numa clave ou noutra, revelando de si mesmas aspectos que são estes ou aqueles conforme as pessoas as vejam73.

* O que vem a ser “ter espírito”? Tomem, por exemplo, um tipo miserável, a lama da França, o tal de Jean Jaurès74. Ele foi, entretanto, o autor da seguinte frase: “Para conversar bem é preciso ter espírito; para entender bem o que se conversa, basta ter inteligência”. É muito bem pensado o que ele disse. Fica designada certa realidade que é difícil exprimir em outras palavras, mas que neste dito aparece como inteiramente evidente. Depois de dizer que esse homem era a lama da França – é impossível ser mais truculento –, classifico sua frase como muito inteligente e de um feitio de inteligência muito agradável. Por que achei isso? Em que ponto de minha mentalidade se radica isso? Isto se radica no gosto pelas coisas aristocráticas. Porque é evidente que esse é um dito aristocrático. E ele, Jaurès, é a lama, mas o dito dele é de uma lama que foi pisada por muitos nobres. É uma lama aristocrática, evidentemente. Depois, é uma frase que tem o que há de intrinsecamente aristocrático no espírito francês. Não se pode negar. Ela tem um quê de bem percebido e de bem-dito como a lâmina de uma espada: aquilo entra no tema, resolve o tema e não tem mais nada a tratar sobre o caso. Está dito, portanto, o que é espírito75.

73 SD 12/1/80 74 Jean Jaurès (1859-1914) foi um político, escritor e jornalista socialista francês, fundador do jornal “L’Humanité”, o qual se tornou mais tarde órgão oficial do Partido Comunista Francês. 75 Chá SRM 2/7/91 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 47


* Menciono agora outra graça de Nossa Senhora. Não me refiro àquilo que todos nós recebemos, que é a Fé Católica e as demais graças que Nossa Senhora dá a todo católico, a todos aqueles que são chamados para a Igreja. É outra coisa: o amor à grandeza, quer dizer, amor aos grandes horizontes, às grandes almas, aos grandes feitos, aos grandes ambientes, às atmosferas grandes e em geral a tudo quanto é grandioso. Isto se explicitou em mim com o tempo, por exemplo, quando tomei conhecimento da Revolução Francesa. Não nasceu apenas o ódio à Revolução, mas o amor à grandeza. E quando abri mais ainda os olhos para a Idade Média, esse amor à grandeza chegou ao seu requinte76. Propensão para a reflexão, a seriedade e a gravidade Sou espontaneamente refletido. O fato de pensar em tudo quanto faço me é natural desde pequeno. Mas não sou uma pessoa afetada, que estudou tal gesto. Essas coisas me são naturais77. E todas elas têm um fundo de doutrina78.

* Também em fotografias minhas em pequeno, noto que já estava observando ou fazendo raciocínios, sendo que, antes de raciocinar, eu observava muito. As observações não eram explícitas, eram implícitas. E vinham às vezes acompanhadas de perguntas que deixavam mal à vontade a pessoa em foco. Dona Lucilia intervinha pressurosamente para remediar a minha indiscrição. Essas perguntas indicavam a mesma precocidade: a ocorrência, na extrema infância, de um começo de uso da razão79.

* 76 CSN 13/10/91 77 Chá SRM 9/2/95 78 Chá SB 18/8/88 79 MNF 11/11/94 48

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Quando vi a vida, no primeiro olhar percebi que ela era séria. E amei a seriedade logo que a vi. Gostei das coisas sérias. E nunca fui menino de saber dizer coisa engraçada. Fui um menino de gostar de pensar, de estar muito tempo sozinho, pensando nas coisas como são, ordenando. E isso me dava alegria80. Gosto muito da seriedade. Faço questão de ser sério, porque acho que integra a minha personalidade de católico. E tenho a noção de estar mais consonante com o Sagrado Coração de Jesus assim. Fabrico em torno de mim uma atmosfera de gravidade em que possa respirar. Mas brincadeira, por exemplo, os senhores não me veem fazer. Posso fazer um pequeno gracejo na intimidade, uma vez ou outra. Brincadeira não. É muito pouco, uma coisa muito pálida, e é por condescendência. Brincadeira não tenho vontade de fazer81.

* A Providência é tão boa para conosco que Ela nos favorece pelo que Ela dá e pelo que não dá. Cada um de nós que nasça com uma lacuna, deve amar essa lacuna, desde que, evidentemente, não seja uma lacuna moral. Isto porque, dando aquela lacuna, a Providência de Deus teve o intuito de nos dar em troca algo mais. Desde pequeno, sempre notei que meu espírito era um tanto lento para replicar. Quer dizer, se uma pessoa me fazia uma brincadeira, eu levava algum tempo para compor a réplica oposta. Como não tinha nada do espírito cômico, nem sabia responder com algo cômico uma outra coisa cômica. De maneira que, vivendo em um ambiente de falta de seriedade, sentia-me desarmado, o que me facilitou perceber todo o mal da falta de seriedade. Agradeço a Nossa Senhora de ter-me dado essa lacuna, porque me defendeu contra um mal muito maior, que seria o mal de me entregar à falta de seriedade. É possível que, com uma tal ou qual facilidade que tenho de compreender as coisas, se aprendesse a brincar, eu faria brincadeiras bem-feitas. E arranjaria para mim um lugar de honra no mundo dos brincalhões, ou seja, no mundo da desonra. Essa cátedra eu não quereria ter para mim de nenhum modo. Mas podia ter embarcado nisso. 80 Chá SRM 18/10/87 81 CSN 19/3/88 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 49


Agora, mil vezes senti o papel que faria raciocinando seriamente no mundo dos brincalhões. Seria visto como pesadão, sem graça, desmancha-prazeres, porque o que se queria era outra coisa. E mil vezes fiz a crítica interna, como um menino pode fazer, do que isso tinha de injusto e de estúpido. De maneira que isto me formou muito para a seriedade. Dona Lucilia também tinha a mesma lacuna. Vendo nela como era belo ser sério, isto ajudou-me muito82.

* Durante o meu tempo de menino, no meu tempo de mocinho e até o meu tempo de moço, sentia em mim, de vez em quando, uma espécie de mudança de clima interior, e nessa mudança de clima interior, uma vontade tremenda de me apalhaçar, uma vontade enorme de me pôr na posição de um moleque, e de gozar da coisa chula e banal. E enquanto chula e banal, sentia uma como que mudança de todos os humores dentro de mim. Tinha então a impressão de que toda a minha concepção da vida e das coisas instantaneamente variasse, e quase todo o meu dinamismo, minha vitalidade mudasse, e sentisse um ar livre e uma verdadeira delícia em ser o contrário do que era. Eu resistia a isso pelo favor de Nossa Senhora. Depois sentia que isto passava e voltava ao meu equilíbrio. Percebia isso em crianças que estavam brincando, fazendo por exemplo um jogo ordenadamente, e de repente entrava nelas uma vontade de escachar com o jogo, de arrebentar com tudo, de pôr a língua para os outros, de fazer uma molecagem, de pôr tudo de pernas para o ar e fazer um desengonço de tudo. Naquela hora eu observava que aquela criança passava pelo estado de espírito que de vez em quando me atraía e tinha a impressão de que isto percorria como eletricidade várias crianças que estavam ali em volta. E que, se essas crianças atendessem a esta eletricidade, alguma coisa delas lhes conferiria um domínio e uma possibilidade de maltratar quem não era assim, que era uma coisa meio irresistível. Depois aquilo cessava aos poucos e desaparecia83.

82 Chá PS 29/4/85 83 RN 20/1/71 50

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Propensão para a lógica e a clareza de expressão Tenho uma propensão para a lógica e uma facilidade para raciocinar, para dispor as coisas logicamente. Na disposição temperamental que descrevi nos itens anteriores, a lógica aparece com força de convicção, com garra e com uma evidência de manifestação da verdade. Nessa posição temperamental, as premissas se põem tão claras, tão imparciais, tão limpas, tão objetivas, que as conclusões são como alicerçadas sobre rochas. E daí a facilidade de formar muitas certezas sem esforços sobre-humanos. De onde uma lógica muito grande, procedente dessa placidez de temperamento, mas chegando à dedução de ferro de que simplesmente ceder a essa placidez seria uma indecência. Há ocasiões em que, o que estou eufemisticamente chamando de placidez, é na verdade preguiça, indolência, negação do valor das coisas e no fundo uma displicência budística. Daí a necessidade de reagir, de deitar força, arrancando essa força de si mesmo custe o que custar, até às últimas consequências, para cumprir o dever. É a consequência dessa lógica. Temos então a lógica empenhada em arrancar e impor ao meu temperamento aquilo que é o mais difícil para o preguiçoso: um estado de mobilidade contínua, em que a qualquer momento ele esteja disposto a qualquer esforço, por maior que seja, por mais contrário ao seu temperamento que seja, desde que a lógica mande que aquilo deva ser feito. O que não for isto – repito – é uma indecência. Daí nascer uma força que é plácida, como plácido é o temperamento, mas que é ao mesmo tempo implacável, porque a lógica de si é implacável. Fazemos o raciocínio, estamos certos de suas premissas, está certa sua conclusão, aquilo tem que ser obedecido sob pena de ser uma indecência. Qualquer que seja o sacrifício, é preciso fazer, e tem de fazer, e não tem remédio. Isto é outro aspecto da truculência, que é também, de um lado, chegar às últimas consequências contra a preguiça, a indolência, a displicência. E de outro lado, chegar às últimas consequências no cumprimento do dever, pegando a preguiça pelo gasnate e obrigando-a a se transformar numa mobilidade disponível a todo momento, e pronta para qualquer coisa. Se os senhores tiverem o mau gosto de prestar atenção no meu modo de ser, encontrarão traços do que estou dizendo em muitas atitudes, deliberações, ditos, palavras e resoluções que tomo. Não me explico bem como é que, de tanta moleza, nasceu essa energia implacável. Sou levado a atribuir a uma ação da graça. 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 51


No meu caso concreto, uma coisa dessas não se explica sem uma interferência gratuita de Nossa Senhora, que não procedeu de mim e não tinha em mim nenhuma razão de ser, mas que estava na bondade d’Ela conceder-me. Ela deu porque quis dar, e deu-me forças para receber. E que, por esta forma, passou a ser a constituição do meu temperamento atual. Agora, isto é um lado da questão. Outro lado é a inocência. A minha inocência era muito cândida, muito juvenil, muito alegre, tinha força, e me levou a ser um homem lógico e gostando das últimas consequências.

* Nisto tudo se denotava uma integridade de alma, que em mim era uma disposição – não sei se natural ou em algo sobrenatural – vinda do meu tempo de menino, da minha primeira infância, e que era uma espécie de paixão pela lógica: “Seja claro, pense claro, e chegue a um raciocínio que é um raciocínio que convença a você e aos outros. Raciocine, vamos ver” 84. Eu era muito amigo de tudo quanto é harmonia, de tudo quanto é coerente, lógico, como uma forma de ideal e de bem-estar do espírito. Tudo quanto era ilógico me deixava mal à vontade, tudo quanto era lógico me trazia uma alegria santa85. Aprender a lógica não me custou nada. Via os mais velhos conversarem – porque os da minha geração preferiam jogar futebol –, pegava os trechos mais interessantes da conversa e ia ver como era a lógica86. Quando via alguém fazer em minha presença um raciocínio bem feito, ainda que eu não concordasse com a conclusão, ficava encantado: “Olha que coisa formidável armar um raciocínio! Quando for mais velho, armarei muitos raciocínios, porque é uma beleza! Olha aquele pobre coitado: está encostado na parede porque esse de cá armou um raciocínio e ele ficou sem ter o que dizer. Que coisa esplêndida!”87

* Lembro-me de que – isto que vou dizer é propositalmente exagerado – nos meus primeiros vagidos, de vez em quando aparecia um raciocínio lógico, montado logicamente e com toda a força da lógica. 84 Chá SRM 18/9/94 85 Chá RM 8/5/89 86 Chá SRM 28/10/91 87 Chá SRM 6/1/94 52

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Percebia que aquilo constituía uma qualidade de pensamento com outra força, outra capacidade de demonstração, proporcionando na ponta da lógica uma evidência, e a posse desta evidência era um tesouro extraordinário. Então, de vez em quando, no meio de cogitações de menino, essa lógica aparecia mais ou menos como um líquido grosso que está se solidificando, mas que já começava por solidificar-se em pequenas partes da massa líquida. Lembro-me, por exemplo88, da história de Herr Kinker, um alemão dono de uma pensão em São Vicente onde passávamos uma temporada. Mamãe foi tratar de qualquer coisa e em certo momento desapareci. Ela não sabia onde eu tinha ido parar. E começou então a me procurar. Fora chovia torrencialmente. Ela chegou maquinalmente no terraço, olhou para o jardim e viu-me sentado bem no meio do canteiro dizendo: “Isto é uma injustiça89, eu não fiz mal a ninguém”. Era uma referência a Herr Kinker, o qual, meio tomado pela bebida, havia-me posto de castigo ali. O meu raciocínio era este: só se faz mal a quem fez mal, porque quem não fez mal não merece castigo. Isto era um princípio geral. Ora, eu não fiz mal a ninguém. Conclusão: eu não deveria estar ali, esse homem estava sendo injusto comigo. No fundo, eu estava estranhando um princípio violado. Nem sequer pedia para falar com mamãe. Seria a coisa tão natural se eu gritasse: “Mamãe, mamãe!” Seria até a reação frequente em meninos nessas circunstâncias90. Ela foi correndo me pegar, secou-me bem e depois perguntou-me o que havia acontecido. Então contei para ela que Herr Kinker tinha, não sei por que, se zangado comigo, levou-me para fora e disse-me que eu tinha obrigação de ficar sentado naquele canteiro até que ele viesse chamar-me. Como ele era mais velho, achei que ele, dando a ordem, eu deveria obedecer, mas ao mesmo tempo protestando que não tinha feito nada. Neste episódio vemos o respeito ao princípio de autoridade, não indo embora; mas de outro lado, também não aceitando como legítimo o que ele fez, e daí ficar falando alto e protestando alto e afirmando meus direitos. Fui injustiçado, reclamo; mas, de outro lado, não me revolto: sento-me debaixo do castigo, deixo o castigo chover em cima de mim, mas dizendo: “Não está direito91, eu não fiz mal para ninguém”.

88 MNF 11/11/94 89 Chá SRM 16/3/92 90 Chá SB 22/5/91 91 Chá SRM 16/3/92 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 53


Por detrás desta cena havia um raciocínio, e um raciocínio brandido polemicamente, à maneira de arma: isto é assim, isto é assim, isto é assim92.

* Quanto ao meu modo de falar, minha pronúncia bastante clara obedece a todo um modo de ser feito para servir a causa católica, empurrando cada coisa para o seu lugar e no seu termo. Sabendo que tinha que tratar muitas vezes com pessoas más que não queriam reconhecer as coisas, era preciso martelar a clareza bem direito, para fazê-los engolir o que eu estava dizendo. Faço, portanto, um uso de minha voz ligado aos objetivos de nossa vocação. Mas julgo que mais ou menos todo o mundo modela a voz de acordo com o que está querendo dizer. Isto é uma coisa instintiva. O que pode acontecer é que eu faça isto mais acentuadamente, mais empenhadamente, de modo mais frisante, de modo mais marcante, de modo mais contra-revolucionário. Então carrego as palavras e as frases por perceber que o revolucionário não vai querer admitir e então lhe meto aquilo adentro93. Harmonia entre contemplação e ação Sou eminentemente e antes de tudo contemplativo. Não se diria. Mesmo quem conversa comigo não teria ideia de que sou uma pessoa sobretudo contemplativa. Mas de fato, contemplo o tempo inteiro. E contemplo coisas um pouco sui generis. Sou antes de tudo contemplativo no sentido de que, no fundo, tenho sempre uma apetência pelo absoluto, e todo o meu movimento de alma toma como referência esse absoluto. E considero muito vivamente, e de modo muito sentido, que o absoluto não seja respeitado, não seja amado como deveria ser, e que, por isto, é preciso combater para impor uma determinada ordem. No meu modo de ser já entra algo de pugnaz, porque já sei a priori que estou contemplando durante uma batalha, em função da batalha e para ganhar a batalha.

92 MNF 11/11/94 93 Chá SRM 9/2/95 54

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Um exemplo disto é a seção “Ambientes-Costumes-Civilizações”, da revista “Catolicismo”: é uma pura contemplação e ao mesmo tempo uma pura luta, por apresentar uma análise das coisas como elas são. É uma forma de contemplação que as pessoas em geral não admitem que seja contemplação. Porque, para boa parte delas, a contemplação começa por ser uma abstração. E para nós, não: ela começa por ser uma imersão no concreto. Então, o meu apelo era: 1º) imerja no real; 2º) dê vida ao princípio em função do qual este real se ordena; 3º) julgue-o; 4º) trabalhe contra isto. São quatro posições que de algum modo repetem o “ver, julgar e agir”94 de São Tomás de Aquino95.

* Uma pessoa que tem inteligência especulativa é aquela que, por exemplo, vendo armamentos, é levada a pensar em guerras que foram conduzidas com outro tipo de armamento, de outras maneiras. Depois compara os tipos de guerra, e nota as analogias como nota também as diferenças. Começa então a especulação: “O que é uma guerra? O que há de comum em todos os modos de combater, a ponto de se chamar guerra? Qual é a essência da guerra? O que faz com que a guerra não seja guerrilha?” Depois disso, ele põe a pergunta: “A guerra é boa ou é má?” Depois de definir bem essas coisas, aquilo é como uma pessoa que entra na minha vida: gosto ou não gosto? Há um feitio de inteligência que é muito dado ao amor ou ao ódio à coisa abstrata. Amor à guerra legítima, ato de ódio à guerra ilegítima, ou ato de ódio a toda e qualquer guerra. Amor a todas também. Então, há gente que toma a coisa em abstrato e se toma de entusiasmo por isso. São os espíritos contemplativos. Agora, há os espíritos operativos. Não lhes basta acumular contemplação sobre contemplação, mas são muito sensíveis ao que se passa em torno deles. Querem que as coisas se passem de acordo com aquilo que a contemplação ensinou. Então, são pessoas que tomam posição, operam, atuam.

94 Essa trilogia condensa os três momentos do exercício prático da virtude da prudência. 95 CM 9/5/93 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 55


Os ploc-plocs96 são conhecedores profundos da Suma Teológica, mas incapazes de um esforço operativo. Por outro lado, há homens insignes na operatividade, mas incapazes de se deter um minuto na análise de uma ideia abstrata. Como o homem foi feito para inteligir e agir, ele deve saber tomar aquela qualidade que ele tem mais acentuadamente, digamos a operativa, e ter uma contemplatividade à altura de sua operatividade. E isto ele deve arrancar de si. Se não arrancar, é um espírito incompleto, desarmônico e malformado. A recíproca também é verdadeira: salvo vocações especiais, os contemplativos devem exigir de si operação e se interessar pelos fatos. A interrelação, a proporção, a harmonia entre contemplatividade e operosidade é um bem insigne da Providência. É bom, é razoável que a alma seja assim. E isto pode ser dado a um homem comum, pode ser dado, por exemplo, a uma dona de casa. Considero que Nossa Senhora, ou pela via da natureza, ou pela via da graça, me deu uma boa proporção de ambas as coisas. Não estou me proclamando gênio, nem homem super capaz da ação. Digo só que essa proporção é boa. E dou graças a Nossa Senhora por ser uma proporção adequada. Isto faz com que minha ação fique sempre a serviço da contemplação e a contemplação fique sempre voltada a produzir efeitos para a ação. Em meus livros estão presentes os dois lados. O lado operativo de um homem colocado diante de alguma coisa concreta, onde há o risco de se passar algo que ele não quer. E o lado contemplativo de quem percebe que isso não deve se passar assim e tem “n” razões para isto. Então estuda, chega à convicção profunda e nasce o livro. É o produto da contemplação e de um esforço da ação. Os senhores nunca notaram em mim dúvida se devo contemplar mais ou agir mais. Não. Contemplo assim, faço assim, e está acabado97. Propensão para a ordem e para a reverência à autoridade A coisa posta de acordo com a lógica está na sua boa ordem. Quando as coisas estão na ordem em que devem estar, elas me comprazem. Quando estão fora dessa ordem, as coisas me desagradam. 96 “Ploc-ploc” é, na linguagem interna da TFP, a expressão jocosa criada por Dr. Plinio para indicar o indivíduo de mentalidade filosofesca e quadrada, o qual procura substituir pelo raciocínio formalmente estruturado as certezas que são evidentes segundo o senso comum. 97 CSN 28/5/83 56

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Daí nasceu em mim um gosto de analisar tudo segundo a ordem, e não segundo o que me agrada, e amar o que é conforme à lógica, e a não querer o que não for conforme a lógica. O gostoso ou não gostoso representa algum papel na vida de um bom gastrônomo, como fui a vida inteira. Mas é um papel de quinta categoria. Posso apreciar e elogiar muito um prato, mas isto para mim se passa nos arrabaldes, nos subúrbios da existência. A minha reação é realmente ver se determinada coisa está conforme o bem, se está conforme a ordem, se concorre para a ordenação geral adequada das coisas ou não concorre. Agora, tinha de ser, nessa ordem de coisas, que eu fosse desde logo muito propenso ao princípio de autoridade, por ser este princípio, segundo a noção de ordem, incumbido de manter a ordem no lugar. Portanto, para mim, todo o detentor da autoridade – ainda mais naquele tempo, em que as coisas estavam longe de estar deterioradas como hoje – eu o sentia como um aliado contra as possíveis desordens que havia. Daí a minha propensão contínua a reverenciar o princípio do respeito à autoridade. E também, em consequência, a ter uma admiração muito grande pela elevação, pela coisa alta que é a autoridade. Era o próprio princípio do amor à ordem levando ao amor do que é mais alto, porque a ordem se mantém secundariamente pelos seus agentes subalternos, mas ela é mantida principalmente pelos seus agentes supremos. Donde, para mim, aquele que está investido de uma supremacia, deve ser objeto de um respeito especial, de uma adesão especial, de uma elevação especial e de uma admiração especial. Saber que existe a autoridade, e que a autoridade deve exercer-se como eu via que ela era exercida naquele tempo, me enchia de regalo. Assim como uma pessoa com uma sensibilidade decorativa muito forte pode regalar-se considerando uma sala muito bem florida, assim também a vida humana tem os seus adornos. E o mais belo dos adornos da vida humana é o esplendor da autoridade que rege a vida98. Propensão para a radicalidade e para a luta Olhando para fotografias minhas do tempo de pequeno, noto essa espécie de empuxe primeiro contra toda forma de mal, e de preferir, a qualquer comodidade, a destruição desse mal.

98 Chá SB 22/5/91 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 57


Lembro-me de mim mesmo raciocinando, vendo como um lado era bom e o outro lado era ruim, e combatendo a preguiça de ser como devia, para fazer a vontade de Deus. Foi dos combates duros de minha vida. Foi porque resolvi entregar-me inteiramente, pela graça de Nossa Senhora, aos pendores bons de minha alma, que combati muita coisa. E espero de Nossa Senhora a graça para combater muito mais99. Há outras fotografias – parece incrível, mas com dois ou três anos de idade – em que estou com uma cara desconfiada. Não é um olhar de quem diz: “Você tem alguma coisa feia na alma de que estou desconfiado”. Mas é uma fisionomia interrogativa de quem indaga: “Como é este? O que dará aquele?” Numa dessas fotografias estou sentado em uma espécie de cadeira para menino, com os braços colocados no apoio da cadeira e com o olho atento no fotógrafo: “O que é que vai sair daí?” Graças a Nossa Senhora, nativamente meu temperamento era: “Cuidado, cuidado, que de qualquer coisa sai qualquer coisa, e é preciso prestar atenção”. Uma atenção, como já se vê naquelas fotografias, calma, fixa e analítica100.

* Em várias ocasiões, alguns dos senhores me fizeram perguntas muito curiosas, quase sobre bagatelas de meu dia a dia, que respondi evidentemente com bonomia e boa vontade. Por exemplo, certa vez perguntaram-me por que nos dias de calor eu tomava chá e leite quente, e não suco ou algo frio. E porque gostava de comer torradas de duas em duas. Quanto a tomar chá e leite quente em dias de calor, o fato é que a coisa muito fria não me refresca, e a coisa muito quente não me aquece. É quase o contrário. Tomando uma coisa muito quente, sinto-me refrigerado em face do ambiente. Quer dizer, uma coisa mais quente do que o ambiente, me faz sentir o ambiente mais suportável. É um modo de reagir que não tem nada de psicológico. É puramente físico. Talvez haja nisso um princípio, que é o amor à radicalidade. Quer dizer, reagir pela radicalidade: se está muito quente, vou tomar calor maior e me sentir arejado101. 99 Jantar EANS 4/5/92 100 Jantar EANS 13/10/91 101 Chá SRM 15/11/90 58

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* Agora, somem todos esses aspectos e os senhores terão a ideia de uma síntese do meu modo temperamental habitual. Junto com o amor à grandeza, e junto com o espírito contra-revolucionário, vinha o gosto pela luta ideológica e pacífica, o gosto de ver o adversário derrotado, o gosto de levar a luta até às últimas consequências. Se é preciso lutar, temos que chegar até onde a luta tem de ir, evidentemente dentro das leis dos homens e da lei de Deus. Ou venço o adversário, ou a luta não acaba. E nessa luta devo ir até aos últimos pormenores. E se é para derrotar um adversário, faz-se dele, do ponto de vista ideológico e sem nenhuma violência, o que os pagãos fizeram com o Templo de Jerusalém: derrubaram o Templo, o desconjuntaram e quebraram as pedras, transformando as pedras em pó e dispersando esse pó. Este é o modo pelo qual concebo a vitória da Contra-Revolução sobre a Revolução. É uma vitória completa, truculenta, minuciosa, que não deixa nada. Mas em que o papel do temperamento é muito menor do que o papel da lógica, e em que tudo isso se faz na consideração calma, tranquila e enlevada daquilo que é grandioso, que tem que dar a medida exata de como as coisas devem ser na vida. E, então, uma indignação também calma, mas que nem por isso deixa de ser veemente, e se traduz nessa comparação que fiz do Templo de Jerusalém. E, dentro dessa minha calma e de minha placidez, não querer ter sossego, nem conceber sossego enquanto essa vitória não esteja obtida102. Propensão para a truculência e para as soluções “transiberianas” Os que convivem comigo não me veem nada indiferente em relação a um número enorme de ambientes, de pessoas, de situações, e de ser até mais enfático do que muitas outras pessoas103. Nunca fui um “água morna”. Sou truculento, mas sem ser explosivo104. Antes de ter que andar de muletas, meu modo de subir escadas e de caminhar era categórico. Porque o que quero, quero muito. E se quero subir uma escada – e nunca gostei de subir escada –, quero que isto leve o menor 102 CSN 13/10/91 103 MNF 17/3/95 104 MNF 17/5/90 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 59


tempo possível; logo, subo o mais depressa possível para acabar logo. Então, se é para subir uma escada, que seja de dois em dois degraus, vamos lá!105

* Se os senhores soubessem a saudade que tenho de dizer as coisas no duro! Os mais velhos, que me conhecem há mais tempo, sabem que sou um decidor de coisas diretas, no duro, sou transiberiano106 e truculento pelo modo de ser. Ou seja, sou indolente por natureza, mas se mexem comigo, para não ter muita amolação, entro por inteiro e acabo logo de uma vez com a briga. Isto porque, quem não gosta de brigar, briga logo como que a tiro; e não vai ter uma longa briga de tapa que acaba dando um trabalhão, sua, suja, rasga. Não é o caso. É o caso de brigar? Então está bom: brigo em pouco tempo, você me liquida ou eu te liquido, mas lá vai. Pammm! e pronto. É o que eu chamaria de uma “operosa indolência”. Se os senhores quiserem, podem chamar de “truculenta indolência”, mas é isto. Os que foram meus alunos sabem como eu estancava os motins nas salas de aula. Era ali, na própria fonte do motim. Era o senso da comodidade, porque depois não tinha o incêndio, o balde de água, as negociações diplomáticas nem nada. Delineou-se o primeiro pequeno esboço de motim, caio em cima do inseto, achato, não tenho mais amolação: mando e se faz. E tudo corre bem107.

*

105 Chá PS 8/9/89 106 “Transiberiano” era um neologismo utilizado por Dr. Plinio para indicar uma decisão drástica e direta, sem muitas curvas diplomáticas. Esse neologismo nasceu de um pequeno lapso histórico, a partir da ideia que Dr. Plinio fazia de como teria sido o planejamento da estrada de ferro Transiberiana. Segundo lhe parecia, para construir essa estrada, o Czar convocou vários engenheiros, e na hora do traçado armou-se uma discussão infinda, pois cada um queria que os trilhos passassem pela cidade de cada qual. A celeuma ia mar alto, quando o próprio Czar, perdendo a paciência, pegou uma régua e traçou uma linha reta entre Moscou e Vladivostok, dizendo impositivamente: “Este será o trajeto da estrada de ferro. Agora construam-na!”. O núcleo da narrativa é verdadeiro, mas o que se discutia não era a construção da ferrovia Transiberiana, mas a que ligava Moscou–São Petersburgo. Não obstante esse lapso histórico, que aqui deixamos registrado, o termo “transiberiano” prevaleceu dentro da TFP como a imagem de uma tomada de posição categórica e sem rodeios. 107 RR 26/10/74 60

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Uma vez uma pessoa me disse: “Olhe, quer saber de uma coisa? Seu passo, seu modo de andar, sua gargalhada, o saber que você está numa sala ao lado, tudo isto me dá antipatia. Você inteiro me é antipático”. Era uma pessoa de um violentíssimo fundo liberal e, portanto, detestando tudo quanto é categórico; e essa detestação vinha do fato de ser muito categórico. Dou-me bem conta de que, até no tom de voz, sou categórico. E quando digo “categórico”, digo um categórico-categórico mesmo, e não um categórico qualquer. Disto me dou conta e sei que sou assim. Essa pessoa era muito aveludada, muito amiga dos matizes, muito cambiante e detestando qualquer forma de imposição, ainda que fosse a imposição persuasiva da lógica108. Nesta mesma linha, está no meu temperamento achar que os goles grandes e os bocados grandes têm mais sabor. As regras da educação dizem o contrário: devemos tomar goles pequenos e comer bocados pequenos. Acho isso de uma “sem-gracês” completa! Se é para pegar, pega logo!109 A truculência nasce de uma posição temperamental inicial levada até as últimas consequências, até a consequência do inimaginável e do que poderia passar pelo esdrúxulo. Por exemplo, os senhores me veem gastrônomo, e veem bem que, se não fossem questões de saúde, eu levaria os prazeres da mesa muito mais além. Veem-me amigo do luxo, porque gosto do luxo; veem também que, se eu tivesse dinheiro, levaria esse gosto pelo luxo muito mais longe, levaria até a última consequência que tivesse proporção comigo levar. Este amor à última consequência se desdobra no horror de ficar abobadamente parado numa coisa sem saber por quê110. Ponho toda a truculência possível, levado pela ideia de que o nunca chegar ao extremo limite das ideias, das convicções e das sensações sadias produz uma espécie de raquitismo do bem que acho altamente danoso111.

* Uma pessoa “x” tinha muita estranheza comigo quando me conheceu. Vira e mexe, eu chamava alguém de crápula, de cachorro leproso e outras coisas assim. Ele dizia: “Mas não é tanto assim”. 108 RN 1/4/70 109 Jantar EANS 24/3/87 110 CSN 13/10/91 111 CSN 7/6/80 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 61


É evidente que o cão leproso é uma pura repulsa truculenta e mais nada, sem nenhuma beleza literária. Mas era a ânsia de exprimir uma totalidade de rejeição por uma totalidade de apodo. Literariamente esse apodo não valia nada, mas moralmente tinha sua justificativa. Não que eu achasse que o sujeito fosse um cão, menos ainda que fosse leproso, mas era a expressão do total da minha rejeição com meu maior furor. É uma hipérbole, que é boa sobretudo para as coisas que não são inteiramente ruins, em relação às quais se poderia comprazer, e das quais se defende chamando assim. Não é tanto uma necessidade de me exprimir a mim mesmo, mas é, estando frequentemente em contato com interlocutores que não vão querer levar a rejeição tão longe quanto eu, empregar um adjetivo que os arraste, que os pegue pelos ombros e sacuda a modorra deles, e os leve também até à inteira rejeição em que quero pô-los também112. Quando procurava comunicar algum sabor às críticas que fazia, a intenção principal – não a única intenção – era atrair os indivíduos, pelo deleite que esse sabor possa ter, a uma posição de crítica ao mal. Isto não era propriamente truculência. Isto era um pouco como a caricatura, que exagera as coisas para que se entenda um certo fundo que há na pessoa ou na situação caricaturizada. Tive, a certa altura, que deixar de fazer essas críticas assim, pois passaram a ser consideradas como uma truculência pitoresca, mas que afastava as pessoas de mim113.

* Sempre achei que a questão da meta está intimamente ligada à questão do método, e reciprocamente. Quando se quer muito uma meta, adota-se, sempre que possível, o método transiberiano. E quando temos uma mentalidade transiberiana, se a linha geral não pode ser transiberiana, as linhas secundárias serão transiberianas; e quando as linhas secundárias não podem ser, serão as capilares. Mas a marca digital do transiberianismo se encontra no fundo da questão. Posso dar disso um depoimento insofismável. Os senhores me conhecem bem, sabem que transiberianizo logo que posso. Se há uma coisa em mim à maneira de falta de ar é quando fico à procura de uma ocasião para transiberianizar114. 112 EVP 26/11/72 113 EVP 18/5/86 114 RR 3/10/76 62

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Se pudesse, eu viveria de decisões rápidas, drásticas e imediatas e viveria transpondo o Rubicon. Aonde a minha alma se sente inteiramente ela mesma é transpondo o Rubicon. Aí me sinto eu. O Rubicon é o clima de minha alma, embora isto não queira dizer que eu não tome enormes cuidados antes de o atravessar. Os senhores não imaginam como eu era rubiconista antes de conhecer a geração nova, e como eu liquidava as situações e resolvia de plano, logo e sem conversa. Era ali! Mas depois que conheci a geração nova, compreendi que muita coisa não pode ser assim e tive que me adaptar sem me transformar115. Tendo tido a força para ser decidido e resoluto, tenho agora de fazer o contrário, deixando as coisas se espicharem indefinidamente pelo rio chinês116. Quando vejo o rio chinês, brota em mim a pergunta: “Aguentar isto para quê? Arrebenta logo com isto!” Mas tive de suportar. E acabei percebendo que, se fizesse o que queria, não daria glória a Nossa Senhora, e essa glória só seria inteira se eu fosse capaz de fazer o contrário do meu modo de ser. As esperas indefinidas só são gratas a Deus quando praticadas pelos espíritos transiberianos. Deito bramidos pelo transiberianismo e sou obrigado a sorrir e subir na torre perpendicularmente, pelo lado de fora, para contemporizar. Essas contemporizações, entretanto, dariam um caráter vil ao Grupo se não se percebesse que sou o contrário delas. A meta última não é a misericórdia, mas a conquista de almas para o Céu. O que é mais eficiente? Esta é a pergunta. Qual é a melhor tática para a Contra-Revolução? Esta é a questão. E se a resposta for: “A contemporização”, então contemporizo. E noto que a graça faz esse jogo também. Não obstante, que nostalgia tenho dos tempos em que podia pôr os pingos nos “is”. Fico então à espera de uma trovoada sublime, que desperte a cidade inteira117.

115 RR 10/4/74 116 “Rio chinês” é uma metáfora muito usada por Dr. Plinio, baseada nos vais e vens do gráfico traçado pelo grande rio chinês Yang-Tse-Kiang até chegar ao mar. Esse gráfico não forma uma linha reta, mas descreve uma série enorme de voltas, de recuos, de desvios, ora distanciando-se, ora aproximando-se do seu ponto de chegada, antes de pôr fim desaguar no mar. 117 CSN 14/1/78 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 63


Equilíbrio temperamental resultante da temperança e do gosto pelos opostos harmônicos e pela unidade dentro da variedade Entre uma coisa bem ordenada e outra bem ordenada, há uma afinidade muito grande, embora haja também diferenças. Por exemplo, a luz de uma vela e a luz de um farol são coisas muito distintas, mas há muita afinidade entre uma coisa e outra. Essa afinidade percebemos sobretudo ao fazer a comparação da luz com as trevas. Assim também com os indivíduos: o que há de ordenado no temperamento de um deve servir de exemplo para o que há de ordenado ou de ordenável no temperamento de outro, embora guardando cada um as peculiaridades provenientes de sua constituição física118. Todo jovem contemporâneo tem uma dificuldade parecida com a de um homem que tivesse uma perna muito mais curta do que a outra. Ele está em pé e se apoia em uma das pernas, mas não sabe como apoiar a outra para ter o equilíbrio necessário. De modo análogo, temperamentalmente falando, ele tem dificuldade de encontrar o ponto de equilíbrio, o ponto de estabilidade, o ponto em que ele sente que está mesmo na posse da verdade, a qual poderia lhe dar a convicção de que está com o pé no chão. Assim, cada um tende a mancar de um lado. E quereria de mim uma atitude temperamental que o ajudasse a manter-se firme no pé que é curto. Em mim não houve tendência para mancar de um lado. Graças a Nossa Senhora, sempre tive muito equilíbrio. Embora muito mole por defeito, entendia perfeitamente que não se deve ser mole e tinha vergonha de ser mole. Tinha o plano platônico, genérico de um dia deixar de ser mole. Lembro-me de que, desde pequeno, tudo quanto era sem equilíbrio me desagradava. Aliás, conheci gente extraordinariamente equilibrada. Há uma ordem criada por Deus pela qual o universo apresenta o suficiente de oportunidades para que todas as notas que há dentro do indivíduo possam vibrar em confronto com isso. Tal como uma harpa, o universo é uma emissora de sons, os quais fazem vibrar, no momento oportuno e na ocasião oportuna, cada uma de suas cordas, de maneira tal que nenhuma corda fique sem exercitar-se adequadamente.

118 Chá PS 10/5/91 64

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Assim, eu era levado a compreender que o indivíduo, para ser senhor de si, não se mete a ter manias, e em cada circunstância vibra de acordo com o que aquela circunstância impõe. Ele sabe inclusive desligar a sua vibratilidade quando percebe que, o que o está solicitando, são coisas supersônicas e que fazem a vibratilidade vibrar demais. Ele então pode chegar até a enclausurar-se na atonia nas ocasiões em que ela se impõe, e assim viverá de acordo com o plano de Deus para ele. Este é o verdadeiro equilíbrio119.

* É preciso que as virtudes cardeais sejam praticadas por amor de Deus para que a pessoa se domine em mil circunstâncias. E se domine tanto para combater se ele não está com vontade, quanto para não combater se ele está com vontade de combater na hora errada. O que supõe um governo de si que é o pináculo das virtudes cardeais. A minha família paterna era muito eclética neste ponto. Ela tinha homens muitíssimo pacíficos, mas tinha também alguns homens de têmpera muito dura. Um deles era o Conselheiro João Alfredo. Já meu pai era pacífico a um ponto inimaginável; resolvia todas as coisas por arranjos e tinha habilidade para isto. Na família de minha mãe, alguns eram muito coléricos e outros muito tranquilos. Tenho a impressão de que herdei uma espécie de “melting pot”, isto é, um caldeirão de raças onde se misturam todas essas coisas, de maneira que ora aparece um lado, ora vem à tona o outro. Isto torna até certo ponto muito mais difícil governar-me, mas por outro aspecto até torna isto muito mais fácil, por eu ter, ao alcance de minha mão, a disposição temperamental que a situação e a justiça exigem. E, por outro lado, por poder lançar mão de qualquer uma dessas variedades na hora que eu queira. Assim, sei perfeitamente que grau de zanga posso ter ou posso não ter, como é que vai, como não vai. Muitas vezes quero mostrar-me muito zangado, mas não vou além do que quero. Mas também, se estou pacífico, tranquilizador, é exatamente no grau que quero estar, quer dizer, que acho que é do meu dever e é da minha vantagem. Entra nisto um esforço em que a diretriz é de fundo diplomático: “Convém ou não convém zangar-me?” O que é bem diferente de dizer: “É gostoso zangar-me agora ou não?”

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Não entra o gostoso. A primeira pergunta é se é justo, porque não se pode fazer uma injustiça. A segunda pergunta é se é útil. Se é justo e útil, lá vai120.

* Como já disse, não fervo nunca, detesto ferver. Por isto também detesto ficar nervoso, detesto “torcer”, detesto afligir-me, gosto de estar caudalosamente calmo. Mas, se noto que, dentro dessa calma, e sem sair nem um pouco dela, algo ameaça perturbá-la, nasce uma fria resolução: “Aquilo precisa levar na cabeça e acabar logo de uma vez para nunca mais me amolar. Esta minha calma é minha respiração e não pode ser interrompida”. Mas isto não tem nada de parecido com a raiva. Não me enfureço, não me encolerizo. Não quero dizer que seja virtude ou defeito, é um modo de ser. Meu modo de ser é este121.

* Minha tendência é para a estabilidade, cortada de vez em quando por alguma grossíssima aventura não muito perigosa. Por exemplo, uma grossa polêmica, uma grossa encrenca, mas com riscos calculados: não vai além de tanto, de maneira que se possa dormir tranquilo no auge da espadagada. Mas até o ponto de sacrificar o sono, a coisa não vai122. Sempre que estou metido em risco, são os outros que me puseram. E, para não fazer mal à alma de quem fez isto, não freio. Como detesto o risco, sofro com o risco imensamente, mas a promessa de Genazzano123 me tranquiliza, e enfrento o risco com serenidade124.

* Uma vez me perguntaram por que dou preferência a ler livros em francês.

120 Chá SRM 30/11/93 121 RR 29/1/80 122 RN 2/10/72 123 V. página 25. 124 Chá SRM 18/4/91 66

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É próprio ao homem, por ser truculento, gostar daquilo que é forte, duro, difícil de conseguir. Traduzido isso em termos de gastronomia, é próprio ao homem gostar, por exemplo em matéria de pães, de “pãezões”; em matéria de carne, de “carnonas”, porque isto faz parte da truculência do homem. Agora, o homem não é feito só de truculência. Nas horas de lazer ele gosta dos prazeres de espírito ligeiros, interessantes, originais, imprevistos e harmoniosos. É natural. Isto explica por que, gostando tanto das coisas alemãs, no entanto, na hora de ler, eu prefira os livros em francês. Embora a língua alemã proporcione todos os gostos da truculência, ela não proporciona os gostos da leveza. Proporciona também, mas em medida menor. A meu ver, há alguma coisa no espírito francês que distrai e areja mais do que qualquer outro espírito ou mentalidade do mundo. Inclusive para descansar, não há como a leitura do francês. Dou disto um exemplo palpável. Considerem a configuração do castelo de Chenonceaux, sobre o rio Le Cher, no vale do Loire. Aquela ideia de construir um bonito castelo em cima de uma ponte, deixando passar por debaixo as águas do rio; e o castelo como que flutuando nas águas, com as galerias iluminadas à noite com luzes de vela que repercutem nos dois lados sobre as águas – que maravilha! Outro exemplo. Para designar o som das águas, nós diríamos em português “o rumorejar das águas”; em francês se diz: “le bruissement des eaux”. É outra coisa! Não tem conversa. Então, desde muito cedo, nas horas de lazer, fiz do francês a língua de minhas leituras mais agradáveis. E como tinha uma vida muito dura, muito cheia de ocupações, eu só tinha tempo para ler nas horas de lazer. E lia em francês. Viajando para a França e chegando lá, desço no aeroporto e já me sinto em casa. Não que eu procure imitar o francês. Julgo a coisa mais ridícula do mundo um indivíduo do povo “A” procurar dar a impressão de que ele é do povo “B”. Sou um brasileiro e está acabado. Mas, mas, mas, mas, mas... entro na França como entraria em Chenonceaux. Na Alemanha eu já teria que me habituar. Mas há uma porção de coisas do meu gosto que, nessa exclusiva convivência com o francês, ficam clamando pela coisa alemã. Por exemplo, o duelo. O duelo é uma coisa censurável. Pode ser feito de um modo mais bonito ou mais feio.

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O duelo francês, feito de ponta de espada, de maneira tal que a espada age como se fossem dois bicos de colibris que estão brigando, não me agrada. Não é o meu modo de brigar. E não imagino os margraves alemães ainda do tempo do duelo, com sapatões, laços de fita grandões e uns pernões, fazendo um duelo assim. É uma espadagada para liquidar com o outro de uma vez. Gosto disso. Estamos lutando? Está bom. Então vamos fazer isso logo, de uma vez e para valer125.

* Como é que eu, que gosto tanto de argumentar, de desbravar as coisas, de ir bem até o fundo delas, de fazer raciocínios lógicos e bem pesados para demonstrar o que quero demonstrar; como é que eu, de repente, apareço entusiasta diante de uma pirueta dessas o mot d’esprit de Jaurès, citado no item anterior? Não há nisto uma contradição? Quem me conhece por alto não poderá dizer que sou incapaz de apreciar uma pirueta dessas? É que o gosto pela ordem do universo faz com que se saiba gostar dos opostos harmônicos. Quem gosta muito e seriamente da coisa razoável, sólida, pensada, gosta também da coisa que tenha o voo de um colibri. E é na simultaneidade desses gostos que se descobre a mentalidade de uma pessoa126.

* Quando fui visitar o castelo de Chambord em 1988, fiquei encantado. Chambord é a quintessência, o fausto. Mas se hipoteticamente eu devesse logo em seguida ir à Bretanha para conhecer a arte popular bretã, tenho certeza de que gostaria inteiramente das duas coisas, o que não significa que eu gostasse igualmente das duas coisas. Procuraria apreciar cada coisa intensamente como ela deve ser apreciada. O indivíduo que não fosse bem equilibrado diria: “Aquelas coisas de camponeses? Eu perder tempo com aquilo? É uma coisa analfabeta em comparação a Chambord”. Devagar. Não é verdade. Na arte popular reluzem alguns brilhos, algumas qualidades do verum, bonum, pulchrum que a arte de Chambord não dá. E tenho de ser admirador de um belo potencial que se realizou em Chambord de um jeito, na casa da Bretanha de outro jeito, em Rottenburg 125 Chá PS 1/5/91 126 Chá SRM 2/7/91 68

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de outro jeito; em Salvador-Bahia, no largo do Boticário-Rio; na igrejinha da Glória-Rio, de outra maneira. Todos são elementos de um pulchrum ideal, para o qual tenho que ser inteiramente vibrátil, de acordo com a ordem das coisas. Mas eu via que não se ensinava isto. Ensinava-se até o contrário. Todo o cinema, a televisão, conduzem para fruições unilaterais contrárias, as quais fazem perder o gosto da vida e a aptidão para o Céu. Sou aberto a tudo isto. Sou aberto em todas as direções. Nunca ninguém me viu fechado para alguma coisa, a não ser para o mal. Entrou o mal, aí é outra coisa: é a guerra. Mas nas pistas do bem, gosto dessa enorme variedade. Na TFP, por exemplo, trato com pessoas das mais variadas nações e tenho certeza de que todos acertam comigo127. * Li nas memórias de Metternich o seguinte trecho, em que ele descreve o lugar onde morava: “Meu gabinete de trabalho é uma grande sala com três janelas, tem grandes escrivaninhas, porque gosto de mudar de lugar. Não me agrada habitar salas pequenas e sobretudo detesto trabalhar nelas. Num espaço demasiado estreito o espírito endurece, o pensamento fenece e o coração murcha”. Vemos que ele tinha um espírito dispersivo que foi jeitosamente educado por ele à concentração, com uma judiciosa concessão a certas formas dispersivas que não prejudicassem essa concentração. Quanto a mim, me agradaria mais ter quatro ou cinco salas de trabalho bem diversas: uma bem aconchegante, outra bem solene; uma séria, austera, e outra alegre; uma até pequena e íntima, ao contrário do que diz Metternich, para certas coisas de vez em quando. E, conforme a matéria que eu tivesse de tratar, ir para uma determinada sala ou outra. Tenho a impressão de que essa variedade de ambientes me facilitaria muito consideravelmente a produção intelectual, supondo que cada sala tivesse um arranjo inteiramente diverso. Mais ainda: eu, que sou tão estável e tão fixo, gostaria de ter quatro ou cinco quartos de dormir diferentes. Pois há dois modos de dormir: um é o modo de dormir do homem que se deita à maneira de bicho. Ele desacorda na cama e a matéria ressona. Durante esse tempo, as suas funções intelectuais cessam tão completamente, que ele teria a sensação de um bicho que dorme. 127 CA 1/3/89 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 69


Outro modo de dormir é ter um quarto feito de tal maneira que o indivíduo adormece num certo estado de espírito que se prolonga pelo sono afora, e dá o tipo de repouso que se quer. Nesse repouso, algo da função intelectual continua dentro do sono, sem tensão nem cansaço. É uma coisa que dá ao sono o seu verdadeiro caráter. Eu gostaria de, na véspera ou na preparação de grandes resoluções, ter um quarto de dormir imponente, grande, majestoso, cama larga enorme em cima de degraus de primeira categoria, e com dossel. Já quando me sentisse cansado ao longo de um grande trabalho, ou depois de uma grande batalha ganha, gostaria de dormir num quarto ligeiro, sempre distinto, mas agradável e alegre. Gostaria de ter vários quartos assim, também vários escritórios assim, e eventualmente várias salas de jantar e várias baixelas assim. Os senhores dirão: “Por que não vários palácios ou residências?” Porque gosto muito pouco de me deslocar. Cada um tem o seu temperamento. Ter no mesmo lugar uma variedade fixa, isto me agradaria muito. Na hora eu diria onde quero dormir, trabalhar ou comer, estando tudo preparado. Isto para mim seria agradável. Gostaria também de ter uma sala-síntese. Pois, onde tem a variedade, existe um lugar para a síntese, do contrário a variedade não deleitaria. Esta sala poderia se chamar a Sala da Fixidez, onde todas as funções de meu espírito pudessem encontrar ao mesmo tempo o seu reflexo. O ideal dos ideais seria se eu pudesse fazer meu trabalho numa sala onde estivesse o Santíssimo Sacramento e houvesse uma escrivaninha onde pudesse trabalhar, onde também pudesse mandar cerrar uma cortina e fazer uma reunião, mas sabendo que o Santíssimo está ali. Nessa sala, na parte onde não está o Santíssimo Sacramento, deveria haver uma imagem de Nossa Senhora que não me deixasse nunca. Isto seria para mim o lugar da fixidez, a unidade na variedade. As outras salas seriam como que um aspecto dessa sala levada até as suas últimas consequências. Isto me agradaria muito128. Um reflexo particular da harmonia temperamental: o equilíbrio entre pessimismo e otimismo, entre confiança e desconfiança Nos efeitos de uma má notícia na alma de uma pessoa, podemos encontrar dois aspectos. Um é o amargor da má notícia e outro é o susto da má notícia. 128 RN 7/6/74 70

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Para meu temperamento, o susto é um impacto horroroso. E o jeito que tenho de evitar o susto é logo de uma vez ir à previsão do pior. Prever é considerar que tal coisa pode acontecer. E quando traçar meu plano de luta, vou colocar em linha de conta a possibilidade de aquilo acontecer, ainda que seja improvável, e preparar as coisas para que aquele pior não aconteça. Portanto, sem exagerar a probabilidade do pior, ficar o tempo inteiro prestando atenção. O fato é que, se formos de uma vez até o fim e prevermos tudo o que pode acontecer, uma coisa não acontecerá: é o susto. E outra coisa não acontecerá: é a inocência de quem andou retamente ser derrotada na luta por falta de previsão. Então, está mais perto da vitória quem prevê desde logo o pior. E prevê com confiança em Nossa Senhora e com energia129. É por isso que penso geralmente nas coisas desagradáveis. Nas agradáveis não se pensa. Quando elas chegam, as saudamos, as inalamos e depois tocamos para frente130. Toda a vida considerei um dever de honestidade mental pensar mais na eventualidade de coisas arriscadas e perigosas, do que nas agradáveis. Se há uma coisa que me proíbo a mim mesmo são os sonhos de olhos abertos. Se nunca penso nas hipóteses agradáveis, delicio-me com elas quando elas acontecem. Quando acontece uma coisa muito boa eu me alegro. Quando se trata de coisas que não vão bem, enquanto estiver assim, sinto-me na obrigação de pensar assiduamente nelas, pensar amargurado, aflito, muitas vezes sem saber como resolver e pedindo a Nossa Senhora que me faça ver uma solução. Naturalmente, quanto menos entendo da matéria que não vai bem, tanto mais fico preocupado, porque não sei introduzir os remédios adequados para a situação que se define. E entre essas coisas esteve durante muito tempo o conjunto da produção e gestão financeira dentro da TFP131.

* Creio que está impressa na minha cogitativa, por desígnios divinos, é a ideia de que, no total, se não me desfalcam, se não me mutilam, se não me espandongam, chego até onde quero. 129 Almoço SB 25/9/87 130 Chá SB 17/2/81 131 Chá ENSDP 5/12/94 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 71


De maneira que o meu primeiro ato não é de ir para frente, o meu primeiro ato é de impedir de ir para trás, é impedir que alguém me induza, ou que eu mesmo me induza, a andar por um caminho errado. Porque se me deixarem sozinho no caminho certo, vou naturalmente para frente. Esta disposição de espírito se nota até em fotografias minhas de muito pequeno: uma desconfiança prévia dentro de um temperamento paradoxalmente bonachão. Numa delas, ainda bebê nos braços de mamãe, pode-se ver um olhar que diz: “Olha, cuidado, cuidado!” A maior parte das pessoas não é assim. As pessoas caminham confiantemente para a frente, julgando que provavelmente tudo dá certo. Eu não: o otimismo está mais comigo mesmo, e o pessimismo está quanto ao caminho. Quanto a essas outras pessoas é o contrário: o otimismo está mais quanto ao caminho e menos em si mesmos. Isto produz uma diferença de impostação que acho curioso notar, e se reflete até no modo de dirigir uma batalha. Por exemplo, se eu tivesse de dirigir uma batalha, eu não seria nem um pouco tendente a golpes à maneira de Condé, de jogar o bastão132. Teria mantido o bastão na minha mão, porque, com ele, derroto o adversário. Nada de jogar o bastão. Nada de ato de confiança no que vem atrás. Também nada de me arriscar num só lance. Se tenho todo o exército, por que me arriscar num só lance? Vou jogar com usura as minhas possibilidades, homem contra homem, mas acabo pegando o adversário! Mas há pessoas que são brilhantes: jogam o bastão e outros correm atrás. Tenho admiração por esse gênero de pessoas. Mas não é o meu gênero. Fico com a impressão de que, se eu jogar o bastão, um soldado inimigo me bateria com ele na minha cabeça133.

* Compreende-se, portanto, que eu seja muito desconfiado com as nossas esperanças concretas e imediatas.

132 Dr. Plinio se refere, aqui, ao lance de grande ousadia e coragem dado pelo príncipe de Condé durante a batalha de Friburgo (1644) contra os bávaros, no quadro da Guerra dos Trinta Anos. No auge da batalha, o jovem príncipe de 22 anos jogou o seu bastão de comando em direção às tropas inimigas e avançou para resgatá-lo, gesto esse que despertou o élan de seus soldados e selou a vitória francesa sobre os bávaros. 133 CM 15/11/87 72

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Levado por razões de caráter axiológico134, confio e sou até ousado no que diz respeito às esperanças de daqui a algum tempo, e sou reticente quanto às esperanças imediatas. Os senhores nunca me terão visto abatido do ponto de vista axiológico, e nunca, também, me terão visto esfregando as mãos de contente do ponto de vista de um acontecimento imediato. Há uma espécie de jogo na luta anjos e demônios aí, pelo qual as promessas do Céu nos vêm a prazos longos; e as ameaças do demônio nos vêm para breve. Seria preciso toda uma explicação para pôr de pé esta impressão, que não é o caso de fazer aqui. Não é uma preocupação propriamente doutrinária, mas trata-se de um fato que poderia muito bem não ser assim, mas que por desígnios de Deus é135.

* Às vezes a Providência chama para certa vocação uma pessoa cujo defeito capital é o oposto dessa vocação. Ela chama então essa pessoa para uma maior entrega. Sou de um temperamento eminentemente para a não-confiança. Tudo o que faço, faço blindado contra o adversário. Não há uma palavra que eu escreva que não seja feita para que o tiro de fuzil do adversário entorte a bala e caia no chão.

* Sou cautíssimo e creio que será difícil um dos senhores se lembrar de um caso em que eu tenha feito uma imprudência. 134 Em Filosofia, a axiologia é o estudo ou teoria (em grego: logos) daquilo que é digno de estima (em grego: axion), daquilo que tem valor ou que pode ser objeto de um juízo de valor, pelo que é hoje sinônimo de “filosofia dos valores”. Na linguagem de Dr. Plinio, a axiologia é “o regime de governo da Providência na história, considerada enquanto vista pelo homem e enquanto condizendo com a natureza humana”. No seu sentido lato, é então “o estudo da sapiencialidade de Deus enquanto se reflete no conjunto das regras pelas quais tudo se move e realiza os fins que a divina Providência tem em vista” e, no strictu senso, “a movimentação dos homens – nas suas histórias individuais e ao longo da história coletiva – para realizar a glória de Deus neste mundo e na eternidade; o que inclui a batalha de Deus neste mundo e na eternidade”. Portanto, “a axiologia não é toda a teologia da história, mas ela é a espinha dorsal da teologia da história, enquanto ela deve realizar em determinado momento o reino de Deus na Terra” (MNF 11/01/79). 135 RR 26/5/90 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 73


Faço coisas arrojadas, porque é preciso. O risco faz parte da luta, mas o risco vem reduzido ao indispensável, e aí corro risco, mas corro de olhos arregalados, porque se puder diminuir o risco durante a batalha, ainda diminuo. Detesto confiar. Nossa Senhora pediu de mim: confie! E dou graças a Ela, por Ela ter-me pedido isto136.

Carência de “nós” temperamentais Para ser bem franco, não me lembro de ter tido em minha vida aquilo que em nossa linguagem interna chamamos de “nó”, que é o estado temperamental de uma pessoa que se põe meio encaracolada e que a leva a não querer e a não fazer determinada coisa por estar embirrado. Lembro-me de outros defeitos morais, mas propriamente ter “nó”, não me lembro de que tivesse em nenhuma circunstância. Naturalmente tinha repulsas instintivas em relação a certas coisas, mas essas repulsas eram em geral de fundo moral contra coisas que não estavam direitas. Como era criança, não sabia qualificar bem porque não estavam direitas. Mas percebia que não estavam direitas, e então me repeliam. Às vezes era uma pessoa, outras vezes era o modo de ser de outra pessoa. Eram coisas assim. Isto não impedia que eu também tivesse, muitas vezes, ou ao menos um certo número de vezes, simpatias muito grandes para com pessoas que não prestavam, mas cujos defeitos eu não percebia, pois nessa época tinha um, dois ou três anos de idade. Até lá não ia o discernimento dos espíritos. Então, eu poderia gostar, poderia simpatizar instintivamente com tal ou tal outro parente, com tal ou tal outro amigo de família, como uma criança simpatiza ou antipatiza com alguém. E quando antipatizava, não era propriamente “nó”. Esses “nós” eu não tinha, porque o meu modo de ser era avesso a isto. Aliás, até hoje os senhores não me viram tomado por nenhum tipo de birra, nem encrencar com coisa alguma. Dizer, por exemplo, – “Tal coisa por capricho eu não gosto”, nem de leve tenho isto137.

136 Chá SRM 17/4/88 137 Chá PS 23/10/91 74

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OS SENTIDOS FÍSICOS E A SENSIBILIDADE Correlação entre disposições físicas, as inclinações da sensibilidade e os traços psicológicos Pode-se compreender uma pessoa que goste mais de uma cadeira forrada com couro, e outra pessoa que goste mais de uma cadeira forrada com seda, e uma terceira pessoa que goste mais de uma cadeira forrada com veludo. Isto porque, pela estrutura dos sentidos de cada um, uns tantos sentem mais o couro, outros sentem mais o veludo, outros sentem mais a seda, e lhes agrada mais por uma conformidade física com sua própria natureza. Entra algo de psicológico também, porque em geral, entre essas conformidades físicas e psicológicas, existe certa relação138.

* Sou muito mais sensível às cores do que aos sons. E quase não consigo fazer a distinção entre cores e sabores, de tal maneira se interpenetram. Nestas preferências entra a inclinação decorrente do modo de ser da pessoa, mas modo de ser natural, nativo, às vezes até hereditário. Por exemplo, considerem o veludo e a seda. É possível que uma pessoa goste mais da seda e outra do veludo. Agora, ao que isto se prende? Em parte, a uma sensibilidade tátil que é de um jeito em um e doutro jeito no outro, por causa da constituição do temperamento. Mas acontece que em geral, ou ao menos com muita frequência, essa sensibilidade nativa e originária condiciona depois as preferências da pessoa. A gente esfregando um pedaço de seda em outro, de uma mesma peça de seda, aquilo produz um farfalhar agradável. Esse farfalhar pode, no temperamento de um cair muito bem, e no temperamento de outro ser uma coisa que produz menos gáudio do que – não há outra expressão – o aveludado do veludo. Mas isto cria muitas vezes uma disposição de alma psicológica que nasce daí. E aí a disposição de alma é mais procedente da coisa física do que a coisa física é procedente da disposição de alma. Em mim, quase todas as coisas da boa alimentação estão muito mais ligadas ao físico do que ao psicológico. Teria dificuldade de dizer, por 138 Chá PS 12/11/90 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 75


exemplo, o que é que tem de psicológico numa boa salsicha. É uma coisa de que gosto. Mas, no prato alemão feito de salsicha com certa salada de batatas misturada com maionese, com gema de ovo colocada entre os vários pedaços de batata, e ainda mais acompanhado de pão preto, manteiga fresca e mostarda – do chucrute não gosto muito –, nesse prato já entra qualquer coisa de psicológico. Mas aí é porque envolve combinações, nas quais o papel da inteligência e da psicologia entram mais do que no puro passar a língua na batata ou na salsicha. É muito difícil, portanto, estabelecerem-se essas correlações e determinar qual é o momento em que a realidade psicológica nasce e qual é o momento em que ela predomina. Por exemplo, nesse prato que acabo de descrever, todos os componentes me são agradáveis ao paladar. Mas o que ele tem de psicológico é que tudo nele tem um pouquinho de, não digo bruto, mas quase bruto, e exige a força da mastigação, das mandíbulas, e quase um prazer de destruir mastigando, prazer este que se mistura com o prazer do contato daqueles sabores com a língua, e dá certa forma, já ela muito psicológica, do gosto de ser forte e de fazer as coisas que devem ser feitas. E pode concorrer para produzir o gáudio da retidão de consciência. E assim, quase todos os pratos que eu possa elogiar, conduzem a coisas dessas. Por exemplo, creme de chantilly. É uma coisa simples e barata. Mas o creme de chantilly bem batido tem uma expressão de raffinement, tem uma delicadeza, tem uma finura, tem uma nota de boa educação, de bom nascimento, de bom berço que é extraordinário, embora se possa comer creme de chantilly muito bom na casa de um camponês. Não é só o nome que evoca o fabuloso do castelo de Chantilly. É mais do que isso: é aquela espuma de leite; não sei o que é aquilo, mas a pessoa até se esquece de que aquilo é leite. Parece uma comida para fada. Quer dizer, o prazer degustativo se faz acompanhar de uma porção de conotações psicológicas e espirituais diferentes das conotações que tem, por exemplo, a salsicha com a batata. Isto porque o prazer que está ali é o prazer da sutileza, que é diferente do prazer da força; não é o contrário, porque as coisas boas nunca são contrárias umas da outras, mas são diferentes. E é o gosto de ser sutil, o gosto de ser leve, de perceber a distinção das sutilezas, a alegria do espírito. Por exemplo, a propósito do plebiscito de Maastricht sobre a Comunidade Europeia, um jornal francês soltou esta frase: “O oui venceu, o 76

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non se impôs”. É uma sutileza, mas como sutileza tem para o espírito um gosto meio parecido com a leveza do creme de chantilly em contato com a língua139. Os cinco sentidos e as preferências sensoriais Há uma fotografia que encontraram no meio dos guardados de mamãe, em que estou com alguns meses de idade nos braços dela. E ela, ainda relativamente moça e muito forte, muito bem constituída, sorria para mim muito enlevada, muito satisfeita. Aquela fotografia foi ampliada e, olhando casualmente para ela, percebi alguma coisa de meu modo de ser, de meu temperamento que reconheço até hoje. Eu tinha os cinco sentidos largamente funcionando bem: uma vista comum, mas dentro do comum, excelente; uma audição também muito boa, fina, mas que se foi aos pedaços com a vista; o olfato, o paladar. Tudo muito preciso, muito nítido, muito bom. Como já afirmei, meus sentidos e meu temperamento não eram propensos à indecisão, eram muito decididos: “Tal coisa é boa, quero; tal coisa não é boa, aquilo não quero: para longe!” E isto conservei a vida inteira. Em contraposição com isto, entrava uma preguiça muito grande de qualquer esforço físico, uma execração de qualquer coisa que, por exemplo, me fizesse transpirar. Tinha horror à transpiração, um nojo da transpiração! Sombra, sapato largo e água fresca, esta era a minha fórmula para todos os efeitos140. O SENTIDO DA VISTA Opção por cores, mais do que pelas formas A cor é um símbolo que me fala muito mais do absoluto, portanto de Deus, do que a forma. A forma me fala muito mais do indivíduo. Nesta perspectiva, a cor tem qualquer coisa de mais genérica e mais alta do que a forma. Não quero dizer que isto deva ser assim para todo o mundo; quero apenas dizer o que há em mim. É uma coisa inteiramente legítima. 139 Chá SRM 15/10/92 140 CSN 22/8/87 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 77


Havia na Renascença uma diferença entre a escola veneziana e a escola florentina. Os quadros florentinos são de um desenho primorosíssimo e cores muito discretas, apenas o suficiente para dar uma realidade ao que estava pintado. Já nos quadros venezianos, pelo contrário, as cores são muito falantes, muito bonitas, e o desenho apenas o necessário para dar a forma. Quando vi isto, senti-me veneziano. Estive em Florença e gostei muito de Florença, é uma cidade muito bonita. Mas o que querem? Eu me senti em Veneza outro homem que não em Florença. Mas outro homem, a não poder haver comparação. É o modo de ser de cada um. A mim me parece que, aquilo do verum que no desenho se vê, se pesquisa, se entende, na cor é evidente. O verum, a realidade, se sentem muito mais na cor do que no desenho. Por que isso? Já me tenho perguntado e não percebo bem por que é. Talvez com o tempo chegue a perceber141. Para mim, a flor era muito mais um conjunto. E o conjunto me impressionava mais do que os pormenores: eu quase não ficava nos pormenores. Também não era de ficar olhando para uma flor um dia inteiro, nem de longe. Minha mãe era menos colorista do que eu. Ela gostava das cores, mas elogiava muito mais as formas. E como o meu intuito era distraí-la, eu não fazia para ela o comentário da flor que normalmente faria. Eu a acompanhava no comentário dela142. Faz parte também dos lineamentos da minha sensibilidade o gosto do grandioso, o gosto do monumental, o gosto do forte, o gosto das cores mais do que das formas. Como já disse, não sou insensível às formas, mas sou muito mais sensível às cores143. Sou muito sensível a cores, sobretudo quando essas cores existem em pedras ou na água. Há, no meu modo de sentir as coisas, uma relação singular entre a água e certas pedras, em que a água me parece certa pedra colocada num certo estado, e a pedra me parece certo líquido que entrou num outro estado. Não quero dizer que isto seja cientificamente assim, quero dizer que é esta a impressão que me dá144. 141 CSN 22/8/87 142 Almoço EANS 8/11/91 143 CSN 22/8/87 144 CM 20/10/91 78

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Desde muito menino eu me encantava com os jogos de cores145.

* Mamãe às vezes colhia uma flor, e tinha a disposição de alma de – eu chegando –, me mostrar a flor: “Olha aqui, que bonita esta flor!” Eu verificava que o modo de ser dela era muito diferente do meu. Porque ela entrava nos últimos pormenores da análise da flor e com um verdadeiro enlevo. Por exemplo, uma flor comum ela segurava, analisava, mexia. E via-se que ela pensava muito em Deus enquanto tendo criado isso. Há que considerar que o meu modo de ser era próprio do homem, e o modo de ser dela mais próprio da senhora. Então eu via a flor como uma espécie de grande mancha de cor, e a cor me impressionando muito mais do que a forma146. Predileção pelo vermelho Para mim o vermelho é uma cor que simboliza tudo quanto há de apetecível, de agradável, de riqueza de ser, exposta em alguma coisa de modo cromático, de maneira a atingir o meu sentido da vista, e dar à minha vista uma impressão semelhante àquela que teria o intelecto quando medita sobre a vida. Por que o vermelho dá essa impressão de vida? Acontece que o vermelho é uma cor que se diferencia das outras, tal como o que é vivo se diferencia do que não é vivo. A pessoa, vendo esta cor, tem a sensação ilusória, ou não ilusória, do contato material da vida enquanto vida147. O vermelho era, portanto, para mim o símbolo de toda a vida, de toda a vitalidade, de todo o borbulhar, de tudo aquilo que tinha saúde148 e força149, de tudo aquilo que se realizava na alegria de sua própria realização. Era a cor do deleite do dever cumprido.

145 Chá SRM 6/1/94 146 Almoço EANS 8/11/91 147 Almoço EANS 18/10/91 148 Jantar EANS 13/9/88 149 Chá SRM 6/1/94 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 79


Por uma espécie de justaposição, era também a cor da consciência em ordem. O vermelho para mim se simbolizava arquetipicamente na cereja e na maçã150. Como eu tenho um temperamento muito plácido, o vermelho me completa, e me sinto mais eu mesmo no contato com as coisas vermelhas do que com as coisas brancas151. O vermelho é a cor do radical, do categórico, da intolerância. Por quê? Porque em si mesmo falando, há no vermelho uma radicalidade que consiste neste ponto: é que qualquer coisa que não seja radical no vermelho, desfigura e desnatura o vermelho. Imaginar no vermelho um quê de esbranquiçado, em que o vermelho deixa de ser vermelho para ser uma coisa mestiça, imediatamente a gente recusa e diz: “Isso é uma droga”. O vermelho pede, por sua natureza, para ser rubicundo, de maneira tal que tudo o que o leve a tolerar coisas que o desnaturem, que o adocem, que o desfigurem, que o empalideçam, o desfeiam. Ele não tolera, portanto, mistura nenhuma, nem relativismo algum. Pelo contrário, quando vemos uma coisa que é de um vermelho tal que chega a ser brilhante de tão vermelho, um vermelho tal que se pergunte se pode haver na terra um vermelho mais vermelho do que aquele, tem-se com isto uma satisfação, como quem diz de uma coisa que amou o seu próprio fim, que amou o termo final de sua própria perfeição e que encontrou nisto uma espécie de aliança com Deus. E então tomou com Deus um nexo que é a perfeição dele, e que por assim dizer oscula a própria perfeição divina152. O gosto por determinada cor não explica o que o indivíduo é, mas indica o que falta no indivíduo. Gosto do vermelho. Qual é a carência que há em mim que me leva à apetência pelo vermelho? Em menino, já o disse, eu fui muito mole e preguiçoso, muito magro, muito branco, muito alvo, pálido mesmo, com olhos que eram desmesuradamente grandes para o tamanho do meu rosto naquele tempo, e de um temperamento sumamente conciliatório e que gostava de que me deixassem sossegado.

* Já o creme não era a cor da minha predileção, precisamente porque não me dava o que eu queria. O creme estaria para mim como um indivíduo que trata de um assunto do qual positivamente não gosta. 150 Jantar EANS 13/9/88 151 Chá PS 1/10/93 152 Chá PS 9/3/94 80

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


O verde. Eu nutria para com o verde uma antipatia. Estava cercado, já naquele tempo, por todo o otimismo inerente à Revolução Industrial, e se inculcava a ideia de que tudo daria muito certo, no melhor dos mundos: que o ano 2000 para o qual se caminhava seria um ano de apoteose, de alegria, de felicidade do gênero humano. In genere, o verde é a cor da esperança. In concreto, o verde era tido como a cor dessa esperança e desse progresso. Começaram a dizer que era a cor ideal para a vista. Então era bom pintar as venezianas de verde, para que a luz entrasse verde dentro dos quartos. Faziam uma série de outras coisas verdes, sempre se alegando ser bom para a vista. Eu, que tinha uma vista muito boa, inteiramente normal, dizia: “Isso é para outro, eu quero pintar uma veneziana vermelha”153.

* Para mim, o mundo das cores tem dois padrões: o azul e o vermelho. O vermelho representaria tudo aquilo que eu gosto da Alemanha, e o azul representaria tudo o que eu gosto da França. Telhados de ardósia meio azulados são para mim altamente representativos da França. Telhados de telha mesmo, bem vermelhinha, são representativos da Alemanha154. O SENTIDO DO OUVIDO Não sou muito musical, mas tenho uma memória auditiva muito boa155. De outro lado, não tenho nenhum gênio inventivo musical. O que eu possa ter de noção da música ideal serve-me para, quando a música não é ideal, dizer no que ela não o é. Mas não me serve o bastante para compor. Eu, portanto, não tenho competência para indicar as características positivas da música ideal, ou porque elas não estão presentes no meu espírito, ou porque estão implícitas e eu não saberia propriamente explicitá-las. Creio que, se eu a ouvisse, eu a reconheceria. Mas estou para ouvi-la156.

* 153 Jantar EANS 13/9/88 154 MNF 15/11/89 155 RN 3/10/69 156 SD 8/11/75 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 81


No tempo em que tocava piano – eu datilografava o piano muito modestamente – eu procurava refletir sobre a música e procurava produzir harmonias com jogos de teclas, apenas para obter sons agradáveis e expressivos, mas sem pretensão, nem de longe, de fazer uma composição, na convicção de que me faltava completamente engenho e arte para isto. Mas umas pequenas bandeiras nesse matagal dourado eu tentei fazer. Nessas várias conjugações de som, sempre de dois sons – não passei mais do que isto –, a conjugação que me parecia perfeita era “dó-mi” tocadas juntas. Mais do que, por exemplo, “mi-sol” ou “sol-si”. “Do-mi-sol” era o mais alto voo que eu conseguia fazer em matéria de harmonia. E tinha um desprezo irritado com o “fá-lá-ré”. Bem, essas conjugações de som eu compunha escondido, porque iriam me perguntar o que é eu estava fazendo e eu não saberia explicar. Era preciso esperar uma hora em que a sala onde estava o piano estivesse isolada do resto da casa. Aí então eu entrava e clandestinamente fazia as minhas furtivas expedições no terreno da música. Enfim, o “dó-mi-sol” me parecia dar um bem-estar que era ao mesmo tempo da alma e do corpo, e que era a bem dizer onde o corpo e a alma se encontravam na mesma harmonia, no mesmo equilíbrio. De tal maneira que, tendo sido meu corpo feito para a minha alma, e minha alma para o meu corpo, eles se encontrando, diziam de si isto que para mim soava como harmonia, e eu sei que estava destinado a soar como cacofonia para milhões de pessoas: a palavra Plinio157.

* Algum tipo de som me encanta, e outro tipo de som me é mais indiferente. O som musical é sempre bonito. E gosto mais de som do que de música, porque as partituras que se compuseram depois da Idade Média não me representam. O cantochão e o canto polifônico me representam inteiramente. O bimbalhar de sino me representa. O harmônio um tanto. Gosto muito do cravo. Aquele som prateado do cravo, eu acho superior ao piano a perder de vista. O piano me parece um pouco predecessor da máquina de escrever. Tenho minhas restrições ao piano. Da harpa gosto muito, mas muito! E harpa não é só a forma que deslumbra, mas é propriamente o som. Órgão, desmedidamente! Com todo o truculento que está em mim, eu gosto do órgão158. O órgão, que comporta o acompanhamento de outros 157 MNF 15/9/94 158 MNF 15/11/89 82

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instrumentos, é o instrumento perfeito. Qualquer som de órgão me agrada indizivelmente. Ele é, para os meus ouvidos, o que o vitral é para a minha vista. E um vitral perfeitamente adequado é, para mim, a harmonia perfeita das cores159. Um dos encantos que eu tenho pelo órgão é que cada nota me dá a impressão que tem uma porção de instrumentos que tocam ali dentro, e que aquilo é um concerto de concertos. E nisso eu acho o órgão, a perder de vista, superior a qualquer outro instrumento. Completamente. Quando comecei a prestar atenção no órgão, lembro-me de que eu me dizia: “Essa gente não percebe que isso é um concerto de concertos? Eles falam em dó, ré, mi etc. No piano existe um “lá”, no órgão existe um universo de “lás”, acentuado ainda por aqueles registros que dão uma ideia global do universo dos sons, da totalidade dos sons: é a perfeição das perfeições em matéria de harmonia”160.

* Por tudo quanto tenho ouvido de cá, de lá e de acolá, não só na TFP, mas em geral por esse mundo afora a respeito de música, o tipo de voz de que eu gosto mais é o menos apreciado, que é o baixo profundo. Pega a coisa ali! O baixo profundo é o causador dos outros. E a causa é sempre mais nobre do que o efeito. O som menos grave não é causador do mais grave, e, portanto, o mais grave não está implícito no menos grave161. A voz de tenor é magnífica. O Caruso era um tenor do outro mundo! Mas tenho a impressão de que se abusou da voz de tenor, fazendo do tenor quase que o cantor obrigatório. Gosto muito de certos baixos profundos da canção eslava. Por exemplo, acho uma verdadeira beleza uma música que todos os entendidos dizem que é de segunda classe: “Os barqueiros do Volga”. Acho aquilo muito bonito, enquanto exprimindo o esforço e o cansaço dos barqueiros. A letra é até um pouco revolucionária. Mas ali entram uns baixos profundos, sem os quais aquela música não seria nada. A “Canção dos Peregrinos”, de Wagner, é muito bonita também. Tem algo, “alguinho”, de parecida com “Os barqueiros do Volga”. É 159 SD 8/11/75 160 SD 8/9/79 161 Jantar EANS 13/11/91 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 83


uma imitação do esforço, do andar, mas é muito mais nobre, muito mais aculturada do que “Os barqueiros do Volga”162. A razão metafísica pela qual prefiro o baixo é a seguinte. Universalmente falando, o diapasão de todas as coisas devidamente estudadas seria o grave. Vejo a vida em grave, eu a descrevo em grave. A gravidade é um dos grandes deleites de minha vida. Saltando de um campo para outro, é a razão pela qual eu gosto muito mais da comida de sal do que da sobremesa163.

* Sons militares, gosto muito! Aquela canção do Kurfürst, por exemplo, gosto muito. Chega a tal ponto que, às vezes, um mero som de um metal ou de um cristal tocado, frappé, dá uma verdadeira beleza164. Como gosto também da música gregoriana e da música polifônica165. Mas prefiro o gregoriano. Em si acho o gregoriano perfeito e intocável. O polifônico é como a flor da planta. Eu acharia pior para a Igreja que desaparecesse o gregoriano do que se desaparecesse o polifônico, de tal maneira gosto mais do gregoriano. Mas defendo com unhas e dentes que exista um lugar para o polifônico também166. Outra coisa que eu acho uma verdadeira beleza, e aí a forma tem um papel muito grande, é o modo de dispor certos regimentos. Por exemplo, as fotografias dos regimentos militares do Chile.

* Também na sonoridade das línguas. No meu modo de sentir, o alemão é uma língua categórica. Uma das coisas que eu gosto mais do feitio alemão, do temperamento alemão é que, o que tem que ser, é. Nada de meios tons, matizes. É ali no duro. “A” é “a”, “e” é “e”, “i” é “i”, “o” é “o”, “u” é “u”. As vogais são pronunciadas abertas e claras e as consoantes são truculentas. Quer dizer, elas caem,

162 MNF 15/11/89 163 Jantar EANS 13/11/91 164 MNF 15/11/89 165 Entrevista para rádio Uruguaiana 21/6/90 166 Chá SRM 17/12/89 84

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cortam e interrompem o jogo das vogais, e vão para frente. Quer dizer, é uma coisa bonita, categórica. Os senhores tomem qualquer frase do alemão traduzida para o português. Por exemplo, “Darauf sprach er zu den Jünger” – “E em seguida falou ao discípulo”. A frase é simples e cada palavra corresponde ao que está em português. “Darauf” quer dizer “em seguida”, “sprach er” é “falou ele”, “zu den Jünger” “ao discípulo”. Agora os senhores vejam a frase em português, tem um encanto próprio da língua portuguesa: “E em seguida falou ao discípulo”. É harmonioso, é fluente, é corrente, é flexível, é elástico, é agradável. Mas aqui é o contrário, é “darauf”, “darauf” é muito diferente de “em seguida”. Os senhores percebem bem o “auf”, “darauf”. E como as consoantes jogam bem: darauf. Vai mesmo. É de gente que não tem medo, nem susto, nem titubeia, nem gagueja. Lá vai. Gosto muito do português, é a minha língua materna. Mas confesso que tenho também encantos pelo alemão. Do que eu gosto do alemão? É dos pontos em que ele é diferente do português. Do que gosto do português? É dos pontos em que ele é diferente do alemão. São extremos opostos e harmônicos167.

* Um amigo com quem tínhamos boas relações herdou do pai uma estória de limpar a sola do sapato antes de entrar na casa. Essa máquina era feita de metal, fabricada na Inglaterra, no tempo em que todos os produtos do Brasil vinham da Europa, porque não havia indústria aqui. Ele mais de uma vez fez o elogio de que aquelas varetas, aquela estória de aço emitiam um som muito bonito. Pensei: “Está aí, este homem, tem grandeza para compreender que exatamente o som de um fio de aço pode ser verdadeiramente musical”. Um dia eu o encontrei tristonho. Ele me disse: “Das poucas coisas que me restavam, uma era isto. E me roubaram”. Se eu pudesse, eu compraria um desses aparelhos e daria para ele. Fiquei com pena dele. Porque é uma superioridade de alma compreender que um capacho desses pode emitir um som que seja uma verdadeira beleza.

167 SD 25/10/75 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 85


O SENTIDO DO OLFATO Embora eu tenha um olfato apenas mediano, de vez em quando, não sei por que, meu olfato se aguça muito e se torna penetrante. Depois aquilo passa. Desde pequeno isto foi assim. O olfato tem uma finura qualquer que excede, à sua maneira, a de qualquer outro sentido. “Olfatear” uma coisa é pegar certa delicadeza que há nela, uma delicadeza pobre, mas tão delicada que a seu modo só o olfato pega. Mas aquilo que para certas pessoas seria o olfato, para mim indiscutivelmente são o tato e o paladar168. Recentemente, em uma dessas horas de olfato mais aguçado, quando cheguei ao parque do Êremo Praesto Sum, que é uma de nossas sedes no bairro de Santana, senti o aroma de uma porção de árvores que se misturavam em um aroma global, e que era o aroma do parque. Minha reação: “Como eu gostaria de saber distinguir o que é o quê dentro desta sinfonia aromática! E como cada árvore concorre para este aroma global, e como são as unidades individuais que constituem esta sinfonia aromática”. Meu desejo não era só ver um toquinho de madeira, mas era ver a árvore e a mensagem que a árvore dá de sua natureza para o olfato. Queria, portanto, ver como era a árvore e entender a árvore. Teria nisto certo entretenimento169.

* Há uns trinta anos, eu usava muito o sabonete Phebo. Depois, não sei como, ele desapareceu e julguei que não existisse mais. Várias vezes eu me perguntava por que essa marca Phebo não gozava de certa notoriedade, pois era um sabonete que não deixava de ter analogias com o sabonete preto Pears, inglês. E não era só pela cor preta, não: era um certo quê. Não é alheio ao meu contentamento saber que o sabonete Phebo ainda existe. Não é por um patriotismo marca barbante, mas é por saber que é uma coisa feita no Brasil, e que sinto ter certa afinidade comigo, por formar esse elemento coletivo chamado no Brasil de população e produção nacional170. 168 MNF 15/11/89 169 Chá PS 23/12/81 170 MNF 18/5/93 86

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O SENTIDO DO TATO Agora o tato. Apalpando, apalpando, eu sinto muito as coisas. O contato com o couro de um sofá, por exemplo, me diz mil coisas. Se fosse de seda, eu esfregaria a mão de outro jeito171.

* Às vezes costumo brincar com uma concha nacarada que há em uma de nossas sedes enquanto faço, digamos, uma reunião. Ao meu tato, essa concha é agradável. É um objeto muito liso, o que dá uma sensação de macio, e que, sem ser de seda, tem algo de sedoso que exprime indefinidas delicadezas de alma. Ora, eu gosto muito da delicadeza de alma, dos estados de espírito. Isto me agrada. Por outro lado, essa concha é pontuda, e essa ponta representa o contrário da delicadeza de alma. Mas eu gosto também das pontas. E me agrada passar o dedo por essa ponta e fazer um pouco a psicologia da beleza das pontas. Por outro lado, gosto muito de desvendar as coisas. E a entrada da concha me dá uma sensação de desvendamento172.

* Enquanto trabalho, gosto de manusear alguma coisa. Por exemplo, aquelas ágatas em forma de ovo que se colocam em cima dos móveis. Não gosto daquela forma de ovo, mas como em geral só há essas pedras em forma de ovo, eu as manuseio. Agora, por que uso isto enquanto trabalho? Por uma associação de imagens, fundada na realidade de que, quando a cabeça trabalha para redigir um texto longo, por exemplo, que contenha vários raciocínios, ela faz com as potências da alma um movimento semelhante ao dos dedos, quando pegam uma pedra. Portanto, sinto certa facilidade em continuar a pensar quando tenho a sensação de que aquele pensamento que eu concebi se prolonga nas minhas 171 MNF 15/11/89 172 MNF 16/5/80 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 87


mãos. Facilita-me, portanto, a pensar. Daí o modesto costume de pegar as pedras e remexer. Mesmo quando eu não esteja olhando para a pedra enquanto trabalho – se olho, olho distraído –, a sensação de que eu estou pegando numa coisa que eu acho bonita me é agradável173.

* Numa viagem que fiz para a Europa na década de 1950, o avião fez escala em Dakar, e no intervalo, eu entrei na orla do Saara para pegar a areia, esfarelá-la na mão e ver um pouco como era. Era ligeiramente úmida, ao menos para o meu tato. O fato é que a realidade do Saara não seria inteiramente conhecida por mim se eu não fizesse esse exame e essa aplicação de todos os meus sentidos ao Saara. Assim também com o mar. Nunca me daria por suficiente conhecedor do mar sem o ter tocado. Mais ainda, sem ter tomado banho de mar. É preciso tomar banho de mar para se saber como é o mar. A areia do mar é única. E depois a diferença entre a areia molhada e a areia seca do próprio mar. Quando o mar cobre de maneira constante uma extensão de areia, fica ali todo um mundo cor de areia molhada, que é diferente da cor da areia seca. A areia molhada não é bonita, mas tem qualquer coisa de deleitoso, de agradável, não para comer, bem entendido, nem para cheirar, mas para andar, por exemplo. Não há tapete mais agradável do que certa faixa do mar molhada. Eu ao menos sinto isto assim174. O SENTIDO DO PALADAR Preferência pelos sabores fortes e pelas porções grandes Acho que comer pedacinhos pequeninos numa refeição é muito bom e bonito de se ver. Mas um pedacinho pequeno que a pessoa come sem ar de glutão não é elogio para a dona da casa. Sou de opinião que os pedaços grandes têm o sabor da comida. Ao menos isto está no meu temperamento truculento. 173 Chá ENSDP 18/11/83 174 CSN 9/7/94 88

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As pancadas boas são as que se desferem melhor no adversário. Os bocados bons são os que são engolidos de mais boa vontade175.

* Tenho uma tendência para os sabores fortes. E para apreciar bem os sabores fortes, eu sou tendente a usar as porções grandes. Isto chega ao ponto de eu gostar de beber goles grandes de água. Eu não bebo aos golinhos. A água, pela definição dos físicos, é um líquido insípido, quer dizer, que não tem sabor. Esse líquido pretensamente insípido, eu bebo aos golões. Porque há uma sensação do matar a sede, e é bom que essa sensação se tenha grandona. E isto se prende à minha radicalidade. Aqui entra alguma coisa de radicalidade: é porque sou truculento. Truculento é aquele que, antes de tudo, tem o feitio de espírito pelo qual gosta de pegar as coisas capitais de uma vez, e gosta também da ação que atinge seu fim diretamente. E gosta do raciocínio que agarra a conclusão com a força de um leão. Sei perfeitamente que as boas maneiras se opõem a isto. Mas acho que as boas maneiras, para os homens, em alguns sentidos foram muito adelgaçadas. Que as senhoras comam de um modo mimoso está no modo de ser delas176. Compreendo que se veja nisto uma truculência contra-revolucionária, porque há disso dentro. E explicando o gesto, eu faço ver o espírito177. Preferência pelos alimentos elaborados As únicas verduras de que eu gosto são a alface e o agrião. Tenho uma fobia militante contra a couve: aquilo para mim é pano velho e vegetal. Choufleur au gratin. A couve-flor é gostosa quando vem au gratin, com um molho de manteiga em cima e não foi trabalhada com os ingredientes modernos que tiram o gosto de todas as plantas178.

175 CM 21/4/91 176 Chá PS 1/5/91 177 Chá SRM 26/10/90 178 Almoço EANS 8/11/91 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 89


Todas as coisas que são dadas para a linha da gordura, e, portanto, a manteiga em primeiro lugar, acompanhada gloriosamente pelo creme chantilly, são coisas de que eu gosto muito179.

* Na época do Concílio, estava eu em Roma com o príncipe Dom Bertrand e passamos a pé em frente a uma vitrine que expunha vários vidros de compota de cereja. Lembro-me de que íamos comungar na igreja de Nossa Senhora do Miracolo, e numa conversa despreocupada eu disse a Dom Bertrand: “Gosto muito mais do doce de fruta do que da fruta fresca. Por causa disso, gosto muito mais da compota de cereja do que da cereja crua”. Dom Bertrand deu um pulo, estranhando ao máximo essa minha opinião. Para ele a fruta crua era a melhor, porque conservava certas energias e certos sabores da natureza. Respondi-lhe que a culinária se aplicou sobre a tal coisa crua para fazer o melhor, e que, portanto, a coisa trabalhada pela civilização perde sempre algo, mas ganha mais do que perde. Em princípio, eu concordo que o contato com o cru, não só na culinária, mas em tudo, oferece algo de original com o qual precisamos de vez em quando tomar contato. Mas o grosso da vida foi feito para tudo isso ser ajeitado e dominado, e que o homem, isto é, o rei da criação, tenha tudo sujeito a si, com os sabores, com o grau de macio ou de resistente que ele queira, de maneira que ele fique mandando no negócio. Há, por exemplo, um modo de fazer compota de cereja pelo qual ela conserva o vermelho dela, e o caldo também fica avermelhado. E há outro modo em que a compota fica meio bege, meio clara, perde a cor, e o caldo também. Há ainda as cerejas cristalizadas que eu considero altamente aprazí180 veis .

* Certa vez uma pessoa me deu de presente uma garrafa de licor, redonda como se fosse uma esfera, e encimada por uma tampa no alto da qual vinha uma coroa dourada, como se fosse a coroa de um rei. 179 MNF 18/5/93 180 Almoço EANS 8/11/91 90

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Achei aquilo interessante de ver, mas não podia tomar álcool, sobretudo aquele licor, que era muito doce. Olhei um pouquinho e uma pessoa que estava perto me disse: “Faça o seguinte: abra a garrafa e apenas cheire o que tem dentro”. E eu: “Et ne nos inducas in tentationem”, mas abri a garrafa e cheirei. Era um cheiro do outro mundo, de um licor de framboesa. A pessoa sabia que eu gostava muito de framboesa. Era a framboesa levada a uma quintessência, a uma destilação, a uma finura extraordinária. Tapei a garrafa sem sequer molhar os meus lábios no líquido proibido. Mas tive muito a noção de como é superior o produto da framboesa trabalhada pela civilização em relação à framboesa que se colhe no mato e se come. Embora eu goste muito da framboesa fresca do mato, a civilização trabalhando a framboesa evoca um estado de espírito especial181. Predileção pelos pães alemães e pela cerveja Tenho loucura por pães. Verdadeira loucura. Muitas vezes, quando antigamente eu ia jantar na cidade, se o restaurante era alemão e eu encontrava um pão muito bom e uma manteiga atraentíssima, eu jantava pão com manteiga. Não entraria nem em charcuterie182: era pão com manteiga no duro183. Tem-me ocorrido várias vezes, de passagem, a ideia de ir a uma cidade onde esteja havendo um concurso de gastronomia, em que uma parte fosse destinada a peixes e frutos do mar, outra a carnes, outra a massas e outra só a pães. O meu gosto natural pelos pães poderia levar-me ao ponto de preferir os pães a toda e qualquer outra coisa. Bem entendido, pães com queijo ou com manteiga. Puro pão não vai. Pão sem manteiga pode-se tirar o til: fica “pao”184. No pão, o contraste entre o fermento e a massa que não está inteiramente fermentada, o sabor da coisa com fermento e sem fermento, o papel do fermento naquele negócio, suponho que seja o que me faz encontrar um charme especial no pão. Suponho, digo eu, pois não estou inteiramente

181 Chá SRM 15/10/92 182 “Charcuterie” é uma palavra francesa que, em português, se traduz por frios. 183 Chá SRM 1/3/94 184 Almoço EANS 27/9/90 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 91


certo. Já tenho procurado explicitar, mas não chego inteiramente a uma conclusão185.

* Havia em São Paulo umas padarias que faziam pães alemães, por exemplo, roscas circulares e vazias no centro, um pão trançado com o que em alemão se chama Rosinen colocadas pelo meio e com fermento de cerveja. Era o chamado Streuselkuchen. Eu comia bandejas daquilo. Se hoje o meu apetite é o que é, imaginem aos 15 anos o que era diante do olhar enormemente comprazido de mamãe. Mas eram toneladas, com regozijo e uma paz de alma depois de ter comido, uma coisa extraordinária! Comer muito pacifica, comer pouco agita186. Comer bem é só com o espírito despreocupado187. Se os senhores pensam que eu me arrependo do que eu comi outrora, os senhores se enganam. Eu sei e vejo pelas fotografias que cheguei a ficar gordíssimo. Para mim, um sistema certo de engordar é trabalhar. Tenho a impressão de que, se eu trabalhasse menos, eu emagrecia. Preocupar engorda uma barbaridade. Eu ganho penando o que perco jejuando. Esta é minha vida188.

* Gosto muito de cerveja189 não brutalmente gelada, mas bem gelada sim. Prefiro cerveja clara. O tipo de cerveja daqui de São Paulo, no tempo em que eu a tomava, era a “Antarctica”. Não compreendia que se tomasse cerveja “Brahma”, que na época era uma cervejota ordinária. A “Antarctica” era a verdadeira cerveja190. Quando o médico me liberou do “cárcere” em que jazia há trinta anos, isto é, da dieta, veio uma cerveja, eu tomei, mas ela e eu já não éramos a mesma coisa191.

185 Chá PS 12/11/90 186 Almoço 21/1/80 187 Chá 22/8/80 188 Almoço 21/1/80 189 Conversa EANS 6/7/94 190 Chá SRM 1/3/94 191 Conversa EANS 6/7/94 92

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Acho que todo vinho bom é muito mais do que a cerveja, a ponto de não se poder comparar. É outra categoria. Entre os vinhos, a champagne tem a preeminência. E reconheço a superioridade da champagne sobre qualquer outra bebida. É uma superioridade por assim dizer, para usar a expressão francesa, “par droit de conquête et par droit de naissance”192. Gosto mais da champagne doce do que da champagne dita seca. Mas vejo teoricamente, que a seca é superior à doce. Não tenho muita certeza, mas ao menos se pode sustentar isto. Reconheço também a superioridade dos licores sobre a cerveja. A cerveja é a boa plebe, gordalhona e simpática, das bebidas alcoólicas; ela não é a nobreza das bebidas alcoólicas.

* À vista de tudo isto, deveria ser normal que eu gostasse mais dos vinhos do que da cerveja. E pareceria até uma contradição eu gostar mais de cerveja. Mas uma coisa é eu reconhecer teoricamente a superioridade de algo, e outra coisa é eu de fato gostar mais desse algo193. Uma bebida muito de minha predileção era o Kümmel. Kümmel eu não tomo há não sei quantos anos, porque me faz mal, mas eu gosto muito de Kümmel. Como também gosto da semente de Kümmel em pão. Essas coisas todas acho de primeira ordem! Outra coisa que eu acho de primeira ordem é o gin. É uma coisa! Acho uma dessas bebidas que pegam e em relação às quais a cerveja, que é uma bebida muito apreciável, é “baixa de nível”194. Alimentos de que se gosta ou se rejeita por razões físicas ou metafísicas Em princípio, a razão pela qual uma pessoa não gosta de determinado alimento é uma incompatibilidade entre a impressão que aquilo produz nas papilas degustativas da língua, e o modo de ser do organismo da pessoa.

192 Por direito de conquista e por direito de nascimento. 193 Chá SB 14/11/90 194 MNF 16/6/89 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 93


Mas há certos alimentos que a pessoa gosta ou rejeita por razões de mentalidade. Essas razões de mentalidade têm um nexo com razões de doutrina195. Desde o começo da vida, a pessoa pode ter repulsa em relação a alguma coisa por uma série de razões que só mais tarde ela vai conhecer. Por exemplo, eu era muito menino quando me deram pela primeira vez mandioca cozida. Olhei para a mandioca desconfiado. Puseram-me na boca, não engoli, rejeitei. Por quê? Porque aquela ambiguidade da massa da mandioca, e aqueles barbantes que enovelam a língua e que exigem certo esforço para cortar me davam certa sensação de que eu estava comendo goma arábica. Assim, quando vi e cheirei a mandioca, nasceu uma repulsa. Até agora, e até morrer, eu não comi mais mandioca. Aliás, eu não podia ver mamãe comer mandioca (ela gostava muito de mandioca) sem que eu fizesse uma brincadeira com ela a respeito. Ela tentava se defender, mas eu era formado em Direito, mais habituado a argumentar do que ela. Então esmagava o partido da mandioca afetuosamente, gracejando196. Se fosse preciso, eu ia até comprar mandioca para ela. Mas essa era a minha reação pessoal. Compreendo que outrem goste, é uma coisa livre197.

* Há então essas incompatibilidades primeiras em relação a algumas coisas. Elas não são intrinsecamente más, elas são boas, mas a nós, por causa de alguma coisa que nos é peculiar, se apresentam como fundamentalmente rejeitáveis198. Eu não tomo álcool nunca. Não é por virtude que não tomo. Eu até acho que não tomar álcool por virtude é burrice. Mas é porque não me faz bem, me desagrada ao organismo, não vou bem com o álcool199. O vinho, por exemplo, é essencial para uma boa gastronomia. E concordo com o dito francês: “Un repas sans vin est comme un jour sans soleil”. Não bebo vinho por um defeito de meu paladar ou do meu organismo. Desde os meus primeiros goles de vinho em menino, eu senti que me fazia 195 Chá SB 6/2/90 196 CM 15/11/87 197 Chá PS 1/7/94 198 CM 15/11/87 199 Chá SRM 10/1/93 94

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mal, produzia dores. E eu tinha a sensação de que todo vinho que se tomava era adstringente, encolhe as mucosas da boca, e o negócio de adstringente comigo não vai. Todas as bebidas de álcool me produzem esse efeito. Quanto à champagne, abro uma exceção200. Abobrinha não é comigo e chuchu também não201. Alcance simbólico do paladar Acontece que o paladar em mim tem um alcance simbólico. Todo alimento é símbolo de uma determinada coisa, e comer essa coisa é degustar esse símbolo de um modo todo especial. De maneira tal que comer um prato com vários ingredientes é para mim como seria para outro ler um livro com várias análises, com várias riquezas. Por exemplo, o Kartoffeln-Glass, que tem da alma alemã e da cultura alemã toda a solidez, toda a nitidez e a substância nutritiva do espírito. Aquilo tem a força do alemão. O vol-au-vent francês é toda a subtileza, toda a delicadeza, toda a finura da coisa francesa, mas não mata a fome como o Kartoffeln-Glass. E as qualidades que se encontram no Kartofeln-Glass, o vol-au-vent não tem. A recíproca é verdadeira. De onde, pela minha teoria de que a Alemanha e a França são as duas faces do gênero humano, é bom de vez em quando comer uma coisa e de vez em quando outra, e saber gostar de uma e de outra, para ser um homem completo202.

* O comer alguma coisa que tem uma expressão simbólica dá uma ideia de que o significado desse símbolo é especialmente absorvido. Outro dia saboreei uma geleia de framboesa muito bem-feita, que tinha uma cor de vitral. Era uma coisa estupenda! Eu não quereria comer um vitral nunca, porque eu não pretendo ser suicida, mas ao comer aquela geleia, eu quase que comi mais a cor do que o sabor, embora estivesse muito boa. O comer aquela geleia deu-me uma ideia daquilo de Deus que a geleia representa, e do qual especialmente me aposso comendo-a.

200 Conversa EANS 6/7/94 201 Jantar Serra Negra 19/2/91 202 MNF 15/11/89 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 95


Por exemplo, a cereja. A cereja de fato é mais bonita do que gostosa. Mas, para uma pessoa que tenha um senso estético-gastronômico bem desenvolvido, não importa muito que ela seja mais gostosa ou menos; trata-se de comer aquela vermelhidão203. O mesmo se passou durante um dos lanches que fiz no Êremo do Amparo, serviram-me framboesas com queijo branco, os quais estavam colocados em um prato branco sobre uma bandeja de prata. Quando vi aquilo, fiquei pronto para comer um símbolo. A minha apetência de comer este símbolo era pela sensação – sei que isto é pelo menos muito discutível do ponto de vista filosófico – de que, comendo o símbolo, eu me enriqueço daquilo que ele simboliza. A framboesa e a cereja são dotadas de uma cor vermelha particularmente excelente. Sendo assim, o meu desejo metafísico de vida, de ser, de realidade, me faz gostar de comer a cereja ou a framboesa. Com esta acentuação de que o sabor da framboesa, talvez mais ainda do que o da cereja, me produz no paladar uma sensação discreta de vida também. De maneira que é por assim dizer bifocal o conhecimento que eu tenho dessa fruta. E se acrescentarmos a isto o fato de que, quando dois sentidos convergem para dizer uma mesma coisa, eles são como duas testemunhas que afirmam o mesmo fato, e aquilo dá uma espécie de certeza. Sinto-me capaz de “descascar” as razões pelas quais me comprazo em olhar a framboesa que me serviram, e ver o contraste dela com várias formas de branco: o branco do queijo, o branco do prato, e a prata que é o branco de que é capaz o metal. O branco dá outra ideia de vida. Uma ideia mais modesta, mais pobre, mas mais pura. Compreendemos assim qual é a ideia de vida que o branco dá quando pensamos que o contrário dele dá no símbolo da morte. Então, dois sentidos, a vista e o paladar, depõem a favor da ideia de que eu estou fazendo um banquete de símbolos, muito válido gastronomicamente. Não é, portanto, um banquete de filósofo que come giz, porque giz é branco. Este não sou eu. Sou gas-trô-no-mo. Mas gastrônomo ávido do alcance simbólico de muitas coisas que eu como204.

203 CM 3/11/91 pp/3,4 204 Almoço EANS 18/10/91 96

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Correlação entre o apetite mental e o apetite físico, entre a vontade de saber e a vontade de comer A heresia branca205 tentou constituir uma imagem da virtude segundo a qual o homem virtuoso teria de ser um dispéptico, sem fome, sem sede, sem gosto de nada daquilo que torna a vida humanamente agradável, e no fundo sem civilização. Ora, essa não é a verdadeira figura do católico206. Por exemplo, a gastronomia. Acho que a gastronomia, como tudo que o homem faz, é susceptível de ser vista de uma grande altura, dependendo do homem que a manuseia. Há uma escola de gourmets, quer dizer, daqueles que gostam da qualidade da comida mais do que da quantidade, que sustenta que a verdadeira gastronomia não consiste principalmente no preparar sabores fortes e apreciá-los, mas no preparar sabores delicados e cheios de pequenos matizes e entendê-los. Eu já acho que a perfeição da gastronomia consiste em ter a capacidade de apreciar uma coisa e outra. Esses são os pontos em que devemos ser ecléticos, e que o ecletismo dá uma síntese verdadeiramente de valor207.

* Também o apetite mental deve ser como o apetite físico. E o bom dele é que nutre. Um apetite vacilante, trêmulo, que se exprime numa consulta feita com voz bamboleante e tímida, isso é uma forma de inapetência do espírito, que é uma expressão da indefinição. 205 Dr. Plinio qualificava de heresia branca a deformação da espiritualidade católica que consiste em manter a ortodoxia em matéria teológica (por isso, não é heresia “negra”, mas “branca”), mas aceitando plenamente a Revolução nas tendências, tanto no seu veio igualitário quanto no seu veio liberal. Assim, uma pessoa afetada por essa deformação espiritual tem total desinteresse – quando não, verdadeira ojeriza – por tudo aquilo que na religião fala de grandioso, de maravilhoso e de sacral – é o seu aspecto igualitário. Concomitantemente, põe em surdina o caráter militante da Igreja e da espiritualidade católica, rejeitando a luta, a vigilância, os anátemas etc. e julgando que todo o mundo é bom e que basta sorrir para atrair as almas para o bem – é o seu aspecto liberal. Daí resulta uma religiosidade fideísta, na qual a razão não desempenha nenhum papel, e uma piedade egocêntrica, introspectiva, adocicada e sentimental. Exemplo de heresia branca são as estátuas, quadros e imagens (“santinhos”) representando os santos no estilo da escola artística “sulpiciana”, da segunda metade do século XIX (assim chamada por causa das lojas de artigos religiosos na vizinhança da Praça de São Sulpício, em Paris). 206 Chá PS 12/11/90 207 RR 5/4/69 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 97


A falta de vontade de saber não é uma recusa de saber, mas é uma falta de vontade no sentido de que “não me importa saber; importa-me mais uma mente pouco organizada, de apetites pouco varonis, pouco decididos e que entram pouco dentro da matéria”. É como quem pega a comida com a mão mole e mastiga com boca mole, olha com olhos bambos e digere mal. Isto não é comer, isto não é aprender, isto não é estudar208.

* Gastrônomo de surpreender antes de adoecer de diabetes, vindo esta, sobre este gosto caiu um cutelo parecido com a lâmina da guilhotina. Quer dizer, pão e tudo quanto é feito com farinha, batata, arroz, coisas desse gênero, pro-i-bi-do! Massas, proibido. O que era permitido? Tudo aquilo de que eu não gosto, de que não faço questão. E é para mim um verdadeiro alívio poder ir a um restaurante e comer uma coisa boa lá, quando o permite a balança. Por efeito da diabetes, o diabético tem certa vontade daquilo que lhe faz mal. Ele tem tendência habitualmente a comer demais açúcar. Não tenho. Mas a farinha, o pão me faz uma falta enorme. E eu tenho a tendência a ir ao restaurante para comer alguma coisa de farinha, também para saciar a fome. Mas faço com tanto cuidado para não prejudicar minha saúde, que eu me peso todos os dias, para ver como é que está o peso, para não subir além de tanto. Mas é para mim um prazer intelectual, um prazer que tem algo de moral. Isto posto, há o perigo de algum dos senhores abusar do que estou dizendo e pensar o seguinte: “Minha vocação é de me empanturrar, é de levar uma vida de folgazão”. Julgo que dou exemplo de uma pessoa que trabalha e se sacrifica de todo jeito possível. Eu não teria o direito de dar o exemplo do bom garfo, assim mesmo sacrificado por uma dieta bárbara e vivendo numa fome de mendigo, sem que nunca os senhores tenham ouvido dizer que minha saúde sofreu prejuízo porque eu violei minha dieta209.

*

Mas, se eu não fosse obrigado a esse regime alimentar, passando por um lugar onde se serve uma boa refeição, sendo a hora de comer e valesse a pena comer, eu pararia e comeria. 208 RN 1/12/70 209 Chá PS 12/11/90 98

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Os senhores nunca me viram comer uma coisa fora de hora. Comer por mera gula, não. Mas se é hora de comer, escolhe-se com jeito o melhor lugar e se organiza a ida. E se tem que mandar um automóvel pegar, manda, porque é hora de comer. Este é um apetite definido e organizado. O apetite da criança e o apetite do doente não é o apetite do homem maduro, que tem apetite de fato, como é o meu caso210. E eu conservo o apetite de alguns dos mais truculentos dentre os senhores211. Correlação entre o prazer do corpo e o prazer da alma, entre a sede física e a sede metafísica Analiso a comida inclusive pelo seu significado psicológico, e sei que, comendo uma boa comida – não se espantem com o jogo de palavras –, como virtude e saio da refeição melhor do que entrei. Uma coisa que entra nessa linha é o ar. O bom ar de si é uma delícia. E quando respiro o ar bom e saudável, vejo que há uma relação disso com o prazer de minha alma quando leio trechos da Suma Teológica212.

* De tudo o que eu disse, vê-se que há uma relação entre a minha vida interior e o meu prazer culinário213. Considerem o salmo “Sicut cervus desiderat ad fontes aquarum” – “Assim como o cervo vai à fonte das águas, assim a minha alma deseja a Vós, meu Deus”. Deus mata a sede que nós temos d’Ele. Logo, entre uma sede e outra sede há uma relação. E entre a sensação física que a água dá, de um lado; e de outro lado o élan da alma para com Deus; e entre a sede saciada e o saciar-se de Deus na visão beatífica, sendo que de Deus ninguém se sacia, há uma correlação estabelecida pela própria Revelação. É muito delicado estabelecer qual é esta relação. Só sei que esta relação existe, mas não consegui ainda a definir, apesar de eu ser não só um

210 RN 1/12/70 211 Chá SB 19/2/81 212 CM 16/3/86 213 Chá SRM 25/11/91 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 99


gastrônomo velho, mas um velho gastrônomo, e ser muito exigente em matéria de coisas aprontadas e bem apresentadas. Por exemplo, há uma bebida feita de amêndoa chamada orchata. Não gosto de amêndoa, mas gosto enormemente de orchata, como gosto muito de doces ou coisas assim feitos com aquele gosto de orchata, portanto, com certa amêndoa. Se puserem a amêndoa inteira no doce, eu detesto; mas se puserem aquele elemento degustativo da amêndoa num determinado gosto, eu aprecio.

*

Quando fui com meus familiares à Alemanha, ficamos em um hotel chamado Fürstenhof. Isto se deu antes da I Guerra Mundial, e tudo, portanto, era muito mais solene do que se tornou depois com a influência hollywoodiana. Nós, a criançada da família que estava lá, jantávamos na sala de jantar das crianças, e eu observava com muita curiosidade como era a sala de jantar dos mais velhos. E, tanto quanto uma criança de quatro anos pode calcular, eu achava uma sala solene, bonita, gostava muito. Em certa hora vi, não mamãe, que estava hospitalizada, mas os outros membros de minha família, entrarem na sala de jantar em cortejo, de braço dado homem com senhora. Nunca o marido com a mulher, mas alternavam, o que não era bom, mas era como faziam naquela época, o uso era assim. Senti que tudo aquilo pairava enormemente acima do pobre mundo das crianças. E compreendi que o mundo deles era destinado a ser nosso, porque nós éramos o futuro. E que, portanto, quando nós ficássemos grandes, também nós desfilaríamos assim, faríamos cortejos assim e iríamos frequentar salas daquelas. Só que, com a proclamação das repúblicas, tudo isso desapareceu e se degradou. Às vezes serviam uma espécie de doce com uma forma muito bonita, meio parecida com a torre de um castelo e com gosto da orchata. Eu então relacionava essas coisas e compreendia que aquele gosto da amêndoa simbolizava muito bem um elemento daquela solenidade, sem eu saber dizer exatamente qual era. Depois voltei para o Brasil, perdi a pista da orchata, mas isto não se apagou da minha memória. Aqui me davam amêndoas para eu comer, mas amêndoa que descascam e deixa uma espécie de pastilha branca em um contato desagradável com a língua. Portanto uma coisa muito recusável, e eu recusava a amêndoa. Foi só depois de homem feito, indo na década de 1950 à Europa, que me ofereceram orchata na Itália, e eu disse: “Olhe aqui o gosto do Fürs100

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tenhof!” Eu tinha então uns quarenta e cinco ou cinquenta anos. E a partir daí eu restabeleci o meu contato com o mundo das amêndoas. Agora, para daí subir até Deus há um outro passo. Subir até à alma humana, subir até as instituições é uma coisa; subir até Deus é um outro passo. Assim em algumas coisas: subir até Deus é muito difícil. A Contra-Revolução deve explicitar isto no Reino de Maria214. Mais ainda: a verdadeira gastronomia deve ir à procura de coisas dessas. 214 Ao longo da presente compilação, veremos diversas vezes Dr. Plinio empregar a expressão “Reino de Maria”. Esta expressão ele a colheu do grande santo francês São Luís Maria Grignion de Montfort (1673-1716), em seu famosíssimo “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem” (Vozes, Petrópolis, 1998, 25ª ed.). Cabe esclarecer que somente Deus, como Autor de todas as coisas, por sua própria essência tem a realeza universal sobre todas as criaturas, que Ele governa para conduzir ao seu fim. Mas Jesus Cristo e Maria Santíssima participam dessa realeza universal. Pela união hipostática ao Verbo divino, Jesus Cristo homem é Rei do universo. Pela condição de Mãe de Deus, Maria participa conaturalmente da Sua realeza universal. A tese segundo a qual Nossa Senhora é Rainha no sentido próprio e formal do termo, embora não sendo ainda definida de fide, pode considerar-se teologicamente certa. Ao estender a toda a Igreja o culto ao Imaculado Coração de Maria, Pio XII reafirmou que os fundamentos da realeza de Maria são sua Maternidade divina e sua participação em toda a obra redentora de seu Filho (Encíclica Ad cœli Reginam, de 1944). Ora, o Reino de Maria não é diferente do Reino de Cristo, no sentido de que Nossa Senhora tem os mesmos súditos e desígnios. Logo, seu reinado não pode ser exclusivamente espiritual, mas deve ter também uma dimensão temporal, por um motivo análogo ao invocado por Leão XIII e Pio XI para justificar a realeza social de Cristo: “Os homens não estão menos sujeitos à autoridade de Cristo em sua vida coletiva do que na vida individual” (Encíclica Quas Primas, de 1925). E é por isso que, após instituir a festa de Maria Rainha e ter ordenado renovar cada ano a consagração do gênero humano ao Imaculado Coração de Maria, Pio XII declarou colocar neste gesto “grande esperança de que possa surgir uma nova era, alegrada pela paz cristã e pelo triunfo da religião” e afirmou que “a invocação do Reino de Maria é (...) a voz da fé e da esperança cristã” (Discurso de 1° de novembro de 1954). Esse futuro reinado de Maria, que a razão e a fé indicam, foi previsto por muitos santos e, em particular, como dissemos acima, por São Luís Maria Grignion de Montfort, que, no “Tratado da Verdadeira Devoção” fala de um “feliz tempo em que Maria Santíssima será constituída Senhora e Soberana dos corações” e, através dos corações e das mentes dos homens, reinará na sociedade. O Reino de Maria não é, portanto, senão o triunfo da Igreja e o apogeu da civilização cristã. Este triunfo é necessário na História para permitir aos homens, que têm uma natureza sociável, dar a Deus, já no tempo, toda a glória que os anjos e bem-aventurados Lhe rendem na eternidade. É o que Jesus nos ensinou a pedir no Pai-Nosso: “venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu”. O Reino de Maria será a época mais brilhante da História. Mas também esta, depois de uma fase de esplendor, conhecerá a decadência, o pecado e o castigo divino. Este castigo será o Reino do Anticristo e o fim do mundo, que culminará com a Parusia, ou seja, a segunda vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo para julgar os vivos e os mortos. 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 101


Comida popular, por exemplo. Há certo equilíbrio que eu procuro manter entre a plebeidade pela qual todo o homem é homem, e o aristocratismo pelo qual o homem se angeliza um tanto, de maneira a não perder nenhum dos dois elementos. Ter o pé no chão e saber compreender o valor e o sabor da coisa popular, tonifica certo elemento do nosso próprio equilíbrio. Se ficarmos só nas coisas aristocráticas, não vai. Por outro lado, ficar só na coisa popular também não vai. Então, é preciso saber voar assim: comer vatapá, cuscuz e essas comidas populares brasileiras, e depois subir para o éter. Ou seja, comer da comida popular, aliás de qualquer lugar do mundo, eu gosto muito, comer um prato ou dois. Mas de vez em quando emergir também. É o modo de ser de cada um215.

*

O gosto que eu tenho por estas coisas se relaciona com a literatura infantil alemã, que é muito sugestiva. Essa literatura dava-me o gosto pelas coisas que não têm nada de sensualidade; têm o prazer inocente da vida e faz a pessoa ter a alegria do dever cumprido. Ela realçava sempre o indivíduo que cumpriu o dever, que depois teve, ato contínuo, o prazer da consciência limpa, e logo o prazer do estômago cheio. A Fraülein Mathilde216 dava literatura infantil assim, e eu a lia e me regalava. Resultado: chegava na hora de comer, o apetite era enorme; na hora de beber, a sede era colossal; na hora de dormir, o prazer de se deitar. O homem que degusta pães alemães degusta uma coisa pesada, que vai quase que o agredir, mas ele tem as reservas dele preparadas para a contra-agressão e então se trava uma guerra.

(Para uma explicação mais detalhada sobre este tema, ver Roberto de Mattei, “Plinio Corrêa de Oliveira, profeta do Reino de Maria”, Ed. Artpress, São Paulo, 2015, p. 405-445). 215 Chá SRM 26/11/91 216 Fraülein Mathilde Heldmann foi uma preceptora alemã nascida em Regensburg, a qual havia sido contratada para educar filhos de casas aristocráticas europeias, e que fora trazida por Dona Lucília quando a família voltou da viagem à Europa em 1912. Dela disse Dr. Plinio: “Tenho a alegria de mencionar com saudades, com respeito e com afeto o nome dessa grande educadora: era uma bávara de Regensburg, Fraülein Mathilde Heldmann, que me ensinou o alemão, o francês e o inglês, porque ela era uma verdadeira poliglota. E me deu certo gosto de estudos; ela só fracassou no intuito de me ensinar as matemáticas, me dar o gosto das matemáticas. Às matemáticas e às ciências naturais, meu espírito nunca se voltou ao longo de minha vida” (Êremo Praesto Sum, 1/6/82). 102

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Eu, que gosto tanto de comer, acho que conversar ainda é mais gostoso do que comer217. Na gastronomia e na leitura do jornal, os mesmos princípios se refletem Quando analiso a política internacional ou a política nacional, muitas vezes minha atenção se volta para assuntos que não são espetaculares, mas que têm interesse por acrescentar um matiz a determinada situação, matiz esse que pode modificar determinado panorama. Assim, toda situação política é feita de matizes. Nós devemos ser de tal maneira que, na gastronomia ou na leitura do jornal, os mesmos princípios se reflitam. Por exemplo, sou de opinião de que colocar arroz junto com outro prato comunica àquele prato, para quem sabe apreciá-lo, uma porção de sabores muito delicados e às vezes quebra e tempera o sabor excessivamente forte daquele prato. Daí a minha mania, reputada um pouco exagerada por alguns, de gostar do arroz. Meu gosto pelo arroz é uma opinião individual. E compreendo perfeitamente que se possa ir para um Céu muito mais alto do que o meu, detestando-se o arroz. Mas aqui na terra, pela mesma razão pela qual eu me esforcei em comer e gostar das coisas também de sabor discreto, por motivo análogo esforcei-me também em ler e apreciar as notícias de um alcance discreto. Faz parte da sabedoria aquilatar cada coisa segundo o valor que tem. E saber compreender o valor que os pequenos matizes têm ou não têm, e conceder-lhes o lugar próprio que eles merecem dentro da ordem do universo218.

A SENSIBILIDADE DA ALMA SENSIBILIDADE AO PULCHRUM Opção preferencial pelo pulchrum Pelo meu modo de ser e por temperamento, não sou insensível nem subsensível ao verum ou ao bonum. Mas eu nunca deixo de dar para mim 217 Chá SRM 1/3/94 218 RR 5/4/69 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 103


mesmo uma visão completa do verum e do bonum, sem que o pulchrum esteja presente. E ainda que não houvesse as necessidades da Contra-Revolução, o meu temperamento já teria uma propensão para isso. É muito difícil, não digo impossível, verem-me tratar de um tema fazendo abstração completa do pulchrum. Mas às vezes o tema exige isto. Por razão pessoal, há alguma coisa em mim que faz com que o meu entusiasmo, a plenitude do meu élan não se dá senão quando o pulchrum está presente. E quando se dá, é porque acabei percebendo um tal ou qual pulchrum. Por exemplo, um raciocínio dado por São Tomás com toda simplicidade, se me empolga e nele entro com todo o meu élan, é porque notei a beleza daquela simplicidade. É uma circunstância pessoal – eu compreendo que outras pessoas não tenham isto – muito propícia à vocação contra-revolucionária, dadas as condições pelas quais a Contra-Revolução deve ser tocada hoje em dia. Por causa disso, eu acho que os membros da TFP devem ser levados a desenvolver e a ver as coisas assim219. O reverso da medalha: incapacidade de elaborar O meu espírito, do ponto de vista artístico, não é muito criativo. Posso gostar muito das coisas belas, e posso sentir de maneira imaginativa a magnificência delas. Mas eu não saberia desenhá-las, nem as pintar, nem as esculpir, nem as musicar. O meu espírito fica cheio de ideias, mas dentro de uma incapacidade de as executar, à espera de que venha o artista que, em união com meu modo de ver as coisas, execute o que está na minha cabeça. Isto é o próprio de todo homem de ação quando tem um pouco de largueza de espírito. Ele não é capaz de executar, mas encontrando o homem da Providência capaz de o fazer, ele encontra aquele que vai glorificar a ação dele e o põe na realização. Por exemplo, um chefe de Estado que seja um grande homem, acaba por ver aparecer os arquitetos, os músicos, os decoradores, os artistas, os cantores, os poetas que estejam dentro da linha de pensamento dele e que completam o que ele faz. Luís XIII, Luís XIV, Luís XV e Luís XVI inspiraram estilos, inspiraram uma nova face para o mundo, deram para a humanidade uma nova fisionomia. Mas eles não sabiam fazer isso. Eles sabiam pegar o artista que executaria. 219 MNF 7/4/89 104

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Um poeta francês disse que Luís XIV soube despertar as musas de todas as artes. Já Napoleão disse às musas: “Calai-vos, porque eu estou aqui”220. Gosto em analisar os ambientes Sou muito sensível aos ambientes, e a vida inteira tive paixão de examinar, de considerar os ambientes, muito mais do que de considerar indivíduos. Toda a vida me extasiei com os ambientes que Deus pôs em dois elementos nos quais o homem habitualmente não mora: o mar e o ar. Houve tempo em que, antes de entrar para o Movimento Católico, eu tinha alguns fins de semana muito sociais, infelizmente mundanos, mas graças a Nossa Senhora, de minha parte, sem nenhum pecado. Terminado o dia íamos para a casa de um parente. Éramos muito jovens, 16, 17, 18 anos, um grupo grande de parentes. Formava uma roda de primos, primas, irmãos, irmãs. Ali havia um jantar muito bom, e quando tudo se dissolvia, ficavam uns poucos. Esses poucos eram algumas moças e dois ou três rapazes. E subíamos para um terraço – era uma casa de estilo neogótico – que dava para um céu ainda não poluído. Nas quinas desse terraço havia figuras de metal muito bonitinhas representando lansquenetes dos tempos das Guerras de Religião, na ponta das quais havia lâmpadas que por assim dizer projetavam as pontas do terraço e o próprio terraço um pouco no passado, no mito histórico. Num luar tantas vezes bonito, as nuvens passavam e bailavam de um lado para outro, e eu conversava com os que estavam ali presentes. Algumas pessoas tocavam a “bisavó” da vitrola atual, que era o gramofone acionado por uma manivela. E ficávamos bebericando algum guaraná, alguma coisa assim inofensiva, durante uma hora, duas horas, conversando sobre tudo e sobre nada. Mais do que tudo o que impressionava era o luar dando sobre o piso, se não me engano, de mármore desse terraço, e sobre os lansquenetes. Havia alguma coisa de sonhador nas janelas e portas vagamente neogóticas da casa. Tal como a proa de um navio entrando mar adentro, assim também aquilo era uma espécie de proa que entrava na irrealidade do passado e do céu material. A cada momento o ambiente se transformava continuamente. E eu ficava pensando, mais do que eu dizia. Porque todos gozávamos o ambiente, mas eu procurava explicitar o ambiente. Revivíamos o dia agradável que 220 Jantar EANS 26/9/90 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 105


havia passado procurando adiar, com as cogitações, a segunda-feira iminente de que fugíamos. Fazíamos assim o mito do domingo que acabava e fugíamos da careta da segunda-feira que ameaçava, projetando-nos dentro do luar rumo às nuvens com reminiscências históricas. Era o ambiente criado pelo céu, pelas nuvens, na noite com luar. O que dizer aos senhores do ambiente do mar? Quando eu era deputado, a Assembleia ficava perto de um braço de mar no Rio. E de lá se partia de barca para Niterói. Quantas vezes eu me “moxinifava” naquele ponto de embarque e ficava sentado, olhando o mar que sobe e que desce, os barcos que sobem e descem, o mar, o tropel da gente que entra, da gente que sai, dos navios que se distanciam. Depois ficava tudo sereno, tudo tranquilo, e eu olhando só o mar, tão mais interessante do que tudo isso. E pensava: “Nisto que eu estou vendo não há mais do que há na Constituinte?”. É uma riqueza de ambiente221. Gosto pela largueza física e pela bonomia Por natureza, por temperamento, por modo de ser, não gosto de absolutamente nada que me aperte e que me sirva de obstáculo. Basta dizer que eu usei ainda por muito tempo relógio de bolso. E preferi o relógio de bolso por não gostar do relógio pulseira em torno do meu pulso, porque aquilo cria um entrave. Vou me mover e sinto aquela pulseira me apertando, quando aquilo deveria estar longe de mim. Depois entrou de tal forma o costume do relógio pulseira que eu já não podia mais usar o relógio de bolso: seria quase um escândalo usar relógio de bolso. Tive então que aposentar meu relógio – um bonito relógio que perdi – e comecei a usar relógio de pulseira. Até hoje não me habituei ao relógio de pulseira: me cerceia. Se faço um movimento para cá, sinto aquela pelota que vai para lá: é o relógio.

* Se essa é a reação do pulso diante do relógio, a fortiori é a reação do pescoço diante do colarinho: são situações análogas. Muito mais prosaicamente, a fortiori também dos pés com os sapatos. Sapato, quanto mais largo e arejado, melhor. Entra ar dentro e nos sentimos à vontade. 221 SD 4/9/82 106

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Aquela caixa de couro que aperta o pé, não. Apertar não. Quero estar à larga. Já nas coisas de doutrina eu não sou assim, nem nas coisas onde entra a lógica. As únicas coisas de que eu gosto apertadas são a ortodoxia, a moral e a lógica. Aí o aperto me encanta. De resto, aperto não. Por quê? Porque eu quero ser livre de me mover, de fazer como eu entender, sem embaraços. Aquele incômodo me chama a atenção penosamente, desagradavelmente, não quero. Quem dirige as almas deve tomar muito em consideração a variedade delas, para não exigir das pessoas aquilo que não está no plano de Deus que elas deem, e para exigir delas o que está no plano de Deus que elas devem fazer. Desde que aquilo me atrapalhe para pensar, me atrapalha para amar a Deus. Então não serve222.

* Em certas fases e situações, sou muito de laissez trotter les choses, deixar as coisas irem andando por si e ir tirando proveito de cá, de acolá. Assim, quando as coisas não estão muito claras, não sou favorável a delimitar o caminho223. Aonde houver possibilidade de entrar o mal, tem que estar tudo justo. E o homem deve, desse lado, estar como num campo de batalha continuamente. Aonde não entra o mal, é bom certa largueza boa, generosa, e que se estenda até largamente. Assim as duas pulsações da alma humana, ou do coração humano, ficam bem claras. Por exemplo, em poucos ambientes eu agiria com a intimidade e com a folga com que eu procedo na presença dos senhores. E não há ocasião que eu perca para deixar os senhores à vontade, e os senhores compreenderem com que vontade de lhes ser benéfico, de ser benfazejo eu procedo em todos os momentos. E dentro da aparência da folga, até nisto tenho muita precisão. Porque o demônio gostaria muito que isto não fosse assim. Ele gostaria que eu tratasse os senhores com certa severidade rija, e que os senhores se sentissem à distância de mim, curvados ante uma obediência exercida com o sobrolho carregado e, para usar uma metáfora, de chibata na mão. Os senhores percebem quanto isso lhes faria mal. Pelo contrário, sabem quanto lhes faz bem eu agir de outra maneira. 222 Chá PS 27/11/90 223 CM 20/5/84 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 107


Então, no seguinte ponto eu sou muito preciso: eu não tenho um gesto, uma inflexão de voz que não tenha em vista desmentir o demônio. Junto aos filhos das trevas o demônio gostaria de fazer constar que sendo eu, pela graça de Nossa Senhora, muito católico, sou mole. Então, para desmentir o demônio, é preciso que eu proceda de modo duro. Exatamente junto aos senhores, eu bem percebo que o demônio gostaria de dar a entender que sou implacavelmente duro. Então, eu sou implacavelmente suave. E suave com toda a precisão. Isto faz parte da luta implacável contra o demônio. Ele é nosso inimigo implacável, nós devemos ser implacáveis com ele. Bom, uso colarinhos e sapatos folgados. Por quê? Porque isso dá-me uma sensação agradável da misericórdia de Nossa Senhora, que, pedindo-me coisas duras, também me dá algumas coisas suaves. E acho que é benfazejo para a minha alma que eu me permita uma folga razoável, uma folga proporcional dentro disso. Pelo contrário, naquilo que, mesmo em matéria de traje e em outras coisas do gênero, não deve haver nenhuma forma de relaxamento, eu procuro ser preciso. Este é também o modo pelo qual os senhores devem se tratar a si próprios. Quer dizer, em algumas coisas em que não esteja envolvida a luta do bem contra o mal, permitirem-se com folga, com bondade, com alguma largueza. Mas, pelo contrário, nas coisas em que esteja envolvida a luta do bem contra o mal, é ali!224

* Até mesmo por temperamento sou propenso à bondade, à indulgência, ao perdão, ao estímulo, e de todos os modos225. Corresponde muito a esse bon vouloir uma planta brasileira que não sei se dá fora do Brasil, mas de que eu gosto muito: é o capim gordura. O aspecto é muito agradável, e o cheiro dele mais agradável do que o aspecto. O capim gordura mantém um relacionamento afetuoso com os outros elementos da natureza226. Meu afeto para com as pessoas se dá muito largamente, pode abranger um número indefinido de pessoas. Mas qualquer um, não.

224 Chá 16/4/90 225 Chá SB 19/4/88 226 MNF 18/5/93 108

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Ou há certas circunstâncias que justifiquem esse afeto, ou não tem. Dou quando há razoes; retiro quando há razões. Graças a Nossa Senhora sempre me recusei a querer quem não merecesse ser querido227. Os senhores dirão: “Mas há tanta bondade no trato do senhor”. É verdade. Mas os senhores sentirão que essa bondade, quando incide sobre os senhores, é como um jato de luz que procura ser o mais acalentador e o mais iluminador que lhe seja possível. Mas que tem meta fixa. Afaga nos senhores alguns aspectos. Não todos. Deixo isso bem claro no meu trato. Acho que ninguém, depois de ter recebido de mim um bom trato, ou numa conversa, ou em um cumprimento sumário, ou um olhar bondoso durante uma reunião ou durante uma cerimônia, que saia de lá confortado nos seus defeitos. Não tem perigo228. Senso vivíssimo da própria dignidade O meu lado tranquilo, o meu lado pacífico levava-me muito a não entrar em brigas. Mas, graças a Nossa Senhora, ligado à sensibilidade, eu tinha um senso vivíssimo da minha dignidade. Julgo que isto foi uma coisa haurida de mamãe, e que já se situava um pouco além da sensibilidade: era a sensibilidade somada a mais alguma coisa de alma. Impunha-se para mim que eu me fizesse respeitar. Era então um dever absoluto de me fazer respeitar, com a proibição moral de eu, debaixo de qualquer ponto de vista, me fazer de medíocre, de bobo ou qualquer coisa assim, em que eu não podia admitir que não fosse um menino respeitado. Nisto não entrava vaidade, nem amor-próprio. Isto era a tal sensibilidade, mais algo. Como isto despertava em mim reações muito vivas, merece ser nomeado no jogo da minha sensibilidade. Tudo isto se ligava à ideia de que a família de mamãe e a família de papai eram de uma categoria muito alta e muito boa. O que me impunha, como condição de identidade com esta situação, a obrigação de me fazer respeitar não só enquanto pessoa, mas enquanto membro daquelas famílias. Daí o seguinte cálculo: “Aquelas famílias são superiores em tais coisas, e por tais coisas assim elas têm uma irradiação no próprio meio até maior do que seria cabível no conjunto das coisas que elas têm. Isto eu

227 Chá SB 21/6/82 228 CSN 20/11/81 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 109


preciso assimilar e preciso ter. E é uma obrigação minha fazer valer isto por um princípio de fidelidade ao que tem de dom de Deus nesta condição”. Onde entrava o amor-próprio e vaidade era noutra coisa. É que em certas horas o meu natural bom, afável desaparecia, diante de um gosto de tratar os outros de cima e de debicar fazendo sentir que eram menos do que eu. Isto eu não dizia, mas tinha um certo modo de rir, um certo modo de tratar, de apresentar de cima para baixo, mas com pouco caso, e gostando de espezinhar, de dar risada. Aí entrava a vaidade propriamente dita e entrava o amor-próprio, que são defeitos morais propriamente ditos229. ALGUNS FEITIOS, GOSTOS, HÁBITOS E MODOS DE SER Inteligência intuitiva, mas ruminante e amiga de grandes construções feitas a partir de pequenas observações Os brasileiros são muito intuitivos. No primeiro olhar, num relâmpago, muitas vezes eles pescam como são as coisas. E eu, brasileiro a cem por cento, tenho uma parcela de intuição também. A intuição não é uma coisa racional? É como um bicho que tem instintos e que pega as coisas no ar? Em parte é, porque nós somos animais racionais e temos instintos. E muitas vezes a pessoa tem um instinto muito fino e pega as coisas no pulo. Mas, além do instinto, o homem muitas vezes, sobre uma coisa qualquer, raciocina tão depressa, que ele não chega a se lembrar quais foram as etapas intermediárias do raciocínio. Creio que, para uma porção de situações, a minha intuição é um raciocínio feito muito rapidamente. Hoje, por exemplo, sei explicar uma porção de coisas que intuí. E que, quando tinha 20 anos, eu não saberia explicar. E constituía um problema eu lançar certas afirmações, porque via que ninguém me entenderia. Na época do “Legionário”, eu tinha uma dificuldade muito grande em explicar certas coisas. Às vezes, para dar uma explicação a uma objeção que me era feita durante as nossas conversas à noite, eu levava dois ou três dias pensando230.

* 229 CSN 22/8/87 230 Jantar EANS 10/4/87 110

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Em uma das vezes que fui a determinado país, chamou-me a atenção como as pessoas desse país davam mais atenção ao raciocínio explícito do que o brasileiro dá. Era uma idolatria do raciocínio explícito. Eu, que vivo no Brasil brigando porque os meus compatriotas não explicitam o que pensam, chegando lá compreendi que ter certos cantos implícitos na cabeça é mais ou menos como ter um pouco de mata nas terras que temos: é o resto fecundo. Como eu tenho muita coisa implícita na cabeça, tomo cuidado, ao explicitar, de nunca aceitar como válida uma premissa que choque algo do que eu tenho de implícito. Não aceito isto, porque eu vou aceitar uma coisa relaxada, obra da preguiça. Não estou levando o meu pensamento até o fim, mas eu tenho alguma coisa que pode enriquecer o meu pensamento e que eu não dei. Não tenho direito de fazer isto. Deus me deu o explícito e o implícito, eu tenho que usar as duas coisas para fabricar a minha posição. E, portanto, eu paro e fico pensando até conseguir explicitar231. Se me perguntassem qual a parte de mim que eu prezo mais, aquilo que eu explicitei ou o que tenho implícito, eu julgo que, nas minhas limitações, o que eu tenho implícito é tão mais alto, tão mais vasto e tão melhor do que explicitei, que nem há comparação232.

* Na elaboração de meu pensamento, eu ando alternativamente da realidade para a teoria e da teoria para a realidade, com vistas a esgotar o tema de um determinado modo em que estivessem presentes, se associando, a teoria e a realidade. Nunca a teoria sem realidade, e menos ainda a realidade sem a teoria233. Eu enriqueço o meu ponto de partida com algumas coisas que eu adquiri durante a “viagem” sobre o assunto234.

* Tenho uma inteligência lenta, até mais lenta do que o comum, para pegar o começo das coisas. 231 Despacho França 22/7/92 232 EVP 28/10/79 233 CSN 12/8/89 234 CSN 7/11/92 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 111


Isto se deve ao fato de que, ou eu consigo para as coisas uma explicação e uma ordenação muito profundas, ou, se não consigo, eu não compreendo. O compreender para mim passa pelo fundo da terra ou pelo alto do céu. Fora disso eu não entendi. Muitos espíritos, talvez mais dotados, compreendem mais rapidamente. E toda a vida eu, no começo de todos os assuntos, faço um papel de pseudo burro. Porque eu levo mais tempo do que todo o mundo para me pôr dentro do assunto. Agora, uma vez posto no assunto, com muita facilidade o circuito todo se desvenda e então chego muito mais depressa ao fim do que outros235.

* O meu pensamento é às vezes rápido, às vezes muito lento, porque eu elucubro um pouco, paro, e daí a um ano, digamos, o assunto me volta à cabeça236. Durante anos, porque eu quase não tenho tempo de ler nem de estudar, eu vou registrando as coisinhas que eu pego pelo ar, e vou catalogando, vou procurando valorizar237. O tempo que eu tenho para pensar é mesmo muito pouco, mas Nossa Senhora me deu o favor de saber aproveitar os interstícios, e eu, nos interstícios, aproveito e penso muito. Às vezes eu estou, por exemplo, subindo o elevador, é um minuto ou dois, mas estou pensando sobre algum assunto238. Tenho por hábito proceder assim: quando alguma coisa se apresenta difícil de resolver, começo a fazê-la sem conhecer a solução. E, às apalpadelas, contando com o bom senso de todo o mundo, a solução nascerá. Um dos comportamentos perante o problema é: prever, e não havendo jeito de solucioná-lo de um modo nem de outro, lançar o navio. E vamos ver como ele navega. Este seria um dos elementos da formação de uma sociedade orgânica239.

*

235 MNF 10/11/89 236 MNF 1/2/85 237 MNF 8/2/89 238 Chá SRM 4/1/91 239 RR 9/8/91 112

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Está no meu modo de ser que não me basta conhecer uma coisa apenas por ela, mas conhecê-la melhor ainda por mil analogias a que ela se presta, pelas quais conheço a coisa, e conheço as coisas de que ela é análoga. Enquanto eu não instalo essa coisa com todos os relacionamentos possíveis, eu não sossego. Isso é um produto segundo da primeira compreensão. Meu espírito é impetuosamente voltado para isso240.

* As perguntas que ponho para mim são ruminações. Em geral são perguntas doutrinárias de coisas que estão em elucubração, ou são perguntas táticas de panoramas que estão na alça de mira. Vamos encontrando toquinhos de solução daqui, de lá, de acolá, e nesses toquinhos Nossa Senhora insere o socorro d’Ela. Quando me veem resolver um assunto na hora, os senhores não imaginam quantos marcos foram postos para se chegar até lá. Aquilo foi meditado, refletido, quanto e quanto! Se eu fosse fazer um inventário das coisas que eu tenho na cabeça, não acabava mais. Eu resolvo assim: penso um pouco numa coisa, esbarro no insolúvel, arranjo apenas um pouco a coisa e passo adiante. E assim vou fazendo a visita dos insolúveis, agitando cada insolúvel de cá, de lá, de acolá, a fim de ter o suficiente para, em certo momento, se encaixar uma solução da Providência. Trata-se depois de discernir o que a Providência quer. Bem, mas isso não é feito na angústia, não é feito na aflição, não é feito numa perplexidade cansada, não é feito fazendo força para resolver. As coisas em que se faz força para resolver, eu não consigo resolver. Vai passando várias vezes, várias vezes, várias vezes, por ali que se encaixa uma solução241.

* Quando era menino, às vezes, brincando num jardim, via um ninho de passarinho, mas nunca me pus o problema de como era feito. Um dia alguém, não me lembro quem, me explicou que o passarinho pega de cá, de lá e de acolá umas ervinhas, umas coisinhas, e vai colocando no ninho em construção. E de um modo espantoso, cada coisa que ele 240 MNF 15/11/89 241 CSN 31/7/82 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 113


pega se ajusta bem no lugar vago que ele tem em vista, e no total é feito o ninho de passarinho. E aquilo tem mais coesão do que se imaginaria à primeira vista, porque resiste à entrada e à saída do passarinho. Depois, os ventos sopram e o ninho não se descola da árvore. Aquilo é feito, portanto, de acordo com o instinto e dá uma obra de uma fixidez e uma seriedade perfeitas. Tenho a impressão de que as grandes construções intelectuais são feitas em larga medida assim. Ao menos no meu caso, elas não são feitas como um romântico do século passado imaginava um intelectual, com a mão colocada no cabelo e pensando com um olhar inspirado, tendo atrás uma musa meio etérea que toca uma harpa e sugere os pensamentos. Ele a ouve, e então tira uma conclusão. Essas grandes construções são resultado de pequenas coisinhas coletadas humildemente, de modo despretensioso, e que a pessoa vai acumulando e relacionando: “Isto se liga com aquilo”. Passado um ano, ou mesmo um minuto, vê outra coisa e liga com o raciocínio anterior. Um belo dia, ele olha e vislumbra o conjunto e diz: “Olhe, dir-se-ia que o ‘ninho de passarinho’ está feito”. E então vai ver o resultado e o submete à prova da razão. Se o “ninho” foi bem feito, resistirá a essa prova da razão. Quer dizer, a razão faz a análise severa e vê que o “ninho” resiste. Então chegou a ocasião de utilizar o “ninho” e entrar dentro dele. Certos temas eu resolvo desta maneira. Muitíssima coisa que eu apresento aqui aos membros da TFP em reunião, é “ninho de passarinho”. Em larga medida, pensar é isto. Não é a pura parada do silogismo engendrando-se um ao outro, um ao outro. Isto só se dá no fim do processo. A solidez do pensamento está no raciocínio. Mas a elaboração e a concatenação das premissas se fazem assim, muito aos pouquinhos242.

Timbre de voz e loquacidade

A expressão timbre de voz alcança uma superfície muito grande de temas, que iria quase do timbre de voz humanamente falando até o timbre da alma. Há timbres de voz que são de combate, de batalha, próprios para enfrentar, para descompor. Há outros timbres de voz que são de louvor durante a batalha. E há ainda timbres de voz que são de reparação e de amor durante a batalha. 242 CSN 2/5/92 114

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Os quatro atos de culto são: adoração, ação de graças, reparação e petição. Para cada uma dessas coisas, a mesma voz tem o mesmo timbre. Mas ela nunca está inteiramente em casa a não ser quando é na batalha. Tenho impressão de que o meu timbre de voz daria mais para a batalha, para a apóstrofe contra: “Você disse tal coisa, você é tal coisa assim, eu vou provar, ouça, e agora lá vai: pam!” Quer dizer, nesta invectiva contra o crápula que está atacando, que quer destruir, que nega, que finge que não vê, é onde mais eu me sinto inteiramente à vontade243.

* Quando tinha mais ou menos 50 anos, um inimigo nosso, com quem eu tive que conviver por alguns dias, aproximou-se de mim e me disse: – Diga-me uma coisa. O senhor queria explicar-me um pouquinho como é a sua vida? – Minha vida é como a de todo o mundo. Eu me levanto de manhã, vou comungar, volto, tomo café, começo a trabalhar. – Não. É diferente: o senhor de manhã acorda, começa a falar e fica falando até a hora de dormir. – Esse é meu modo de trabalhar. Tudo que eu falo é trabalho. Você não me pega numa conversa inútil. Posso até estar me distraindo, mas distração faz parte do razoável. Perder tempo parlapateando, não. Ele ficou quieto. O fato é que eu aprendi a falar extremamente cedo. Com 6 meses eu já falava. E passei o resto da vida, ao menos até agora, falando244.

Boa memória para os fatos internos, os estados de espírito, as psicologias e os ambientes

O ambiente moderno insinua que a memória deve exercitar-se muito mais na recordação dos fatos externos do que internos. A verdade é que eu tenho má memória para fatos externos. Mas para certas outras coisas tenho uma memória de ouro. São poucas, mas delas eu me lembro perfeitamente245. Assim, eu me recordo das épocas marcantes, das grandes linhas gerais da graça na minha alma. Porque todos os movimentos da graça nem nós conhecemos, muitas vezes são subconscientes246. 243 CSN 30/10/93 244 SD 13/6/81 245 EVP 30/1/77 246 Chá PS 8/5/80 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 115


Lembro-me muito também de movimentos da graça que pude observar na alma de outras pessoas. Dessas coisas não me esqueço247. As fisionomias das pessoas da nobreza eu guardo bem. São almas, e depois são restos preciosos da Cristandade. Quando vejo gente assim, lembro-me de uma frase das Sagradas Escrituras que fala de alguém que amava o Templo, e que se o Templo se desfizesse em várias pedras e essas pedras se desfizessem em pó, amaria o pó dessas pedras. Assim deve ser a nossa fidelidade sobretudo à Igreja. Mas secundariamente a aquilo que nasceu da Igreja248. O melhor uso que o homem pode fazer de sua memória não é se lembrar em que bolso ele guardou tal papel, nem em que gaveta ele costuma guardar tal cinto ou tal gravata no armário. Essas são bobagens. A memória é dada para nos lembrar de um estado de espírito, de um ambiente, de uma atitude de alma nossa e de uma atitude de alma dos outros249. Por exemplo, se tomei um lanche, tomei e acabou-se. Mas a memória de toda a ambientação do lanche, que me é tão cara, eu posso conservar e conservo. Conservo de que maneira? Algo daquilo continua a viver. Pelo menos em muitos casos, a memória é uma sobrevida, é uma vivência que continua. Não gosto da palavra vivência, mas para dizer algo é assim250. Instintivamente, eu tive sempre muito cuidado de me lembrar dos estados de espírito e das coisas pelas quais minha alma tendia para o que há de nobre, de elevado, de santo, de bom. E aos poucos foi-se definindo em minha mente qual seria o estado de espírito em que eu deveria normalmente me pôr, síntese de todos os estados de espírito, e no qual deveria permanecer pela confiança em Nossa Senhora, dentro das piores tempestades251. Vitalidade noturna para o trabalho intelectual Quando estava no 1º ano da Faculdade de Direito – tinha, portanto, 17 anos – comecei a notar duas espécies de surtos de vitalidade em mim: o surto da vitalidade matutina e o surto da vitalidade noturna. 247 Despachinho, 15/8/90 248 Despachinho, 5/9/90 249 Chá PS 19/8/85 250 Chá PS 16/3/82 251 Chá PS 19/8/85 116

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O surto da vitalidade matutina se manifesta como todo mundo sabe, eu não preciso descrever. É acompanhado de certa alegria, e de certa necessidade de expansão, de manifestação, de comunicação com os outros, de ação. O surto da vitalidade noturna se dá quando tudo acabou, a cidade está dormindo e eu sinto a noite se desenvolver. O que é sentir a noite se desenvolvendo? Há certa tranquilidade na noite em que determinadas coisas expandem a sua vida. Aquilo é a manhã escura delas, mas é a manhã delas. Para o meu espírito, essa é a hora em que o trabalho intelectual tem condições mais propícias. Nessas horas, as pessoas como que não estão pecando, não estão errando, não estão dizendo estupidezes nem asneiras, e certa ordem boa que Deus pôs no universo como que baixa das estrelas, se evapora do chão, das árvores, dos canteiros, dos jardins. As casas, ao menos as que são construídas em estilo sério, tomam um jeito ainda mais sério, e ao luar todas as coisas ficam pensativas. Certa faculdade de reviver aquilo que se viveu, de analisar e de partir para o abstrato sobe mais. Isto supõe, naturalmente, que a pessoa esteja bem dormida. Porque chegar a essa hora em estado de sono, e arrebentada pelo dia, não vai. Supõe que a pessoa tenha levado um dia calmo. Quando somos vítimas de um vício chamado “torcida”, à noite não teremos isto e estaremos escangalhados, estaremos cheios de cicatrizes. A noite que eu estou descrevendo com esse surto é, portanto, a noite do homem saudável, não a noite do homem doente. Durante a noite, as impressões se distanciam da realidade terra a terra, o suco da realidade se torna mais vivo para meu olhar mental, as palavras afluem mais precisas, o vocabulário mais variado, as decisões mais imediatas e mais drásticas, a desconfiança mais ágil, e a deliberação para a batalha dos próximos dias, semanas, meses ou anos também mais desenvolta. Compreendo que esse possa ser o modo de ser de muitos e meu também, mas não de todos nem da maioria. A questão da maioria não me preocupa nem um pouco nisso. Entra aqui um lado que talvez seja uma característica brasileira. Tenho a impressão de que os brasileiros, como eu, descendentes exclusivos de português, de índio e de negros são especialmente sensíveis aos surtos do luar. A paisagem dá o seu grande nas noites de luar. À vista desta descrição, não é difícil concluir que para o trabalho intelectual eu prefira muito a noite. E a noite que chega até a madrugada, quando os vampiros do dia começam a se mover, quando o comércio começa a trepidar, quando a indústria começa a rolar, e os pecadores começam a pecar. Aí é outra coisa, e eu me sinto exilado. 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 117


* Analogamente, eu prefiro a luz do abajur à luz direta, porque a luz direta imita o dia durante a noite, e a luz do abajur imita a noite durante o dia. Acresce a isto uma coisa. É que toda vida, mesmo quando eu era muito moço e tinha uma vista esplêndida, havia qualquer coisa pela qual a luz que desce me incomodava a vista. E se eu posso, no meio de uma vida tão cheia de tormentos, diminuir um pequeno tormento neste ponto, para estar mais disposto a lutar em outros, eu acho isto bom. Modo de escrever: frases longas, papel horizontal e prancheta, sentado numa poltrona Se alguém tiver a paciência de prestar atenção no que eu escrevo e no que digo, notará que as frases que eu construo têm a tendência de ser longas. Isto corresponde a um feitio de espírito pelo qual também os raciocínios que eu elaboro e que desdobro têm a tendência a ser longos. Não faço raciocínios breves, incisivos, mas longas demonstrações fortificadas, nas quais eu insiro uma porção de circunstâncias, prevendo os argumentos contra que se possam fazer. De maneira que o meu argumento sai de minha cabeça mais ou menos como um cavaleiro armado sai para a luta. Este modo de ser das minhas frases se apresenta melhor ao meu espírito quando escrito num papel horizontal do que em um papel perpendicular. Isto não quer dizer nem um pouco que todo o mundo deva ser assim. Mas é uma explicação do porquê eu sou assim. Eu veria inteiramente com bons olhos um membro da TFP que escrevesse em linguinhas de papel finas e compridas.

* Tomado o meu corpo no seu total, tenho a impressão de que seria normal que os meus braços fossem um pouco mais longos do que são. Isto faz com que eu tenha certa dificuldade de me sentir inteiramente à vontade numa escrivaninha para escrever. Pelo contrário, a prancheta sobre uma almofada, a qual coloco onde quero e escrevo, portanto, numa distância que me convém, me deixa inteiramente à vontade. É preciso acrescentar que cadeira de escrivaninha nunca é tão cômoda quanto o é uma poltrona. 118

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Então, no fato de eu preferir escrever usando uma prancheta e sentado numa poltrona, há duas vantagens que se somam252. Equilíbrio entre mobilidade e imobilidade Eu tinha, fisicamente, horas de muita vivacidade. E sentia, então, subir do mais fundo de meu ser, mais física do que psicológica, uma vontade de me mover, de ver lugares diferentes, de me esforçar, de acionar a musculatura. Houve tempo em que eu andava a pé, por exemplo de minha casa na rua Barão de Limeira, esquina com alameda Glete, até a avenida Paulista, onde é a atual capela do Colégio São Luís. Eu subia assim a avenida Angélica, que para mim era uma ascensão do outro mundo. Eram ocasiões raras, mas de vez em quando eu fazia isto. Era uma coisa honesta em si, e eu dava vazão razoavelmente a isto. Mas é preciso dizer que eu não era um grande andarilho, não era um grande caminhador, nunca fui sportman em nenhum sentido da palavra. Agora, isso tudo com uma vantagem que Nossa Senhora me concedeu, que era de ser muito igual de ânimo. Eu tinha a mesma disposição de refletir e de pensar a todas as horas do dia, em todos os dias do ano. E nem sabia que isto se chamava refletir ou pensar. Era como quem come, bebe, dorme, respira: assim eu refletia e pensava. Isto trazia um gosto muito grande pelos prazeres calmos, pelos deleites tranquilos, detestando a barulheira em torno de mim. Criança pulando com frenesi e correndo, essas coisas, não! Eu não dizia, mas a vontade era dizer: “Ponha-se em ordem, fique quieto ou vá embora!253

* Eu não era um menino solitário. Eu gostava muito de conversar, eu era de conversar horas. Mas, feitas as conversas, certas partes do dia eu gostava de estar sozinho. E me punha a ler “L’Illustration”, “L’Université des Annales” e outras publicações assim, sossegado, deitado em geral – nem era sentado – numa espécie de sofá, com todas as janelas abertas e não raramente com um copo de água com açúcar perto, que eu ia bebendo com tranquilidade. Comodidade, suma limpeza em tudo, pureza e reflexão; reflexão tranquila, amena, serena, séria, muitas vezes apertante, mas reflexão. Eram 252 Chá SB 14/11/90 253 SD 10/12/83 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 119


coisas de que eu gostava muito. E que constituíam para mim o próprio fundo da vida. O fundo da vida era este. As exceções eram andar, conversar com os outros, ou fazer uma coisa e outra. Não sei se nisto não entrava certo atavismo pernambucano. Quando eu fui visitar minha família paterna no engenho de Uruaé, localizado na cidade de Goiana-PE, encontrei meu tio deitado numa rede, do lado de fora da casa, olhando toda a fazenda ao longe, e com um pau na mão. Ele, com um ar tranquilo, um olhar mandão, mas deitado e controlando tudo. De vez em quando ele chamava: “Fulano!” Lá vinha o Fulano. “Faça tal coisa em tal lugar”. Tive muita sintonia com aquilo, achei muito simpático e pensei: “Se eu tivesse sido educado aqui, não sei se tinha me levantado dessa rede”. Isto eu reputava as condições normais da existência, fora das quais eu não concebia a existência. Daí minhas birras com as viagens. Pois tudo isto fazia com que eu, pelo gosto da tal tranquilidade serena, bem arranjada, detestasse trens e automóveis, porque as estradas não eram quase asfaltadas e havia aquela poeirada. Sou o antagônico da poeira. Estes eram meus hábitos. E volto a dizer, não são paradigmas, era o meu modo de ser, mas que eu tomava como paradigmático. Eu tinha a ilusão de que todo mundo era assim, e que quando não era é porque havia alguma coisa torta lá dentro. Partia da ideia seguinte: “Sou como todo mundo, logo todo mundo é como eu. Se todo o mundo é como eu e se faz diferente, ele está errado”, o que é uma ideia infantil254.

* Uma pergunta curiosa que me fizeram foi: por que prefiro fazer as minhas orações diárias andando de carro? Levo uma vida muito parada, o tempo inteiro entre quatro paredes, sem alteração, sem modificação nenhuma. E uma das razões de viver entre quatro paredes é a minha infeliz facilidade de me resfriar. Isto me impede de fazer uma coisa que seria tão boa, tão normal: trabalhar em algum jardim, coisa que eu teria muita vontade de fazer. É preciso ser obtuso para não compreender todo o deleite que há em trabalhar à sombra de uma árvore em um jardim.

254 SD 10/12/83 120

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Saindo de carro para minhas orações, tenho uma certa movimentação que me liberta um pouco das eternas quatro paredes. Embora eu preste senão um mínimo de atenção no que está se passando em torno de mim enquanto me desloco, eu estou rezando, e rezando com atenção255.

* Há gente que não gosta de barulho. Sou um deles. Barulho humano vá lá. Barulho mecânico eu abomino. Não tenho nenhum entusiasmo, para dizer pouco, por barulho de automóvel. Quando se liga o automóvel e fica aquele rom-rom-rom, romrom-rom, aquela espécie de resmungo explodindo a toda hora, fico com horror daquilo. Pois como sou um ente humano dotado de razão, acabo detestando todos os movimentos em que esteja engajado e que eu tenha a sensação de não poder controlar. Por exemplo, certos corre-corres do automóvel: vai tão depressa que acabamos não percebendo o que está se passando em volta. Passam diante de nossas vistas duas, cinco, vinte árvores que não sabemos de que qualidade são. Entra por um caminho, dá uma volta, entra em uma cidade, sai por outro ponto da cidade e daí para frente. Nesse corre-corre, tenho a impressão de me sentir reduzido a uma mercadoria que está sendo transportada. E confesso que minha resistência a isso é muito enérgica interiormente. Não digo nada, mas é256.

SOCIABILIDADE Propensão brasileira e “luciliana” a estabelecer vínculos afetivos, a dar-se aos demais e a tratá-los com benevolência Sobre o meu modo de querer bem às pessoas, é muito difícil os senhores me verem procurar uma pessoa para obter alguma coisa para mim, nem ter uma segunda intenção de tirar proveito. Ou eu quero, ou eu não quero, e então passo por indiferente ou inimigo, conforme o caso. Aliás, inimigo eu sou só de quem ataca a Igreja ou a civilização cristã. Fora disso eu não sou inimigo de ninguém. A pessoa pode me fazer o que quiser, que eu não sou inimigo dela. Mas se atacar a Igreja, a civilização cristã, realmente eu quero neutralizar 255 Chá PS 10/5/91 256 Jantar 23/3/87 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 121


toda a obra dessa pessoa, fazendo o que for possível para tolher a obra má que a pessoa faça. Os senhores, em anos e anos de convívio, não me viram com raiva de ninguém, isto absolutamente nunca. Essa propensão a dar-me, encontrando aí uma espécie de repouso para mim, eu recebi de mamãe. Eu notava em mamãe uma característica que tem alguma relação com o romantismo enquanto afetividade, não enquanto escola de Filosofia. Ela tinha uma forma de carinho, uma forma de querer bem, em que havia mais dom de si, e por causa disso uma faculdade de envolver, de penetrar e de estabelecer um vínculo afetivo. Ela tinha muito esse dom de si e, se tanto se pode dizer isto de uma pessoa concebida no pecado original, ela não tinha egoísmos. Havia nela uma forma de carinho absorvente para quem soubesse compreender e agradecer. Absorvente no sentido de formar um só com ela. Essa forma de carinho diferencia muito agudamente o sul-americano do europeu e do norte-americano. A excelência disso está num dar-se que há nesse carinho. O carinho não é visto apenas como um apoderar-se, mas muito mais como um dar-se, o que era uma nota saliente nela. Isto é que torna o homem, que é “un petit vermisseau et misérable pécheur”, “um vermezinho e miserável pecador”, tanto quanto possível análogo a Nosso Senhor Jesus Cristo. Disto Ele foi o Mestre de um modo perfeito, verdadeiramente humano e divino. Em todas as páginas do Evangelho vemos quanto Ele se dava. O querer bem d’Ele era mais um dar-se e oferecer-se do que o apropriar-se. Agora, acho que isso ainda é mais acentuado no brasileiro do que nos outros hispano-americanos, e era mais acentuado em mamãe do que em qualquer outro brasileiro que eu tenha conhecido. A sociedade que nascer da restauração da civilização cristã, do Reino de Maria, deve ser muito assim, mas creio que Nossa Senhora deu à Península Ibérica mais do que ao resto da Europa, até acentuadamente mais. E deu aos portugueses na Península Ibérica mais do que a outros reinos que havia lá. Ao Brasil deu mais do que à América espanhola. No europeu há muito menos propensão para dar-se, mas também ele não tem certas más propensões que nós temos, isto é preciso dizer. Por exemplo, os povos sul-americanos em parte não progrediram tanto porque têm muito menos propensão para o trabalho e para a vida dura do que os europeus. Essa propensão que os senhores veem em mim, de querer bem aos outros, não é para querer bem para mim, mas querer bem por causa de 122

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algo de bom que está nos outros, e que corresponde a certo bem que não sou eu e que não é o outro, mas ao qual me dei, e que eu vejo bem que é o espírito da Igreja Católica257.

* Trato a pessoa de acordo com as regras comuns de trato, sempre proporcionadas a cada qual, e levando em conta a maneira como as ligações de alma se estabeleceram. Mais nada. Mas esse trato é de alma a alma, e não um trato mecânico de automóvel a automóvel. Não é isso. É uma coisa completamente diferente258. O demônio gostaria muito que eu tivesse um mau gênio, um trato esquisito, qualquer outra coisa assim, de forma que uma pessoa tentada pelo demônio pudesse dizer a respeito de mim o seguinte: “O mau gênio dele me colheu num dia em que eu estava nessa obnubilação. Ele tem certa autoria na minha concessão”. Queixar-se com fundamento de que alguma vez eu deixei de ter toda gentileza cabível, isto não será possível para ele. Graças a Deus, nunca fiz o descabido por uma alma, mas todo o cabível eu fiz até o último ponto. Disto eu tenho certeza. Outra coisa: nunca se poderá dizer, disto também tenho certeza, que alguém é contrário à TFP porque eu tratei mal a esse alguém. Não ouviram dizer isto em nenhum lugar, de que fui bruto. Nunca ouviram. Esses mesmos não ousam dizer isto259.

* Quando eu trato com alguém, eu a trato como se só estivesse vendo o seu lado bom. Isto eu faço para atrair e fazer bem a esse alguém260. Assim, no trato com as pessoas, eu, como católico, devo manifestar muita benevolência261, pelo bem que eu estou querendo fazer àquela alma. E noto que posso muito mais fazer bem estimulando na pessoa o seu lado bom, do que fazendo sentir o lado mau dela262.

257 CSN 22/8/87 258 CSN 8/12/79 259 CSN 20/12/80 260 EVP 12/6/77 261 Despacho Portugal 30/9/91 262 EVP 3/7/77 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 123


Uma pessoa que visse essa minha conduta poderia até ser induzida a julgar que a minha atitude de alma é de otimismo263, e ser levada a perguntar: que fundamento tenho de tratar uma pessoa com benevolência, se eu nunca a vi antes? É o saber discernir – e nisto Nossa Senhora tem-me ajudado – o que há de elemento bom naquela alma, potencial ou atualmente, de maneira tal que o indivíduo tem o direito, tratando comigo, de sentir que eu vejo o lado bom dele, e que se ele caminhar no rumo desse lado bom, eu crescerei em amizade para com ele. Isto é um direito. Mas acontece que, na brutalidade da civilização contemporânea, as pessoas não estão preparadas para essa ideia nem um pouco. Estão preparadas para não entender, para não compreender o que estou dizendo. Daí resulta que, se nós formos muito benévolos, passamos por pessoas desfibradas, sentimentais e que não têm a varonilidade própria ao homem. Portanto, isto precisa ser temperado, completado pela consideração seguinte: se diante do bem minha conduta é assim, inclusive diante do lado bom da pessoa má, é preciso ela saber que, quando o mal se apresentar em forma de expansão, de contra-apostolado, de conquista, tem a nossa inimizade implacável, contínua e em posição de batalha. Então, essas duas coisas devem coincidir no que o varão católico oferece de sua própria alma àquele com quem ele entabula relações. Em última análise, esse varão deve incutir muita propensão para a pessoa se relacionar bem com ele, mas de outro lado também deve inculcar a ideia de que, se não andar bem com ele, ai daquele! Sai qualquer batalha, qualquer briga, de qualquer tamanho, a qualquer hora, desde que queiram que eu pactue com o mal. Pactuar não é só colaborar, mas é cruzar os braços, não lhe cortar o caminho, não entrar em guerra com ele264. A pessoa então tem que sentir que há um mundo de lados meus que não se abrem para ela. Que eu estendo para ela um dedo, e não a mão inteira. Que, nesse dedo, vai todo o calor da estima possível, mas que eu estou sabendo que posso levar uma punhalada. E que, se for preciso, caso ela esteja fazendo algum mal à Igreja, eu estou disposto a me opor a ela. Isto a pessoa sente. Mesmo pessoas do mundo mais sensíveis à minha ação notam que o jogo comigo não é brincadeira. Se elas saírem da linha, acontece uma de repente265. 263 EVP 12/6/77 264 Despacho Portugal 30/9/91 265 EVP 3/7/77 124

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Trato cerimonioso e cortês Sou, por temperamento, por natureza, uma pessoa muito cerimoniosa. É meu modo de ser. Mesmo com mamãe, com quem eu tinha uma união de alma enorme, eu era muito cerimonioso. Aliás, ela também era muito cerimoniosa. Dentro da intimidade absoluta que existe entre mãe e filho, éramos muito cerimoniosos um com o outro. E nos sentíamos nisto inteiramente à vontade, como outro se sentiria à vontade num trato sem cerimônia. A cerimônia é o modo das pessoas se sentirem à vontade umas com as outras. Com Deus eu sou muitíssimo cerimonioso também. Quer dizer, eu me deleito em considerar a superioridade infinita d’Ele sobre mim, em considerar inclusive a severidade com que Ele me olha. Eu me encanto considerando essa severidade. E o trato como uma pessoa que está sendo acolhida com severidade. Daí o recurso a Nossa Senhora. O recurso a Nossa Senhora provém da convicção de que só assim que eu posso preencher as distâncias siderais que separam Deus de mim. As pessoas hoje em dia, tratadas com cerimônia, se sentem afastadas. Não sinto isto. Acho que a cerimônia é exatamente a regra própria da caridade cristã e as pessoas se sentem bem diante dela266.

* Procuro ser cortês com todas as pessoas com quem tenho de tratar. Essa cortesia não é um esconderijo. É uma manifestação do bem que no fundo se tem para com as pessoas. Não é dizer que eu escondo a minha ira atrás de uma fórmula e que por detrás está a cobra. É o contrário. Podemos ora mostrar o fundo de alma no que ela tem de benévolo, ora mostrar outro aspecto no que tem de iracundo e de zeloso pela glória de Deus. Não é escondendo. É pondo em realce. Quando eu sorrio para uma pessoa, isto não quer dizer que eu não tenho reservas em relação a ela, mas que eu a trato com toda a amabilidade que é o caso, e tenho boa disposição em relação a ela. Isto se tem em relação a qualquer um. Mas quando à pessoa que anda mal deixo ver que me encoleriza aquele defeito que ela tem, ponho em relevo outro aspecto de minha alma e dou isto a entender: “Olha, não se deixe desviar pelo meu mero sorriso. Há outra coisa”. 266 CSN 31/7/82 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 125


O que indica a perfeita regularidade disso é o procedimento de Deus para com os homens. Vamos imaginar uma pessoa que tenha vivido a vida inteira em estado de graça, mas tinha o hábito da mentira. Ela morre com 90 anos, recebe os sacramentos da Igreja, morre com sentimentos edificantes de piedade, com alguma graça sensível de confiança na Providência. Mas ela irá para o Purgatório, onde passará, digamos, cem anos na fogueira. Deus escondeu algo quando fez ver àquele moribundo a sua paciência e a sua bondade? Não267.

* Sou portador, provavelmente, de velhos padrões de cortesia. Esses velhos padrões merecem atrair, realmente. Mas a minha cortesia atrai quando a pessoa está sendo fiel à graça. Quando passa a ser infiel à graça, a cortesia começa a parecer insípida. Aliás, já houve quem me dissesse isto de minha cortesia. A minha cortesia não é feita com intenção de agredir, mas o revolucionário se sente agredido por ela. Ela deixa indiferente um mundo de pessoas que consideram que a cortesia não vale nada, porque, segundo elas, tudo isso é insincero. Uma das coisas que eu admiro no Ancien Régime é justamente a cortesia. A cortesia do Ancien Régime era muito aplicada no trato entre as pessoas. Mas, exceto casos muito excepcionais, eu não tenho noção de que a cortesia do Ancien Régime difundisse uma maneira verdadeiramente nobre de se referir aos temas mais sérios, mais santos, mais profundos e mais cacetes, de maneira a torná-los objeto de salão. Certamente nos salões se falava de coisas dessas, mas num certo froufrou superficial. Não se entrava a fundo no assunto. Acho que os oradores sacros, os professores, os homens importantes não chegaram a aprender a fazer dessas coisas temas de salão. E nós queremos fazer. Por exemplo, fazer neste salãozinho uma conversa de íntimos e que trata dessas coisas a fundo, e num ambiente de salão, é o que era preciso para completar um circuito que a paganização da nobreza impediu que fosse completo268.

267 SD 21/10/87 268 CSN 23/8/86 126

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Solenidade que impõe respeito Caluniam por aí a solenidade como coisa rígida, carrancuda, hostil, diferente da camaradagem. A camaradagem é a “potrice”. E a solenidade é a ordem hierárquica, afável, nobre, mas forte. Toda vida detestei esse trato de potro. E foi muito bom para mim porque, ao mesmo tempo que eu detestava esse trato, gostava do trato da escola de mamãe. Mamãe tinha solenidade? Muita. Dentro do que cabia a ela, toda a dignidade do que ela era estava expressa no menor gesto. E era impossível chegar perto dela sem respeitá-la. Era impossível não perceber que, do alto daquela respeitabilidade, ela dizia a qualquer um que se aproximasse: “Respeite-me e queira-me bem, que você será afagado, protegido e elevado”. Acho que isto é uma maravilha de trato, é o trato católico propriamente dito. Trato é isso. O que não é isso é “dis-trato”. Em contrapartida, também me habituei a enfurecer-me com rudeza com os que não eram assim. E consegui estabelecer em torno de mim um ambiente que não obrigava os outros a entrarem na linha da solenidade, mas fazia com que eles não fossem muito longe comigo na linha da brutalidade. Quer dizer, comigo o trato deles era consideravelmente menos abrutalhado do que com outros, era respeitoso. Essa luta para conter a brutalidade preservou em mim a rudeza. Então eu, ao defender a afabilidade de trato, fui defendido na rudeza. A Providência dispõe assim o caminho para as almas.

Gosto pelas leituras históricas, especialmente das memórias

Para mim, meu descanso consiste em ler narrações históricas269. Meu lazer é de preferência leituras históricas. E entre as leituras históricas, de preferência biografias270. O gênero que foi mais bem desenvolvido, e que está mais próximo da realidade, é a biografia. Porque a História, a não ser biográfica, é sociológica e econômica. A História sociológica ou econômica, com exceção de alguns historiadores como Lenôtre, Funk Brentano e outros, é em geral meio falseada. E fico com o pé atrás. Mas as biografias são muito mais difíceis de falsificar, porque o tema é muito menor, é a vida de um indivíduo. 269 Jantar EANS 5/10/92 270 Entrevista para rádio Uruguaiana 21/6/90 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 127


Nas biografias eu gosto especialmente das memórias. Nelas o indivíduo aparece en su tinta, mesmo quando ele mente. E porque muitas vezes, através disso, vejo o espírito do autor, o que torna particularmente atraente a leitura271. Nos meus minutos de repouso, escolho muito o que eu tenho que ler272. Ou será alguma vida de Santo, ou alguma coisa da aristocracia francesa, quando muito, austríaca. Em geral nobreza273. Em certa época de minha vida, eu tinha o hábito de começar a ler um livro abrindo no meio, na página que desse, e ir tocando para o fim. E depois ir lendo do começo para o meio. Era assim que eu tinha a sensação de me apoderar melhor da matéria e triturá-la bem274. Na minha biblioteca os livros são muito desiguais. Alguns livros são muito sérios, muito pesados, outros são livrecos que eu encontrei ao alcance da mão, e que fui lendo e marcando. Marcando para o benefício dos senhores, mas lendo sobretudo para me distrair, para, à noite, afastar o que a Liturgia chama de nocturna phantasmata. Em vez de pensar nas coisas do dia e da civilização medonha contemporânea, acabar dormindo pensando em algum personagem do passado. Para mim isto é quase terapêutico: limpar o meu para-brisa antes de dormir, e dormir com figuras bonitas, elegantes, leves que passam diante do meu espírito, em vez dessa infernalia phantasmata que são as coisas da vida de todos os dias275. Para mim, terminado um jantar, deitar-me na cama e ler as memórias de Monsieur de Metternich, por exemplo, é uma necessidade para eu me afastar de tudo quanto acontece, e emergir num passado grandioso em que se movem pessoas cultíssimas, interessantes, no qual os problemas R-CR276 são focalizados de modo inteligente, e em que está presente a Cristandade e a Igreja Católica277. 271 Chá SRM 29/11/90 272 RR 29/9/974 273 Despachinho 15/6/84 274 RR 18/11/73 275 CM 6/5/90 276 Por uma simplificação de linguagem, entre os discípulos de Plinio Corrêa de Oliveira criou-se o costume de abreviar o nome do livro “Revolução e Contra-Revolução” por suas iniciais “R-CR”. Por analogia, “R-CR”, quando empregada em expressões como “problemas R-CR”, “assuntos R-CR”, “visão R-CR das coisas”, significa assuntos que devem ser vistos segundo a doutrina e o espírito explicitados pelo livro “Revolução e Contra-Revolução”. 277 Jantar 23/3/87 128

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A INOCÊNCIA PRIMEVA AS MANIFESTAÇÕES PRIMIGÊNIAS DA INOCÊNCIA Ver tudo pelos seus aspectos maravilhosos Há um impulso que a pessoa sente na alma quando é criança – impulso este que talvez em parte seja natural, mas muito principalmente sobrenatural, proveniente do Batismo –, pelo qual ela tende a sempre ver as coisas pelos seus aspectos mais altos, mais elevados, mais nobres, poderíamos até dizer pelos aspectos culminantes, e a se interessar pelas coisas na medida em que tocam no culminante, e interessar-se menos na medida em que não tocam no culminante. Concebo que algumas crianças tenham isto mais acentuadamente e outras menos, de acordo com as vias de Deus para cada um. Uma criança que esteja no estado de espírito que eu falo, gosta de brinquedos, gosta de comer e procura nisso tudo um certo maravilhoso. E quando vai-se ver por que razão a criança gosta de um brinquedo mais do que de outro, é porque aquele brinquedo conduz o espírito, a fantasia, a imaginação, a sensibilidade para uma coisa mais elevada, e por isso mais bonita278. Isto se deu comigo em várias épocas da minha vida, e me lembro bem de coisas elevadas que me atraíram de um modo fabuloso. Havia momentos em que aquela atração era tão profunda, que eu tinha quase a impressão de uma mão entrando em mim e me segurando. E eu dizia: “Quero ser seguro por esta mão para sempre, de maneira que isto forme um só todo comigo e seja eu mesmo. Esta luz, isto que eu sinto, eu quero que se identifique comigo de maneira que seja eu mesmo”. Via que eram posições de alma muito boas e muito abençoadas por Nossa Senhora279. Saudades de um mundo paradisíaco Mais ou menos entre meus cinco e oito anos, minha irmã Rosée, uma prima que morava em casa, a Fraülein e eu íamos todos os dias a pé, da

278 Chá SRM 19/7/90 279 RN 11/4/72 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 129


nossa casa na rua Barão de Limeira até o jardim da Luz, primorosamente bem conservado por um jardineiro austríaco, Herr Etzel. Eu levava para o jardim da Luz a inocência de minha alma e tinha certos embevecimentos que não sei até que ponto os meus companheiros de infância tinham também. Chegávamos lá e começávamos a correr. E eu, dócil a todas as convenções, corria também, mas conscienciosamente, protocolarmente e execrantemente. Execrante sem mau humor. Eu me dizia: “Deve ser, é bom que seja, façamos assim também”. Não era nem um pouco um sacrifício, mas uma coisa cacete na qual havia delícias. Quais eram as delícias? Era ver canteiros enormes, com grama muito bonita e bem cultivada – coisa que se encontra pouco por aqui. Não era um gramado horizontal como o chão de uma sala, mas ondulado com habilidade, e cujo verde, à medida em que andávamos, ia mudando de tons. Em certas zonas daquele gramado não havia crianças correndo, e a vegetação “vegetava” e fazia sentir seus charmes, seus bons odores, seus bem-estares, oferecia uma acolhida afável, sorridente e que dava a entender à criança que eram possíveis outros jardins de uma outra ordem, numa outra esfera; jardins que não existiam, mas possíveis de existirem. Vinha-me então a ideia de que esses jardins tocavam um pouco em jardins etéreos, arquetípicos, concebidos pela inteligência e pela imaginação, muito mais do que os existentes na realidade. Daí nascia a consideração de que o píncaro da beleza, da ordem universal consistia em fazer-nos sentir outra ordem universal possível, igual a esta, entretanto mais bonita do que esta e para a qual nós deveríamos tender. Numa só palavra, era a saudade do Paraíso na alma inocente. A inocência traz consigo certa saudade do Paraíso e certa pergunta com agrado especial: “Como seria essa realidade, e até onde ela poderia ir?” Tudo isso eu pensava ao passar correndo por essas gramas e essas ondulações, e quase fingindo que estava brincando. Na verdade, a minha alma esvoaçava por essas paragens. E ouvindo um passarinho lá longe trinar piúúúú!, e o outro, noutra ponta, responder píúúúú!, era para mim uma espécie de som bonito, não cristalino, não metálico, som de laringe de passarinho cortando os ares, e como que dizendo: “Ouça, porque este som atravessa as distâncias e faz perceber a ordem que coordena tudo isto, e liga esse passarinho com aquele outro mais distante”.

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Mais do que tudo, para mim, eram os cisnes à beira do lago. O cisne saía de umas casinholas de porcelana e vinha majestoso, realizando um ideal para mim: mover-se sem fazer esforço. E então via o cisne leve, flutuando e gostando da água, mas sentindo-se superior a ela e olhando-a aristocraticamente de cima. De maneira tal que se tinha a impressão de que, naquela posição do pescoço – uma espécie de “S” sublime com aquela cabecinha na ponta – havia todas as delícias do aristocratismo. Um dos ápices das delícias do jardim da Luz eram aqueles cisnes. Quando eu voltava para casa, voltava com uma porção de impressões que diziam respeito à ordem universal vista sob certo ângulo. Era evidentemente a natureza, mas vista com os olhos do inocente e do batizado, e que me conduzia ao desejo de certa super-inocência, de certa super-pureza, de certa super-virtude que era o necessário para que tudo aquilo me atraísse em toda a medida. Claude Lorrain, famoso pintor francês que não pintava propriamente o sol, mas pintava a luz do sol batendo em cima de velhas paredes leprosas, tornando-as parecidas com pedras semipreciosas que pareciam dizer: “Ô Soleil! toi sans qui les choses ne seraient que ce qu’elles sont” – “Ó sol, sem o qual as coisas não seriam senão o que elas são”280. A fortiori se poderia saudar do mesmo modo a inocência, “sans laquelle les choses ne seraient que ce qu’elles sont!”. Tudo isso seria diferente se o mesmo jardim da Luz fosse visitado por um menino sem inocência. Ele teria vontade de matar os passarinhos, de sair correndo para pegar o cisne, de quebrar a casinha de porcelana desse cisne, de fazer batalhas com os outros meninos, porque “ele veria as coisas apenas como elas são”281. Amor à arquetipia Isso tudo, por um favor de Nossa Senhora que não mereci e que Ela me deu porque quis, as mais antigas recordações que tenho de mim desde a primeira infância já foi arquetipizando: certa coisa acho bonita, mas posso imaginar uma coisa mais bonita do que esta? Que expressão de alma teria? Que forma de virtude exprimiria e representaria? Que forma de santidade se veria manifestada ali? Essas cogitações abrangiam coisas as mais insignificantes, como por exemplo, nas minhas idas ao dentista, onde havia um muro em que estava

280 Edmond Rostand, Chantecler, 1910. 281 CSN 29/8/92 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 131


pintada uma vistazinha de Veneza, a mais comum que se possa imaginar. Enquanto ele mexia com aqueles ferrinhos, eu olhava para Veneza e pensava: – Até que ponto esse quadro pinta devidamente Veneza? Ela será menos bonita do que está aí, ou, pelo contrário, será muito mais bonita? Um dia conseguirei ir a Veneza? Chegada a hora do boticão, minha atenção deixava Veneza e passava para a batalha da extração do dente. Mas pouco depois já estava voltada de novo para Veneza. Assim, amando as coisas arquetípicas, sem eu perceber a Providência ia preparando minha alma para, por exemplo, detestar a Revolução Francesa. Lendo a história daquelas multidões de mulheres marchando rumo a Versailles para prender o Rei – umas megeras com lanças, mal vestidas, gritando, mais parecendo canibais vivos –; e vendo de um lado o contraste entre aquele lixo humano que avançava, ébrio de sangue e com a sanha de acabar com as belezas de Versailles, e de outro lado o Rei, a Rainha, distintos, finos; vinha-me a ideia da borra dos sentimentos humanos se levantando para criar o mundo no qual eu estava vivendo, que era o mundo sem elegância, sem afabilidade, sem distinção, sem beleza, reles em todos os sentidos da palavra. Toda aquela minha formação anterior, de amor às arquetipias, antes mesmo de qualquer cogitação de caráter político, eriçava a minha alma diante da perspectiva de uma Revolução Francesa282.

* Deste modo, em tudo o que me rodeava – alguns aspectos da São Paulinho, o ambiente externo de minha casa e de outras casas muito bonitas por que eu passava, certos pores-do-sol e outras coisas dessas – eu sentia a irradiação de um fulgor pelo qual aquelas coisas, aos meus olhos, eram como seda, que tem qualquer coisa de luminoso e um brilho próprio. Ao passo que aos olhos de muitos outros eram como pano, e aos olhos dos pecadores eram como estopa. Lembro-me, por exemplo, do meu quarto. Quando ali fazia sesta, deixava o vidro aberto e as venezianas fechadas. Naturalmente, eu via a luz entrar, via os desenhos do papel de parede, via a minha roupa de cama, os objetos do quarto. Nada era de grande luxo, mas para meu olhar era tudo faustoso, magnífico, brilhante, sem que essa consideração me desse um pingo de vaidade. Isto nem entrava em questão. Mas eu achava tudo aquilo uma coisa que não tinha palavras, soberba, estupenda. E notava que 282 Chá SRM 14/6/92 132

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meu ser inteiro tendia para isto, e que as harmonias internas do meu ser eram também assim. Com isto, eu me sentia voltado para toda espécie de virtude e para toda espécie de ordenação. Era o próprio caminho das coisas, mais ou menos como uma pessoa que sai de um quarto confinado e chega ao terraço e respira um ar bom. Assim era eu perante essas coisas. E esta era a mola-mestra dessa operação de espírito, porque era um conhecer amoroso e um amor cognoscente. Por algo que hoje sou levado a achar que era uma ação da graça, eu via todas as coisas numa linha de perfeição quiçá superior à própria natureza delas, e que não era senão um reflexo de uma perfeição eterna, absoluta. Aqui está o élan fundamental da arquetipização. Fundamentalmente sou isto283. Aspiração pelo mundo angélico e pelos horizontes da Fé Eu não saberia determinar exatamente quando comecei a pensar sobre o tema anjos. Lembro-me, isto sim, de que a certa altura, depois de ter ouvido falar de anjos, pensei o seguinte: “Certas impressões, certas sensações de harmonias que me vêm ao espírito, são tão, tão bonitas, que mais podem ser comparadas ao que estão me contando a respeito dos anjos, do que ao que vejo em torno de mim. E delineando-se assim, diante de mim, uma ordem do ser particularmente nobre, particularmente bela, como eu gostaria de me privar com os anjos, viver no meio deles! Certos aspectos de minha alma, não todos, se sentiriam bem entre eles”. Logo depois vinha-me uma dúvida: “Cuidado! Você não vê nenhum padre, nenhuma autoridade eclesiástica pensar assim a respeito dos anjos. E você deve em tudo seguir o ensinamento dos que representam a Igreja, mais do que seguir a sua própria cabeça. Tranque o assunto e não pense nele, senão você vai divagar. E ponha o assunto ‘anjos’ num meio silêncio, porque é assim que ele é tratado pelas pessoas seguras, dignas de respeito e que, sobretudo – qualidade das qualidades – representam a Santa Igreja Católica Apostólica Romana”. O fato é que este assunto ficava soando no meu espírito como uma espécie de melodia. E quando eu pensava nele, essa melodia tocava mais alto. Isto foi assim até que, homem já feito – não sei bem com que idade e nem a que altura dos acontecimentos –, dei-me conta de que havia muitos ensinamentos a respeito dos anjos em livros ultra-aprovados pelos mestres 283 CSN 8/4/87 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 133


daqueles a quem eu venerava, daqueles cuja dignidade venerava, mas que não divulgavam essas coisas porque não queriam284.

* Na minha primeira infância eu percebia com facilidade que as coisas bonitas, louváveis, virtuosas que eu via em torno de mim, correspondiam, em algum lugar do universo, a algo de outra natureza e de uma beleza muito maior, muito mais magnífica, e que era o píncaro do que eu entrevia naquele gênero. E então, olhando para aquilo, eu sentia uma como que sinfonia quase auditiva, composta de mil tons, de mil harmonias de cor – o universo das cores sempre representou muito para mim –, de mil harmonias de encantamentos que representavam, no fundo, estados de alma. Recordo-me, por exemplo, de um determinado azul pastel que havia em um papel de parede no meu quarto de dormir. Enquanto desenho, ele até representava pouco, mas eu fixava, eu prestava atenção nesse azul. E ficava com a ideia de que, alhures, havia alguma coisa de que esse azul pastel era uma mera analogia, e que essa coisa era inundada de harmonias sonoras e musicais, inundada de alegria, de felicidade, de uma santa inocência, de uma pureza, de uma retidão e de uma bondade completas. Julgava que, se não se conversava sobre isto, era porque não havia linguagem humana que tivesse palavras para expressar esta realidade, e que todo o mundo via assim e sabia que era assim. Percebia, portanto, uma coisa que, com o auxílio da doutrina católica, cinquenta anos depois eu iria explicitar que se tratava do mundo angélico, reflexo muito mais próximo de Deus do que somos nós mesmos. O mundo angélico reflete coisas dessas de Deus, e tem correlação com a terra. De maneira que, olhando-se certa coisa, pode-se ter um certo conhecimento do anjo “y” que representa aquilo, mas já em estado espiritual, e do qual a sensação cromática material dava uma imagem. De onde também a ideia de uma ordem nesta terra que espelhasse do modo mais exato possível essa síntese de maravilhas285.

* Em pequeno, eu ia muito a uma estação de águas termais, chamada Águas da Prata, perto de Poços de Caldas. 284 Chá SB 4/12/80 285 CSN 30/6/90 134

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Quase colada ao hotel onde eu me hospedava, havia uma montanha muito abrupta e que a mim, menino, parecia muito alta. E eu me sentia meio afrontado e meio esmagado por essa montanha, porque era por demais próxima. Em parte, por me sentir meio esmagado por ela e em parte porque eu a admirava muito, eu tinha vontade de me pôr em ordem com ela, galgando-a. Então, o galgar a montanha seria um modo de eu realizar a seguinte operação de espírito: “A montanha é sublime na sua altura; e conhecerei essa sublimidade e a incorporarei ao meu espírito quando eu chegar ao pico e, por assim dizer, for familiar com os ares e os horizontes que o pico vê”. Sabia que o pico não vê nada e não pensa, mas há uma coisa qualquer que funciona como se um anjo, um espírito, uma presença espiritual qualquer estivesse ali, de maneira que, subindo ali, eu me poria em conexão com essa presença espiritual, e poria dentro de minha alma uma coisa que só quem galgou esses píncaros pode pôr. O alto panorama produz um efeito psicológico sugestivo. Ele sugere altas presenças espirituais que vivem da sua felicidade interna, que não precisam nem construir nem viajar; elas têm o permanente gáudio próprio ao alto da montanha. Ficava-me então a ideia de que havia, assim, mil presenças espirituais muito maiores e muito mais inteligentes do que o homem, com as quais se podia entrar em contato. E que se dava uma comunicação, um convívio, um aumento da alma cada vez que ela se punha em altos panoramas ou em panoramas especiais: as curvas de um rio, uma queda d’água, o rumor e o prateado de uma cascata e outras coisas assim. Tudo isto me puxava para fora da vida normal e eram os horizontes da inocência. Em outras palavras, havia nisto sugestões para os temas da inocência, os quais levavam desde logo para algo que, explicado pela Teologia, conduzia ao celeste, conduzia ao angélico e suporia almas que nós sabemos que são os anjos. Sustento que, nessas coisas tão simples como as impressões de um menino inocente que passeia, se chega à consideração de um mundo arquetípico que reluz por detrás deste mundo, e que é o ponto último até onde nossa alma deve chegar. Quando, depois, eu via fotografias de castelos medievais com suas torres, eu experimentava a mesma sensação que a da montanha de Águas da Prata, entretanto com algo de mais vivo: é que almas humanas, que também tinham frequentado alturas, e que tinham gostado tanto das alturas onde coisas dessas se veem, que elas haviam até construído alturas parecidas com 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 135


essas. E, vendo as fotografias, eu me sentia convidado para uma sociedade humana toda voltada para o mundo angélico. Ficava então encantado com as torres, imaginando, no mais alto dessas torres, um quarto onde eu pudesse morar, e num castelo cheio de gente. Morar na proeza de uma montanha – porque a montanha é uma proeza para o homem – e nos ventos cheios de proeza de uma montanha, e com aqueles homens e aquelas gentes, já era colocar o meu feeling de menino inocente num termo intermediário, que era o castelo e uma sociedade humana, ou seja, a Idade Média, o Reino de Maria, em que os homens teriam a alma voltada para tudo isto, e em que eu me sentiria completado com os meus coirmãos assim. Mas vinha-me uma questão: “Vejo bem que, das pessoas que me cercam, ninguém gostaria de morar numa torre dessas de que eu gostaria. O fato é que houve um tempo em que os homens fizeram torres e nelas moraram, e construíram casas no alto das montanhas. Houve tempo em que as almas eram assim e depois deixaram de ser assim. Eu então andarei pela terra à cata de almas assim. Porque viver para mim é só encontrar essas almas. E se a vida não me der o encontro dessas almas, ela não me deu nada, e eu a deixo como quem deixa um pesadelo, e vou para o Céu onde as almas são assim”. Depois veio-me a ideia de encontrar almas que tivessem cacos do que foi assim, para ajudá-las e fazer, desses cacos, sementes, para restaurar aquele mundo. Note-se a transição que houve em tudo isto. E como a hipotética ascensão de uma montanha de Águas da Prata poderia conduzir-me inteiramente à Contra-Revolução. E mil outras coisas da infância exprimiram isto. Creio que o próprio Casimiro de Abreu, quando dizia: “Oh! que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais!”286, tinha nostalgia disso. Quando se estabeleceu na Igreja o hábito de representar os anjos como crianças, julgo que foi pela ideia de que os homens adultos já não tinham mais isto. E o recurso para exprimir algo dessa realidade foi utilizar a criança287. Essas “presenças invisíveis” que eu julgava encontrar no alto da montanha são no fundo impressões não gratuitas, criadas pelo senso do ser – a retidão originária do senso do ser conduz a isso –, e dão uma pri-

286 Estes são versos do poema “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu, poeta brasileiro do século XIX (1839-1860). 287 MNF 6/7/78 136

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meira degustação da transesfera288, bem como daquilo que vai mais além da transesfera289.

* Quando pequeno, ainda existia o costume, depois arbitrariamente eliminado pela moda, de decorar a parede da sala de jantar com pratos que não eram pratos de comer, mas verdadeiras obras de arte pintadas sobre porcelana. Aqueles pratos faziam parte dos elementos de decoração da sala. E isto distraía a vista, enquanto se comia e se conversava. Lembro-me especialmente de três pratos. Num deles, toda a borda era de um azul muito escuro e pintada com umas coisinhas douradas. E depois, no que corresponde propriamente à parte horizontal do prato, havia uma cena mitológica clássica: um campo idílico, com seres mitológicos, homens e mulheres, andando e se dando as mãos uns aos outros na orla de um bosque. No meio, guirlandas de flores, e com um crepúsculo ou uma aurora, não me lembro bem, que se formava no céu. Olhava para aquelas figuras mitológicas e imaginava como seria um campo se fosse daquele jeito. E não tinha muita certeza de que, de vez em quando, a realidade não era assim mesmo. Parecia-me que na Europa deveria ser assim, sobretudo na Alemanha e na França, que eram, na minha concepção, os dois polos do mundo e onde, portanto, as maravilhas deveriam existir. Olhava aquilo, olhava, olhava. Depois via as pessoas da família sentadas à mesa e pensava: “Como são diferentes daquela gente pintada lá! Aquele pessoal do prato independe das contingências, não precisa estar sentado ao redor de uma mesa, não precisa de cama: eles são inteiramente superiores. Eles andam jardas in288 Sobre o conceito de “transesfera”, assim o explica o próprio Dr. Plinio: “A idéia de transesfera pode ser objeto de uma análise do ponto de vista filosófico e teológico. O que é essa esfera? Não é uma esfera nova da realidade. Mas algo que o espírito humano concebe como um produto do espírito. É uma imagem que o espírito humano cria para si, de uma ordem irreal, hipotética, não existente, formando-se às vezes de modo muito efêmero, por certos aspectos da natureza, por atitudes de indivíduos, etc., que não constitui, portanto, uma ordem real. São aspectos fugazes, são lampejos que as coisas tomam e com os quais o homem constitui um modo habitual de ver todos os seres como se estivessem numa transesfera. Ele sabe que essa transesfera, como ele a vê, de fato não existe. Mas sabe que, quando os homens todos caminham muito rumo a Deus, todas as coisas da realidade tomam estavelmente aspectos suscetíveis de ser sublimados, de modo a constituir uma visão transcendente da realidade, uma trans-esfera” (MNF 2/6/77). 289 MNF 7/7/78 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 137


finitas sem se cansarem. É uma coisa formidável isso! Mas houve ou não houve? Será que esta minha gente, em vez de estar falando às torrentes de coisas inúteis, se fossem como aquela gente do prato não seriam mais assim? Vou me pôr a imaginar um mundo que fosse desse modo”. E assim eu era levado a imaginar um mundo ideal, que era em última análise a idealização de uma porção de coisas que eu conhecia, e inclusive a idealização de pessoas e de situações que eu conhecia, projetadas mais adiante. Daí, lendo historietas de criança e depois histórias do passado, comecei a fazer a idealização do passado, e a formar na mente toda uma ordem de coisas perfeita, imaginária, mas meio admitida como real ou realizável; idealização esta que aos poucos foi sendo modelada pela Fé: “Isto tudo não está direito, está por demais sensível, por demais material. Olhe o Céu, olhe as virtudes, olhe a bondade, olhe a igreja do Coração de Jesus. Olhe tal pessoa que tem fé e que você conhece; olhe tal imagem de santo como era”. E aí sim, com base na Fé, veio a formação de um mundo religioso ideal, para o qual minha alma voava inteira, e que era, no fundo, um mundo inteiramente contra-revolucionário, um mundo imensamente colocado em ordem católica. Quer dizer, o que me salvou de elucubrações vazias e me pôs no bom caminho foi a Fé, que me tirou desse riacho perigoso, orientou-me e deume o equilíbrio necessário para essa idealização. Porque, neste caminho, poderia facilmente não sair uma coisa equilibrada. Nossa Senhora me favoreceu muito, pois tinha desde aquele tempo fé católica absoluta: o que a Igreja dissesse era aquilo mesmo, porque estava evidente que era. É Ela que tem razão, eu não. E eu devo me acomodar a Ela. Daí nasceu o ideal da Contra-Revolução, em choque direto, como já descrevi mil vezes, com as maneiras hollywoodianas que já invadiam torrencialmente a São Paulinho daquele tempo, e que constituíam a ponta da Revolução. Maneiras hollywoodianas que tinham dois acentos: o acento da corrupção e o acento da vulgaridade; acentos estes meios-irmãos da civilização mecânica e industrial, que já era então a borda da cidade de São Paulo290. Atrativo pela boa ordenação da sociedade temporal e pela cultura Posso dizer que uma das características de minha formação de espírito foi Nossa Senhora me ajudar desde muito cedo a perceber, com a facilidade 290 CM 19/1/86 138

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própria a um menino, o reflexo de Deus nas coisas temporais, e não apenas nas coisas espirituais. Via as coisas espirituais e deleitava-me. Mas não tinha a tendência de passar a vida inteira dentro de uma igreja. Teria ficado muito contente, me teria honrado se isso me acontecesse. Mas não foi o que se passou. Eu não era de ir muito à igreja. Mas quando ia, deitava muito as “antenas” para o eclesiástico e o sobrenatural que ali havia, e com enorme complacência de minha alma, com enorme atração de minha alma, não tem dúvida. Mas, ao mesmo tempo, nas coisas temporais, da sociedade material, eu também gostava enormemente de ver quando elas eram corretas, bem ordenadas. E parecia-me ver ali uma superioridade e um atrativo para minha alma, que depois, mais tarde, com o estudo e a reflexão, eu compreendi que era uma semelhança de Deus.

* Tenho, por feitio de alma e por uma posição contra-revolucionária, uma propensão muito maior a ver o lado espiritual dos objetos produzidos pela cultura humana do que os objetos da natureza. Por exemplo, se eu estivesse diante de uma lamparina posta aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, e de um jarro que se filiasse a certos padrões fundamentados na arte, eu seria muito mais levado a olhar para o vaso do que para a lamparina, porque o vaso exprime mais de perto a alma humana, e da alma humana mais de perto eu chego até Deus. Nisto há também uma reação contra certo naturismo da cultura do século XIX, que fazia entender que as coisas todas inventadas pelo homem não tinham valor, e que a única coisa que tinha valor era a natureza. Reconheço de bom grado e com entusiasmo que a natureza tem coisas maravilhosas. Reconheço até que, em muitos aspectos, ela excede a capacidade criativa do homem e inspira essa capacidade. Mas não deixa de ser verdade que, nesta terra de exílio, tomada a palavra natureza como o bloco todo das coisas que nos rodeiam, há muita coisa de bonito e admirável, mas também muita coisa que não o é. Por exemplo, mosquitinhos são altamente reprováveis: eles me contrariam, eu estou em guerra contra eles e os sinto audaciosa e espuriamente beligerantes contra mim. Assim, um bonito relicário que eu visse num museu me falaria muito mais do que todo um canteiro plantado com as mais ricas flores.

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Talvez um botanista não sinta isto como eu, e acho uma coisa perfeitamente admissível, mas eu não sou assim. Estou apenas dando uma explicação de como sou, e não dizendo que se deve ser como eu291.

* Eu me encanto mais com um vidro de água de Colônia do que com uma flor, porque isso é uma flor espiritual da civilização cristã292. Então, a forma de uma cadeira, a forma de um lustre pode me lembrar alguma coisa que, em última análise, lembra outra, outra, outra, e acaba tocando em Deus. É óbvio que se deve procurar a Deus essencial e fundamentalmente através da vida religiosa, entendida como vida de piedade, Fé, observância dos Mandamentos. Mas não podemos limitar a procura a Deus só a isto, tal como faz a heresia branca, que pratica uma espécie de laicismo e acantona Deus dentro da capela, pondo Deus no centro, é verdade, mas falando pouco das outras coisas que estão em torno de Deus. A nossa tese é de que é preciso saber contemplar as coisas temporais, de maneira tal que elas nos falem também de Deus. Não é exclusivamente, nem eu afirmo de modo absoluto que seja principalmente isso; mas para a nossa vocação é principal afirmar isto que estou dizendo, que está na linha da complementaridade293.

* Visitando um museu em Veneza, encontrei de repente, numa vitrine, um cálice de Missa feito de uma só ágata lavrada, transparente e luzidia. Nunca tinha visto uma pedra transformada em cálice, uma linda pedra com o jogo de luz da hora, do momento. Aquilo me tocou profundamente, por ser um cálice de Missa, é certo, mas também por causa da pedra: “Oh! pedra. Oh! Deus”. Os senhores estão vendo nisto um feitio de espírito pelo qual a pessoa presta muita atenção no concreto, no palpável e no material que tem diante de si. Mas é uma atenção analítica, que importa em uma análise dupla: da coisa em si e em mim, do cálice de ágata e do efeito que o cálice de ágata produziu em mim. 291 Chá PS 1/12/81 292 EVP 23/9/84 293 CSN 6/5/81 140

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O cálice de ágata é muito bonito e dá glória a Deus. Uma das glórias que ele dá é de ter produzido numa criatura humana superior a ele a impressão que ele produziu. E o homem que se deleita com a ágata dá mais glória a Deus do que a própria ágata da qual ele recebeu o efeito. Olhar para mim, e ver-me enquanto consonante com a ágata, e num movimento reto da minha alma consonando com aquela ágata. E dizer: “Deus, quando contemplou essa ágata depois de criá-la, teve também consonância. Dois seres consonantes com um terceiro são consonantes entre si. Deus foi consonante com esta ágata; eu sou consonante com essa ágata; nesse momento, eu sou um pouco consonante com Deus”. E aí se estabelece uma vinculação que me faz ter encanto com a ágata294. As canduras de uma alma inocente Um dado a se fazer notar era o jogo das precocidades e dos retardamentos, jogo esse especial dentro de minha alma, e que não era precisamente o jogo que se notava nos meninos do meu tempo. Eu era, por certo ângulo, mais cândido e mais inocente do que eram eles, no sentido próprio da palavra, o que me levava a não perceber na vida concreta e no mundo concreto uma porção de coisas que eles percebiam. Não estou aludindo aqui a assunto sexual; estou me referindo à época em que eu era tão menino que o assunto nem se punha. Por exemplo, no caso do Guignol de Paris295, as minhas intervenções eram feitas sem eu ter a menor ideia de que aquilo estava repercutindo no público. E quando eu notava a repercussão, eu também não tinha a menor ideia de que essa repercussão fazia de mim um menino diferente dos outros. Eu me julgava uma criança qualquer, e assim como eu estava falando com aquele homem do Guignol, eu falaria com meninos que estivessem brincando comigo. Eu notava que eles riam, mas eu não notava que havia um subentendido naquilo. Outra coisa: não tinha ideia muito clara da separação entre o palco e o público. O público tomava parte no drama do palco e eram torcedores, mas quase marionetes eles mesmos dentro do palco. Não vinha ao meu espírito 294 SD 9/6/79 295 MNF 17/11/94 – Dr. Plinio se refere aqui às suas idas, na sua viagem à Europa quando criança, ao teatro de marionetes do Bois de Boulogne, chamado Guignol. Na inocência de seus 4 anos, ele atribuía certa realidade à cena que estava se passando no palco. E quando não estava de acordo com a evolução da peça, ele intervinha, sempre num sentido contra-revolucionário. 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 141


que, o que se passava no palco era uma coisa artificial para ser vista pelo público. Não é que eu não percebesse nada disso, percebia vagamente, mas achava que não era o caso de prestar atenção nisso. Julgava que havia qualquer coisa em mim que, por uma espécie de honestidade para comigo mesmo, me obrigava a dizer o que eu pensava, de maneira que eu não tinha direito de me calar. Ainda que quisesse me calar, não tinha o direito, e não tinha vontade de me calar. Fui desde pequeno muito expansivo, meu gosto era falar. Eu tinha certa ideia de que a boa educação mandava me calar, mas achava que eu estava liberto dessa regra por causa do jorro que havia em mim para falar, e não tinha nem um pouco a ideia de que assim eu violava uma regra de educação. Julgava que era uma regra de educação para o geral das pessoas, mas que para mim não era. Note-se aí um não ver a realidade a não ser muito superficialmente em alguns pontos, e vê-la muito profundamente em outros pontos. Por exemplo, ver que o padre estava sendo atacado, que devemos estar sempre do lado do padre, que é preciso dar argumentos, não para o público, mas para a outra marionete. A marionete na minha cabeça era um personagem meio vivo, e eu argumentava com a marionete. Tinha certa sensação de que havia um homem movendo a marionete e que era o responsável, mas que eu confundia mais ou menos com a própria marionete. Nisto tudo havia canduras de toda ordem e de todo tamanho. Ao lado dessas canduras, alguns conceitos gerando atitudes muitíssimo profundas.

* Quando visitamos Versailles, a minha primeira reação foi de deslumbramento. O fato de querer agarrar na roda da carruagem e não querer sair era, no fundo, o querer agarrar aquele mundo. Aí já vemos também a candura porque, ao querer me agarrar à carruagem, eu devia perceber que não era possível permanecer ali, que era uma bobagem. Absolutamente não: aquilo estava lá e para qualquer efeito, ainda que seja desvincular-me da autoridade paterna – não da materna; se mamãe interviesse tudo mudava –, pouco me incomodava.

* 142

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Um outro aspecto dessa candura era o raciocinar. No que é que entrava essa candura no raciocínio? Era na ideia de que, se o raciocínio apresenta a verdade inteiramente como ela é, dota-me a mim, que sou uma pessoa como as outras, do dom de meter um “gancho” no sujeito que esteja querendo andar errado comigo, e por este raciocínio obriga-o a concordar comigo e andar direito. De onde um grande gosto em começar a raciocinar e a munir-me de uma espécie de tanque de raciocínios, todos infantis, que devia desembocar na seguinte ideia: “Faço o meu caminho varrendo com esguichos de raciocínios as pessoas que se opuserem ao que penso. A verdade está comigo porque faço o raciocínio certo e sei que é certo. Tenho muita clareza na cabeça para isto. Já sei, nessa idade, raciocinar bem; imagine quando eu ficar homem. Vamos começar o esguicho”. A candura aí estava na ideia de que no homem não havia tanta maldade, e que o raciocínio era para ele irrecusável. É uma candura, porque o homem colocado diante do raciocínio certo, muitíssimas vezes não se comove. O fato é que em tudo isto entrava muita candura, muita lógica também; e eu apresentei a conexão entre a lógica e a candura dentro disso. Essa continuidade de lógica e candura, ou ao menos laivos delas, se prolongou até não sei onde.

* Também em relação a objeções contra a Igreja que eu ouvia, eu tinha a candura da Fé, seguida da lógica: “No Evangelho está assim, na Escritura está assim, logo isto que dizem não deve ser assim. E como a Igreja é como deve ser, Ela deve ser assim; logo, Ela é assim. Não posso acreditar no fugidio das coisas que se me apresentam. A verdade é que Ela é assim e – aqui está a candura – todos os padres são bons”. Com essa candura e essa lógica evidentemente quadrada, entrava uma preparação para o contrário. A minha lógica era quadrada no sentido de admitir premissas muito pobres. Um menino melhor talvez não precisasse dessa quadratura para salvar sua própria fé. Isso é para verem como várias dessas canduras foram paredões contra o mal. Santa Teresinha tinha muita coisa assim na “História de uma Alma”. Com a irmã dela, a Agnès de Jesus, vemos que ela, por alguns lados, a achava maravilhosa, mas que por outros lados ela compreendia defeitos

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sérios da irmã. Mas a candura dela era completada por muito mais perspicácia do que a minha296. A FONTE INTERNA DA INOCÊNCIA: O “SENSO DO SER” E SEUS CORRELATOS O “senso do ser” Desde a tenra infância procuro observar o mundo externo segundo determinados padrões fundamentais. E sinto-me até hoje fazendo um serviço de “apalpação”. Essa “apalpação” é o confronto da coisa vista por qualquer dos sentidos, enquanto conferindo ou não com certos padrões fundamentais que constituem de fato um universo, no sentido de que é um conjunto de pressupostos que nos permite medir o conjunto de todas as coisas. Isto constitui uma como que miniatura do universo existente dentro de mim, que eu vou conferindo com o universo que existe fora de mim. O padrão interno segundo o qual julgo as coisas inclui não só uma noção do conjunto dessas coisas, mas a perfeição de cada uma das partes constitutivas desse conjunto. Se olho, por exemplo, para uma estante de livros, posso dizer que é um bonito conjunto de encadernações. Mas, porque eu vi as encadernações no seu conjunto e achei-as bonitas, eu, ao mesmo tempo e com o mesmo olhar, vi cada encadernação ali colocada. E lancei, portanto, um juízo sobre cada livro quando disse que o conjunto era bonito. Assim também essa espécie de padrão interior: ao mesmo tempo em que ele abrange uma noção exata do que é a totalidade, abrange também uma noção exata da perfeição própria de cada elemento constitutivo dessa totalidade. Eu chamo isto de senso do ser297.

* O que é o senso do ser? Anteriormente a qualquer reflexão, existe inata no homem – portanto existia em mim – a noção do ser, a noção de que “algo é”. Na confrontação do senso do ser com a realidade vão se formando as premissas, e vai-se 296 MNF 17/11/94 297 EVP 16/4/78 144

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jogando o pensamento por dedução ou por indução, e então por via lógica se constrói o castelo do pensamento. Agora, como se apresentou a mim esta primeira cognição do ser, considerada não filosoficamente, ou seja, perguntando-me especulativamente o que ela é, mas psicologicamente? O senso do ser, quando é tocado por alguma coisa de muito bela e de muito boa, conduz a uma análise mais ou menos instintiva do que aquilo tem de mais belo e de melhor em si. E reporta o espírito a fantasiar aquela realidade num grau de beleza ou de bondade superior ao que ela de fato tem. Na hora de fantasiar, imagina de fato uma ordem do ser soprada pelo princípio axiológico298, o qual tem qualquer coisa de celeste. Lembro-me, por exemplo, da casa de um fazendeiro rico que eu frequentava na avenida Brigadeiro Luís Antônio, naquele tempo uma rua muito residencial nas proximidades da avenida Paulista. Nesta casa haviam pintado cenas mitológicas no teto de um corredor bem largo, ao menos para os meus olhos de criança, e que era meio hall e meio living, o qual percorria a casa de ponta a ponta. A pintura, em vez de representar a barafunda de deuses e deusas em estado de bagunça renascentista, representava, pelo contrário, personagens ordenados. Em um céu muito azul viam-se duas deusas muito bem vestidas, uma das quais tinha na mão um novelo de fio de tecer. A intenção do pintor era representar duas pessoas excelsas postas em um terraço que eu imaginava mítico e revestido de mármores muito superiores aos mármores da galeria do meu fazendeiro, e conversando de igual a igual entre elas, num misto de alteridade e de unidade que eu concebia como extraordinário. Eu imaginava que as duas eram primas, e que uma se dirigia para a outra numa alta conversa sobre altos temas, mas cabendo também temas familiares, com assuntos corriqueiros como, por exemplo, aquele fio enovelado, ou qualquer outra coisa assim. E eu ficava pensando: “Por que essa gente que me cerca não olha para isto e não compreende que é assim que se deve ser? Deveriam conversar assim, seria muito mais agradável. Mas olhe como se tratam: gargalhadas, brincadeiradas, chamando todos de ‘você’. Não seria muito melhor que pusessem tudo isto em ordem e fizessem uma coisa à maneira desta cena? Como seria diferente a vida dessa gente!” Além do diálogo entre esses personagens, eu imaginava também os jardins, as casas, a atmosfera e o estilo em que viviam. E concebia isso à maneira de uma harmonia traduzível numa música delicadíssima, altíssima, 298 Sobre o conceito de “axiologia”, ver nota 134 da página 73. 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 145


num som super-prateado, mas que se requintaria a si mesma de maneira a produzir alguns acordes que mais se pegaria com a cabeça do que com os ouvidos. O que me ficava na mente era uma harmonia que, por ser muito homogênea, não aceitaria nada de estranho a si. E, a ser perturbada, daria numa explosão de que não se faz ideia. Essa harmonia, portanto, enquanto não fosse violada, seria um céu. Se a tentassem violar, ela entraria na defesa de si mesma, e se desataria nas tempestades mais furiosas e vingativas, até conseguir restabelecer-se a si própria. Em face da desordem, essa construção mental é de uma intransigência de ferro, por não admitir dentro dela nem um grão de areia dissonante. Porque, ou isto é feito de uma consonância total e absoluta, ou é o inferno. Essa construção não admite dissonância. A dissonância que agride tem que ser liquidada a paulada. Essa ordem mitológica, por uma questão de respeito, eu não relacionava com os anjos, porque não via os padres relacionarem. Só mais tarde percebi que era passível de um descortínio intelectivo para a ordem angélica. De fato, isto é o Céu, ou seja, uma ordem de ser muito superior à nossa, e que o senso do ser, em contato com seres de uma ordem inferior a esta, pede ardentemente que se descortine. Neste raciocinar podia entrar um auxílio da graça, mas não era uma revelação. Era o princípio axiológico que, estimulado pelo senso do ser, descortinava uma ordem de ser superior. O senso do ser fazia-me perceber não apenas as excelências do ser, mas também os defeitos, e como os defeitos deviam ser corrigidos. Era uma primeira fuga do defectivo para o paradisíaco; mas, no paradisíaco, pelo conhecimento da contingência, e uma fuga para o conhecimento de Deus. É uma aplicação, de uma maneira intuitiva, da Quarta Via de São Tomás de Aquino. Isso tudo comportava também um descortínio do Reino de Maria, pela ideia de que algo daquilo seria copiável, mas não o era por estar sendo feito o contrário pela Revolução. Era preciso alguém pôr tudo em ordem. Assim, olhando os personagens que estavam pintados no corredor daquela casa, eu formava a ideia, também nascida do senso do ser, de que a atitude das pessoas que me cercavam era desordenada, e que poder-se-ia exigir que imitassem muito melhor aquela cena semimitológica do teto. Elucubrações do mesmo gênero eu tinha muitas, como por exemplo sobre um vasinho cor-de-rosa de porcelana que ainda está no salão de minha residência. Muito antes de eu nascer, aquele vaso já estava na casa de Dona Gabriela, minha avó, em uma sala para visitas mais íntimas. 146

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Eu entrava nessa sala numa hora em que não havia ninguém, olhava para o vaso e dizia: “Como seria bom que houvesse, em algum lugar do universo, um espaço todo feito dessa matéria e no qual se pudesse entrar. Teria o deleite que meus olhos têm olhando para este jarro, e em que o meu gosto seria apenas tatear e deixar-se penetrar por isso. Deve haver odores, sabores, sensações tácteis, sons, que coincidem com isto. Se bem que não vale a pena passar uma eternidade inteira dentro disso, pelo menos valeria a pena ficar muito tempo nisso, até o momento adequado de mudar para outro ambiente”. Entrava aí a ideia de que a ordem perfeita das coisas levaria a conjecturar que houvesse algo assim, e a ter certa desconfiança vaga de que algo assim havia. É uma consideração de uma criança de 5, 7, 8 anos. Não tenho memória de quando isto se deu, mas foi longe: até os meus 14 anos eu fazia reflexões dessas. Depois tranquei-me em nome da maturidade, mas continuei a fazer isto de soslaio. No fundo, é uma ideia eminentemente vitorina299do Céu. Era a ideia de que, passando sucessivamente por paraísos imaginários com várias tônicas diferentes, eu acabaria dando uma volta no assunto, e meu ser inteiro se sentiria saciado, porque chegaria a uma síntese eterna, definitiva300. A vontade de explicitar Uma das coisas que sempre tive vontade de ver é uma nascente de rio. Sobretudo gostaria de conhecer a nascente do Danúbio. Disseram-me que a nascente do Danúbio fica no parque do palácio do príncipe de Fürstenberg. A fonte sai do chão e é encaminhada para um reservatório todo ele forrado de mármore, e com torneiras monumentais de onde sai o Danúbio. Isso é muito bonito. E ele fez uma bonita obra de arte. No meu tempo de pequeno e de mocinho, eu ia de trem para Santos. Naquela descida do trem, viam-se aqueles montes de pedras altíssimas, e fontes de água que escorriam em vários lugares. Eram filões e filões, às vezes de uma mesma altura e às vezes de diferentes alturas. 299 O vitorinismo foi uma escola filosófica fundada em 1108 por Guilherme de Champeaux e que floresceu na Abadia de São Vitor, em Paris. Seus maiores expoentes foram Hugo de São Victor e Ricardo de São Victor. Aquilo em que, por assim dizer, se especializa esta escola é o simbolismo e o pulchrum. 300 MNF 17/10/78 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 147


Ficava encantado de ver aquela água correr ao longo da pedra. Mas tinha mais vontade de ver a boca da pedra de onde saía aquela água, e desvendar aquele mistério da água límpida que saía de uma profundidade escura de uma pedra. Analogamente, esta é a beleza de alma própria da operação de explicitar, explicitação que vem depois de um longo trabalho de apalpação interior de suas próprias impressões. Esse processo de explicitação verifica-se em duas fases. Primeiramente, definindo para si o que é que se inteligiu. Em segundo lugar, encontrando a palavra que exprime perfeitamente o que inteligiu. O sentir isto sair do pensamento tem a glória de um nascimento do sol: é uma verdadeira beleza! Tomo aqui a palavra de Jó, apenas invertendo o sentido do que ele disse: “Bendito o momento em que a minha mãe exclamou: nasceu um homem”. Assim, é bendito o momento em que minha alma disse: nasceu um pensamento. O senso metafísico Eu tinha um tio-avô que era totalmente ateu. Velho, solteiro a vida inteira, não tinha residência fixa e ia à casa da minha avó, sua irmã, e ficava a tarde inteira fumando cigarro de palha, e se sacudindo numa cadeira de balanço horas e horas. Assim ele ficava ao alcance das perguntas dos sobrinhos-netos que passavam. E como era essa a distração dele, ele respondia de muito bom grado. Uma vez eu pus uma pergunta para ele: “Tio Augusto, eu queria que o senhor me explicasse tal coisa assim, assim, assado”. Ele disse: “Mas essa sua pergunta revela um espírito metafísico, um espírito metafísico que não se deve ter”. Pensei: “Veja o modo como ele pronuncia a palavra metafísico. Dá ideia de uma coisa altíssima, mas na qual não se deve tocar. A própria palavra metafísico é uma música, é uma bonita palavra. Ela musica uma coisa que é estupenda, extraordinária, maravilhosa. Eu serei mesmo um espírito metafísico! E quando eu ficar homem, vou aprender o que é metafísica e o que é um espírito metafísico, para ser metafísico a vida inteira”. Eu era então uma criança de quatro ou cinco anos, mas a graça orientava nesse sentido uma coisa que seria provavelmente um dote natural301. 301 MNF 11/7/91 148

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* A medicina daquele tempo tinha qualquer coisa do nutricionismo de hoje, dava muita importância ao que se come e ao que se bebe como fator de manutenção da saúde. E havia na rua Sebastião Pereira, quase esquina da alameda Glete, um senhor – aliás monarquista e pai do futuro Ministro Marcondes Filho – que possuía, no fundo da casa dele, uma horta e uma criação de cabras. Todas as manhãs essas cabras saíam cedo com seus guizozinhos, e sujeitadas, creio eu, por uma espécie de jugo de madeira em volta do pescoço. E elas vinham com aqueles sininhos tocando. No percurso, havia casas que constituíam freguesia fixa do leite de cabra para as crianças, o qual era tido como ultra saudável e deveria ser tomado com conhaque francês ou com vinho do Porto, conforme a criança gostasse. Todos os dias nós tomávamos e eu gostava muito. Mas eu, antes de as cabras chegarem em casa e ainda meio dormindo, ouvia de longe o ruído dos sininhos batendo numa porção de distâncias diferentes, conforme o trajeto, que devia ser em ziguezague, que o homem executava distribuindo esse leite. Os sininhos às vezes chegavam então mais perto, depois afastavam-se para mais longe. E eu reconhecia naturalmente que era o meu leite de cabra que vinha chegando. Eu gostava de ouvir aquele aproximar-se e distanciar-se, como quem diz: “A gostosura está vindo... Não, ela está indo, mas ela acaba voltando, e acaba chegando aqui”. Mas, no meio dessas observações, uma consideração ia se delineando: “As coisas agradáveis da vida são assim. Elas se aproximam, se distanciam, fazem ziguezagues, mas deixam sempre um sinal de que elas chegarão. E isto é uma regra de vida meio metafísica, a qual se expressa nessas idas e vindas do leite de cabra, tal como se expressa também nas idas e vindas dos negócios, nas idas e vindas das amizades, nas idas e vindas das estações de água ou das estações balneárias, nas idas e vindas do que se queria ou não se queria. Tudo seguia essa irregularidade simpática e amável”. E eu ficava então meio dormindo e meio procurando interpretar a marcha do leite de cabra. Quando o leite de cabra chegava, eu o tomava com redobrado interesse, julgando que era uma gostosura da vida que me chegava. E bebia esse leite com goles ávidos próprios à minha truculência. 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 149


A criada dizia: “Seu Plinio, o guardanapo também veio”. Eu entendia que era para enxugar a boca e pensava: “Essa mulher!” Enxugava e dizia: “Está lá”. Ela ia embora satisfeita e eu mais satisfeito ainda. E afundava na roupa de cama por mais meia hora ou coisa assim302.

* Havia outras coisas assim que me levavam a considerações dessas. Eu toda a vida tive sono muito bom e acordava normalmente às sete e meia, oito horas da manhã. Mas vez ou outra me acontecia de acordar de madrugada. E então começava a ouvir os barulhos da rua303. Era, por exemplo, o ruído dos bondes que passavam304. Vinha-me então a ideia de motorneiros atravessando a noite, dirigindo bondes inutilmente vazios, cuja parte da frente era uma abertura sem janela, sem nada: era a ventania fria, a neblina seca e prateada de São Paulo daquele tempo reluzindo no meio de lâmpadas a gás, mas que dentro da neblina pareciam sóis de prata. Imaginava-os depois se recolhendo exaustos, àquela hora, para ir dormir na casa deles. E imaginava ainda como seria a chegada deles em casa, jogando-se na cama e mal podendo se movimentar devido ao cansaço, e daí a 15 ou 20 minutos, começar a gozar a cama simples deles, achando que era uma beleza. Isso tudo me encaminhava para a formulação de um princípio geral: “Esses motorneiros têm uma vitalidade e uma disposição para conduzir o bonde do outro mundo! Vejo na neblina um homem exausto, mas chamejante, vivo e com a vitalidade dele servindo de cobertor interno. Ele vence o frio de tão vivo que ele é, e não tanto por causa do agasalho que ele traz. E com aquela bigodeira – porque quase todos usavam bigodes – úmida de neblina, mas sentindo uma espécie de vitória sobre a neblina que ele atravessa heroicamente”. E quando ele entregava o bonde e ia para casa dormir, eu julgava que ele tinha certa sensação de um batalhador que venceu a garoa, venceu a noite, venceu a solidão. Vinha-me então a ideia de que a vida nas classes mais humildes, vivida com jeito, apresentava uma deliciosa compensação que não havia em nossa classe. Em nossa classe, as coisas amoleciam um tanto. E que, no fato de ser popular e não ter tido muita educação, nem ser muito lixado, 302 CSN 2/7/94 303 Palavrinha 12/8/91 304 CSN 2/7/94 e Chá 25/1/95 150

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havia uma espécie de liberdade e de movimentação que proporcionava, sob certo aspecto, mais gozo da vida do que as maneiras civilizadas. Era até perigoso esse pensamento, porque podia levar para consequências meio barbarizantes.

* Acentuava essas impressões o fato de que, mais ou menos depois de os bondes terem se recolhido, fazia-se na alameda Glete um silêncio. De repente, no meio desse silêncio, eu ouvia de longe um barulho: pun-pun, pun-pun, pun-pun! Era um aleijado que vinha mancando com a sua perna de pau, mas com tanta decisão, com tanta regularidade e relativamente com tanta pressa, que me parecia um compasso: pun-pun, pun-pun! E, naquele sono gostosamente posto entre travesseiros de marcela, erva brasileira muito perfumada, eu ouvia, passando perto de mim, aquelas pancadas no chão dentro da madrugada, dentro da incerteza, sem nenhum desfalecimento, sem parar para respirar: pun-pun, pun-pun! Essa decisão em andar, em bater a perna, e essa regularidade que parecia um compasso, exprimia com energia a vontade de um homem infortunado – infortunado por causa da amputação e por ser pobre e obrigado a trabalhar àquela hora da madrugada. Fazer serviço a pé naquelas condições deveria ser uma coisa difícil, mas ele a vencia galhardamente305. Nesse andar com resolução, com método, com energia, parecia-me sentir nele a cadência operosa de toda a São Paulinho que se preparava para acordar e para o dia inteiro produzir naquele ritmo. O perna-de-pau parecia ritmar isto306.

* Todas essas reflexões eram, a seu modo, um misto de realidade concreta e de “paradização”. E, naquelas coisas concretas que eu via, procurava regras universais que elevavam a natureza do assunto a pontos muito mais altos, como por exemplo ao pensar no meu aleijado, no motorneiro. Mas, notem bem, regras universais tiradas da observação da última plebe. Era o gosto e o interesse que eu encontrava na última plebe, e a possibilidade de ser feliz enquanto plebeu. De onde exatamente a incom-

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preensão que eu tinha daquela gente da Revolução Francesa sentir-se tão indignada com as classes superiores307.

* Paralelamente, eu vi os ritmos da civilização industrial entrarem em São Paulo e banirem os ritmos antigos. E vi a civilização industrial tomar conta e encher o ambiente com um ritmo industrializado, mecânico e apressado, que me parecia um ritmo não homogêneo. Mas, na medida em que era o contrário dos ritmos antigos, constituía uma onda de ritmos diferentes que expulsavam os outros ritmos diversos. Ficava indignadíssimo! Porque eu era inteiramente solidário com as cabras e com outras coisas do gênero. E oposto completamente aos ritmos novos. Esses ritmos antigos, foi fácil destruí-los, porque eles, antes de estarem destruídos, estavam mofados. E mofados de um mofo, de uma velharia que nem sei o que dizer. Desta forma, toda a atmosfera interiorana, toda a atmosfera tradicional tinha ficado anquilosada, parada, caminhando para a podridão, para a incapacidade de produzir congruentemente consigo mesma. E ia aparecendo uma coisa nova que propiciava uma situação em que fossem construídas coisas incongruentes com ela. Assim, a alternativa que ficou foi: ou entrar com ela no cemitério, ou adotar a incongruência para fugir do mofo308. O “senso do absoluto” No período em que essas primeiríssimas impressões iam se formando em mim, eu me lembro de ir registrando muitas coisas, aqui, lá, acolá, e as mais diversas, desde uma luz acesa na vitrine de uma casa comercial, até, pouco mais adiante, alguém que ouço cantando ou tocando uma música no piano; ou um tapete que eu vejo e cujo desenho me agrada; ou ainda um cachorrinho lulu muito vivo, branco, com aquela bonita mancha bege a certa altura do corpo, e com as orelhas também beges. Olhava para aquele cachorrinho e o achava bonitinho. Gostava muito da combinação branco com bege. E me perguntava: “Por que é que eu

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gosto? É bonito. Mas é bonito por quê? Mais bonito, mais bonito, pode haver mais, pode haver mais?”. O mesmo em relação a uma vitrine que havia na casa onde eu morava. Essa casa tinha uma boa sala de visitas, na qual havia móveis dourados no estilo Luís XV. Em certo momento comecei a prestar atenção na bonita vitrine, toda ela enfeitada com aplicações de bronze sobre madeiras preciosas, forrada com sedas. Tinha uma parte bombeada, onde havia, pintadas, figuras humanas movendo-se num fundo de natureza maravilhosa: auroras bucólicas, aquelas coisas. E descobri então os prestígios e encantos do marfim. Fiquei literalmente encantado com o marfim: “Como seria um mundo se todo ele fosse esculpido em madeira revestida de marfim? E como seria o mundo todo revestido de marfim? Que beleza!”309 Assim, vendo ou considerando qualquer coisa, eu era levado a me perguntar como seria essa coisa se ela fosse levada à sua perfeição absoluta310. Essa admiração não era por uma mera fruição dos meus sentidos, mas era por querer algo que fosse mais perfeito. E dentro desse mundo eu pensava em uma coisa, depois em outra, e depois em outra. A tendência era de não me contentar com coisa alguma, e de ir do mais elevado ao mais elevado ainda, até chegar ao absoluto311. Como sou muito “truculento”, entendido enquanto muito afirmativo, tenho necessidade de levar até o último ponto da truculência o que há em mim. E o meu desejo constante do absoluto é, por excelência, o que me caracteriza312. Era, no fundo, uma tendência para o amor de Deus313.

* Já disse que o meu mundo de infância era povoado por dois padrões de absolutos que se chocavam: os padrões hollywoodianos, vazios de absolutos, e os padrões europeus, cheios de absolutos.

309 Chá SB 29/5/81 310 Chá PS 2/9/94 311 Chá SB 29/5/81 312 Jantar EANS 29/4/92 313 Chá SB 29/5/81 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 153


No padrão europeu, o orador absoluto era apresentado como sendo Jean Jaurès314. Os estadistas absolutos: Gladstone315 e Disraeli316. O militar absoluto, Hindenburg317. A rainha absoluta era a Rainha Vitória. No meu interior, eu protestava contra essa avaliação. Achava que Francisco José era o monarca absoluto. E não consentia que o militar absoluto fosse o Hindenburg. Eu tinha um certo xodó pelo Kaiser enquanto representante do absoluto militar. Depois percebi que não. Mas ele representava muito bem o papel do militar. O Papa absoluto: São Pio X. Eu nasci nisto, e esses eram os ecos de alma que eu tinha na minha infância. Este conceito de absoluto, como já disse, exercia sobre mim uma atração enorme, por causa da ideia que estava por detrás. Era uma condição, um estado, uma situação na qual a coisa é. Possui tudo, tem a plenitude de tudo, avassala tudo e é adorada porque merece ser adorada. Não tinha muito claro naquela época que isto era Deus. O que me ensinaram no Catecismo não me conduzia a isto. Eu simplesmente tinha a ideia metafísica do absoluto. Era tão simples em ligar, mas infelizmente não liguei que era Deus. Era, portanto, a perfeição das perfeições, a perfeição por detrás de todas as perfeições, e possuindo-a de maneira tal que, se Deus combatesse, o Hindenburg seria para Deus uma pulga. Se Deus cantasse, a voz de Caruso seria um miado de gato asmático. E daí para fora. Era a ideia, que me agradava muito, de algo eminente e existindo por si mesmo, e não devendo o seu ser a ninguém, e tendo de um modo substancialmente perfeito tudo aquilo que eu via refletido naqueles personagens que citei acima. Mais ainda do que tendo, sendo aquilo, pois Deus não é perfeito, Deus é a perfeição. E a perfeição é Ele mesmo318.

314 Sobre Jean Jaurès, ver nota 74 da página 47. 315 William Ewart Gladstone (1809-1898) foi um estadista liberal inglês que desempenhou o cargo de primeiro-ministro por quatro vezes. 316 Benjamin Disraeli (1804-1881) foi um estadista inglês, conservador e rival político de Gladstone, que ocupou o cargo de primeiro-ministro por duas vezes. 317 Paul Ludwig von Hindenburg (1847-1934) foi um célebre militar alemão que comandou o Exército Imperial durante a Primeira Guerra Mundial, tornando-se depois presidente da República de Weimar. 318 CSN 22/3/86 154

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O senso hierárquico Via muito o lado tradicional daquela sociedade, e me afeiçoava inteiramente a esse lado tradicional. E quando se manifestava o lado não-tradicional, ou uma pessoa menos tradicional aparecia modernosamente em ambiente que era menos moderno, eu tinha a sensação de que alguma coisa estava mal ali e contrariava a normalidade da ordem das coisas daquela situação. Eu era então uma criancinha de três, quatro, cinco anos. E notava essa superioridade exercer-se sobre mim, superioridade esta que essas pessoas mais velhas estadeavam sem ter a intenção, e eu ficava muito bem impressionado. Eu me dizia interiormente, e tenho impressão de que isto era uma projeção da inocência: “Como isto é reto! Como isto é direito! Em presença de pessoas assim, sinto que a minha alma se engrandece e encontra o modelo e o rumo de como ela deve ser, e também do que ela deve seguir”. Sentia uma verdadeira alegria em admirar, que fazia do superior uma causa de minha alegria, uma “causa nostrae laetitiae”. O admirar passou a ser a impostação de alma mais jubilosa de minha vida. Eu tinha mais alegria em admirar uma pessoa respeitável que eu visse, do que, por exemplo, fazer uma brincadeira boba de agarra-agarra ou de pontapés com outros meninos. Eu fazia essas brincadeiras também. E não era só porque os outros faziam, era porque eu era truculento e gostava de umas brigas, de uns pontapés. Eu até não tinha o temperamento briguento, mas era por uma necessidade de me mover e de em certas horas truculentizar com um ou com outro. E então nós nos pegávamos. Mas era briga de amigos, de primos, sem acarretar ressentimentos nem dores, nem nada disso: era pura brincadeira, feita como distração de segunda ordem, quase uma necessidade física. Mas a necessidade de espírito era admirar, respeitar e querer bem319. Embora pareça o contrário, eu gosto de prestar homenagem a quem é mais do que eu, gosto de me inclinar diante de quem vale mais do que eu, gosto de obedecer320. Tenho dentro do meu espírito um catálogo das coisas que eu admiro: “Tal ponto em Fulano, tal ponto em Dona Sicrana, tal ponto em Beltrano, tal outra coisa em Mengano”, e lá vai, daí para fora. 319 MNF 18/1/90 320 CM 4/12/94 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 155


Toda essa “admiratividade” levava-me a gostar muito das atitudes de respeito àquilo a que eu devo respeito; prestar homenagem àquilo a que, ou àqueles a quem eu devo subordinação, obediência e sentimento de minha própria inferioridade. E isto me levava a querer obsequiar, a me colocar abaixo321. O efeito disso diante das coisas civis, temporais, era considerar que as desigualdades temporais eram análogas às desigualdades espirituais. Quem ama umas, devia amar as outras. Então, muito gosto por todos os hábitos sociais que refletissem respeito, cortesia, atenção e, numa palavra, desigualdade; e execração a toda a influência de Hollywood, que era a de perpétua brincadeira322. Via em meu superior o meu apoio, o ar que me dá estímulo, o amigo que me faz crescer, e não apenas o modelo que me impõe modos de ser que eu não quero ter. Via o modelo que representa a fórmula facilitada para eu ser daquele jeito, para compreender que aquilo é daquele jeito, que aquilo deve ser daquela forma; via-o como representante de um mundo superior a mim, pelo qual eu tenho acesso a algo que eu não teria se não fosse ele, mas que, tendo por meio dele, eu engrandeço os espaços de minha vida. Lembro-me, por exemplo, quando apareceram aqui no Brasil, no ano do centenário da Independência, primeiramente os filhos de Dom Pedro de Alcântara, e depois os filhos de Dom Luís de Orleans e Bragança, portanto, Dom Pedro Henrique, o irmão dele que morreu e a Princesa Maria Pia. Vieram em ocasiões diferentes, primeiro uns, depois os outros. Eu brincava com eles em casa, como meninos. Mas ao mesmo tempo eu os devorava com os olhos, porque eram fragmentos da Europa, da Europa que eu admirava como todo o mundo sabe, e fragmentos da realeza, que era o píncaro da Europa. Eram, na Europa, o que a Europa é no mundo. Quem principalmente me encantava era a futura Condessa de Paris, uma menina lindíssima. Parecia uma fadazinha. E não entrava nessa admiração nada, nada, nada de sensual. Não se punha o problema. Percebia que os outros meninos e meninas de minha roda absolutamente não viam isto assim. Viam de um modo banal, tão diminuído, tão diverso do que eu imaginava, que eu nem sei o que dizer. Eu então pensava o seguinte: “Isto é uma das mil diferenças que me separam deles. Mas eu continuarei fiel ao que eu sou. Sou assim. Esses príncipes são meus superiores, são as pessoas que estão nimbadas por um carisma que me comunica algo que o comum das pessoas não tem. E me alegro com isso”. 321 Chá SB 5/9/88 322 Chá SRM 2/8/88 156

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Isto se dava igualmente em relação aos padres, ao clero. A alegria de reverenciá-los, de dar preeminência a eles, de na rua saudá-los com uma inclinação de chapéu toda especial; estando junto a algum deles, considerar: “A alma deste homem como que transuda o sobrenatural que está nele; ele é um homem todo feito para Deus e sobrenatural. Vejo nele quase como a uma relíquia”323. Até hoje eu os trato com muito respeito. Mas é o respeito de um cavaleiro católico, sem me achincalhar. Nada de: “Seu padre, eu não sou nada diante do senhor”. Não é verdade. Sou eu. Ele é ele, e muito mais do que eu, por ser um ungido do Senhor. Eu o respeito, mas não esqueço quem eu sou324. Sentia que esta posição refreava em mim uma porção de coisas, não à maneira de um freio, mas à maneira de um princípio ordenativo que entrava em minha alma – era uma coisa até bem distinta de um freio – e me comunicava um modo de ser que era inteiramente conforme a isso e voltado para o serviço disso. E que era a alegria de ser inferior, a alegria de admirar, a alegria de obedecer, a alegria de amar. Eu também percebia que eu não estava no rés-do-chão desta ordem; eu representava algo de não idêntico, mas análogo para outros menores do que eu. E por amor à ordem, não por amor a mim, exigia deles trabalhosamente a homenagem que o modernismo começava a fazer com que eles me negassem. Tudo isto acontecia por amor a essa graduação, a qual ia até quase o infinito. E essa graduação – aqui entra a passagem do senso moral para a intelecção – se baseava num conjunto de princípios que eram enunciáveis racionalmente, aos quais a razão dava todo o seu apoio, toda a sua sanção, e que correspondiam inclusive à ordem do ser invisível e sobrenatural, e que por causa disso precisava ser mantida, apoiada e respeitada de todos os modos325. O senso do sacral Eu amo mais a sacralidade do que a desigualdade. Devemos mencionar primeiro a sacralidade e depois a desigualdade, porque a sacralidade é uma desigualdade tão alta que toca no próprio Deus. Deus é por excelência sagrado. Qualificamos de sagradas as coisas que têm uma excelência tal que, de algum modo, tocam em Deus. 323 MNF 18/1/90 324 Chá SRM 2/11/89 325 MNF 18/1/90 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 157


A sacralidade de uma coisa é uma excelência tal dessa coisa, que ela entra de algum modo e muito alto no campo religioso. Ora, o campo religioso é o mais alto dos campos. Estar muito alto no mais alto dos campos é estar muito desigualmente colocado. E o indivíduo que ama a desigualdade com espírito católico, ama porque toda a desigualdade tem analogia com o sacral. Em termos psicológicos da vida comum, a sacralidade eu a conheci na igreja do Coração de Jesus, indo lá, rezando lá, assistindo à Missa. Ela me parecia simbolizar uma alta virtude, mas uma virtude que tinha a fonte em si mesma, que não vinha de ninguém – a gente está vendo que é o próprio Deus –, e que era a mais alta virtude excogitável, compreensível, e que se derramava sobre os homens bondosamente, às torrentes. Mas de outro lado eu via nela uma grandeza que a tornava sumamente admirável e sumamente digna de respeito. De maneira que era uma grandeza protetora, abarcativa. Eu me sentia por assim dizer coberto como debaixo de um teto de grandeza. E protegido nas mil coisas da vida humana, que eu já percebia ser muito difícil, por essa sacralidade bondosa. Na medida em que fui ficando mais velho, eu via que essa sacralidade se irradiava do próprio Sagrado Coração de Jesus, e que no fundo era Nosso Senhor Jesus Cristo enquanto Sagrado Senhor e Fonte de toda a sacralidade. Tudo quanto eu amava naquela igreja provinha do Sagrado Coração d’Ele. Daí me veio um amor a tudo quanto é sagrado e um respeito a tudo quanto é respeitável326.

* Este sacral, que é mais belo e mais alto do que as coisas paradigmáticas da natureza, eu o observava na igreja do Coração de Jesus, e no contato com uma imagem do Coração de Jesus que mamãe tinha no quarto dela. Não tardei a perceber que as coisas sacrais davam acesso à contemplação de uma ordem do ser muitíssimo mais elevada, e que satisfazia a minha alma incomparavelmente mais do que os paradigmas que se poderiam deduzir do éclair de chocolate, do éclair de café de que eu gostava muito, ou de uma vista de Veneza, ou de uns macarrões que, naquele tempo, eu comi em Gênova e de cujo sabor eu me lembro até hoje. Essa percepção se dava sobretudo na hora da elevação da hóstia durante a Missa, e mais ainda na elevação do cálice do que na elevação da hóstia.

326 Chá SRM 2/8/88 158

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Isto era um erro de minha parte, porque ambas as ações são a mesma coisa: a transubstanciação, a renovação incruenta da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo no Calvário, e o oferecimento da sua morte à Santíssima Trindade. Mas eu não sabia inteiramente o que era a Missa. Percebia que o padre que a rezava fazia algo de muito alto, de muito misterioso, e que isto incutia um respeito que nenhuma outra realidade humana incute. Todo o mundo baixava a cabeça (eu também baixava) e me ficava a impressão de que a emoção do padre era muito maior na elevação do cálice do que na elevação da hóstia. Hoje percebo que concorria para essa ideia o fato de que a Sagrada Hóstia não tinha valor artístico, enquanto o cálice tinha. E o cálice, como se usava naquele tempo, era de ouro e sempre em forma gótica, ou seja, semelhante a uma ogiva voltada para cima. Aquela forma gótica, a beleza, a nobreza do ouro, e qualquer coisa ligada à ideia do vinho que se punha no cálice – o vinho é mais nobre do que o trigo –, davam-me a ideia de que o ato que se fazia conjugadamente pelas duas transubstanciações atingia o clímax da sua sacralidade na transubstanciação do vinho. Repito: havia nessas considerações um fator de ignorância religiosa crassa. Eu nem tinha tido ainda o meu curso de Catecismo. Tive o meu curso de Catecismo aos nove anos, e essas considerações deveriam ter sido feitas antes dessa idade. Vim a saber depois que, aquilo que eu percebia ali, era a ação da graça. E o órgão parecia-me comentar muito bem, sem palavras, mas de um modo magnífico, o que ali se passava, e o movimentar, dentro do homem, da graça que ele tinha recebido. Eu tinha uma admiração à fond perdu pelo órgão! Até lá chegava a minha admiração. E aí a ideia de a sacralidade aparecer-me, não como uma noção abstrata, mas por assim dizer como uma experiência, como a mais alta das coisas e o pináculo do que o homem possa conhecer, desejar e admirar, e algo que ordena tudo o que vem abaixo. A ideia era: se houver sacralidade, Veneza e todas as cidades do mundo estarão em ordem; se houver sacralidade, os cálices todos do mundo estarão em ordem, as igrejas todas do mundo estarão em ordem. O pináculo da cogitação do espírito humano é a sacralidade. E este é também o pináculo do bem sentir-se do homem. Em que ponto? Essa sacralidade tinha qualquer coisa de semelhante à penumbra das igrejas com vitrais góticos e tinha também qualquer coisa de sumamente respeitável e de venerável até.

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No momento em que eu a sentia, ela, sem perder nada de sua grandeza, tornava-se afagante, acariciante e protetora para mim. E continha uma promessa de proteção e de afago que me dava segurança na vida, uma segurança que eu não teria se eu não a tivesse conhecido. Na forma de carinho de mamãe, por exemplo, eu percebia o reflexo de quem tinha o espírito muito aberto para a sacralidade. E notava que havia qualquer coisa de filha da Igreja no modo pelo qual ela era minha mãe, o que me unia muito a ela.

* Um pouco mais tarde, já então no Colégio São Luís, veio-me a ideia da Igreja Católica. Quer dizer, eu sabia que havia a Igreja, mas minha atenção não se tinha concentrado n’Ela. Foi a Igreja que levou minha admiração ao auge, porque era o receptáculo e a fonte de todo o bem, de toda a verdade, de toda a grandeza, de tudo. Senti que, unido a Ela, eu teria condições de permanecer puro e de permanecer sacral. Desligado d’Ela, eu cairia no rolo das coisas mais baixas, mais abomináveis. Olhando para os outros, percebia que estavam naquele estado porque não tinham sacralidade, não amavam a sacralidade, fugiam da sacralidade como sendo um tédio e um cárcere. E ela era o meu paraíso. Daí toda a ordenação do resto das minhas preferências, de meus gostos, de tudo em função da sacralidade. Era a possibilidade de ver a sacralidade refletida nas coisas é que guiava as minhas preferências. Lembro-me de ter encontrado, no meio dos resíduos da viagem que a minha família tinha feito à Europa, um álbum de Versailles, desses com cartões postais picotados em bloco, e que a pessoa fica com a possibilidade de destacar e mandar para conhecidos. Pode-se imaginar como eu me agarrei a esse álbum. Eu gostava muito do palácio, e gostava enormemente também do parque, que era fotografado de cima não sei por que avião precoce, ou se por algum balão. Com aquele desenho geral de Versailles, com aqueles bosquets, com aquela vista toda diante dos olhos, a minha forma de flanação era sentar-me longe do professor, abrir meu pupitre e ficar como se estivesse estudando. Dentro estava a vista de Versailles, que eu percorria indefinidamente. O que eu gostava propriamente de imaginar era porque os revolucionários odiavam Versailles, o que era, no fundo, um discernir o demônio. Não era propriamente discernir o sacral, senão pelo ângulo de que aquilo 160

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que o demônio odeia tanto, tem certa dose ou certa afinidade com o sacral. E por aí amar esse sacral. Quando pela primeira vez minha atenção foi atraída para a capela de Versailles, a qual tem um teto ligeiramente gótico, tive um épanouissement: “Como é bela!” Logo depois veio a pergunta: “Por que uma capela com essa forma é mais sacral do que o resto do palácio?” De fato, o palácio de Versailles é um tanto naturalista, não muito sacral. Já a capela dá a sensação de sacralidade muito mais acentuadamente do que o palácio. Então a conclusão foi: onde eu encontro a sacralidade, aí a minha alma está com todo o seu gosto327. OS FRUTOS DA INOCÊNCIA Ausência de qualquer forma de inveja Graças a Nossa Senhora, nunca me custou nada, absolutamente nada, nunca tive dificuldade em não ter inveja de ninguém. Vendo outros irem mais para frente do que eu nas vias espirituais, isto sempre me causou alegria, me causou afeto pela pessoa, causou-me respeito, admiração, vontade de servir, abnegação. Inveja nunca! Dou graças a Nossa Senhora por isso, porque a inveja da graça fraterna é um pecado muito grave. E ao menos nesse pecado eu não tive dificuldade em não cair, isso para mim era fácil. Mas bem sei, pelo que tenho lido de histórias de almas, pelo que tenho visto ao longo de minha vida, que para outras pessoas é muito difícil não ter inveja dos que vão melhor. É uma coisa que é preciso combater, porque na medida em que eu tiver inveja daquele que vai melhor, o meu dinamismo para ir melhor decai. Pelo contrário, na medida em que eu amar aquele que vai melhor e praticar o que o Cardeal Merry del Val enuncia na sua Ladainha da Humildade: que os outros sejam mais santos do que eu, contanto que eu me santifique tanto quanto for necessário e quanto estiver nos desígnios de Deus, o meu dinamismo para ir melhor aumenta. Quer dizer, eu fazendo tudo quanto está em mim, e ver que outros vão para cima, vão para cima, vão para cima e eu fico para trás; se eu tenho a sensação de que nada é por culpa minha, devo estar tranquilo e aplaudir a

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ascensão dos outros, e a cada nova ascensão deles devo prestar-lhes uma nova homenagem328. Alegria pela harmonia entre a ordem interna e externa e a facilidade para fazer correlações Nos meus quatro anos, eu sentia uma espécie de harmonia dentro de mim, em virtude da qual eu não percebia lutas interiores dentro de mim; percebia tudo bem travado, bem ordenado, bem aconchegado, por assim dizer com articulações flexibilíssimas. Como toda criança, tinha sucessivamente estados de espírito bem diversos que não entravam em choque um com o outro. E isso me fazia sentir aquela espécie de harmonia interna que me dava um gáudio muito grande. Era uma harmonia cheia de alegria que, sem me dar conta, parecia-me vir do mais alto. Seria como uma coisa que brotasse de algo muito mais alto do que eu e que me inundava com essa harmonia e, portanto, com essa alegria. De onde também uma grande alegria interna de viver, de ser e de ser eu mesmo. O fato de eu ser eu dava-me essa alegria, não porque me reputasse maior ou menor do que outros – eu nem tinha capacidade intelectual para fazer essa comparação –, mas porque eu me conhecia e alegrava-me de ser assim, de haver em mim essa agilidade, essa harmonia, essa recíproca coesão e coerência de todos os aspectos de alma. De onde eu ser muito amigo de toda coisa muito ordenada, muito direita, muito bem arranjada. Vemos aqui, desde logo, que é o primeiro passo contra a Revolução, a qual representa o descabelamento doido de todas as coisas. Lembro-me de que, depois, comecei a adquirir a noção de que essa harmonia não existia só em mim, mas existia também na harmonia minha com as coisas externas a mim. O mais antigo exemplo disso de que me recordo foi na minha ida à ilha de Rügen, no mar Báltico, onde havia uma praia chamada Binz. Fomos de trem até um certo ponto “x” do litoral continental e lá o trem entrava em um navio, e esse navio levava o trem até a ilha. E me lembro do alvoroço alegre de todo mundo em torno de mim. Tomar um trem que entra em um navio, para aquele tempo (1913), era uma proeza!

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Por causa do vaivém, o mar deve ter feito o casco do navio dar uma pancada no cais. Senti aquela pancada e aquele som de metal e vi todo o meu pessoal olhando para o lado de fora da janela: “Olha, vai entrar, não vai... Lembro-me ainda da ideia do grandioso, mas também do tenebroso que era um trem entrar em um navio. Depois, a ideia de libertação quando o trem sai e passa à terra firme. Era sair de dentro do risco e entrar no lance maravilhoso do progresso. E eu pensava: “Tudo isso é pancada, é barulheira, é uma violência que se faz às coisas; isto não vai com a minha harmonia interna. Veja também as alegrias com que eles estão, não são as minhas. Não se fica alegre assim! Se eu fosse ficar alegre assim, eu quebraria essa tal ordem cheia de unção que existe em mim”. Evidentemente, eu não seria capaz de dizer essas palavras naquela época, mas era muito definidamente o que eu experimentava. Na praia havia umas cabinezinhas que tinham dois ou três lugares e um toldo; e depois, em volta, em forma de círculo, um paredão de areia muito branca e cada família tinha direito a um reservatório de areia. Vê-se logo um sistema organizado alemão. Eu, sentado ali e brincando com a areia e sentindo uma coesão enorme com aquela areia. Depois levantei-me e olhei para o mar. O mar estava azul, mas de um azul como raras vezes se vê aqui, se é que se vê: azul, azul, uma coisa fantástica! E me lembro de dizer para mim mesmo: “Mas como isto me diz respeito! Como se relaciona comigo! Que coisa magnífica! Que bom isto aqui e como é bom ser eu!” Aí via uma analogia que eu encontrava muito realizada no convívio com mamãe. O convívio com ela era cheio de coisas dessas. Eu me encontrava muito realizado no convívio com ela; em relação a outras pessoas talvez menos. Mais tarde comecei a perceber lances dessa harmonia em certos costumes, em certos ambientes, em certas almas. Embora não tivessem essa harmonia por inteiro, em alguns aspectos tinham isso. Comecei a diferenciar os traços de harmonia e de contra-harmonia. E então, em parte, comecei a querer bem a algumas pessoas, na medida em que tivessem essa harmonia, e a não querer a outras, na medida em que não tivessem essa harmonia. Lembro-me bem que, já era mais crescido, devia ter uns sete anos, assistindo à Missa com mamãe na igreja do Coração de Jesus, em certo momento o órgão me chamou a atenção. Nunca havia chamado. 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 163


O órgão estava tocando – um órgãozinho paroquial, modesto –, ouço-o e digo: “Que curioso, eu não tinha notado isto. Que som! Cada nota que se toca aqui tem uma espécie de mil notinhas dentro do mesmo gênero. E forma uma harmonia. Depois, as várias notas entre si, olhe que harmonia têm! Que coisa bonita!” Veio-me depois outra ideia: “Engraçado, isto se parece com a igreja”. Assim, ao longo de vários domingos, fui estabelecendo essa ligação entre a igreja e o órgão. E depois, naturalmente, com mamãe que estava ao meu lado. Via mamãe rezar e a proximidade física com ela me fazia sentir algo: “Ela é exatamente assim, ela e a igreja – eu não possuía a palavra reversível – tem uma tal ou qual reversibilidade: o edifício material, aquele padre, as coisas que aquele padre faz no altar, os vitrais. Eu diria que os vitrais são o órgão em cores e que o órgão é o vitral em som. E diria que tudo isso se encontra na alma de mamãe também, mas de modo mais eminente naquela imagem do Sagrado Coração de Jesus que está ali. Quem verdadeiramente foi assim foi Ele! E Ele era a fonte de tudo isso. Então a Igreja é onde está tudo isso, numa harmonia pletórica com a Igreja Católica”329.

* Em viagens que a minha família fazia ao Rio de Janeiro, ficávamos em hotéis à beira-mar. E a cor do mar atingido pelo sol me parecia uma pedra preciosa. Essa consideração do mar, que nem é pedra e nem é preciosa, por analogia despertava em mim figuras ou imagens ligadas a pedras preciosas. E ninguém pode dizer que isto é um sintoma de doença psíquica. É a coisa mais natural que pode haver no mundo. Assim, embora eu soubesse que era mar e soubesse qual era o gosto da água do mar, eu me comprazia em imaginar aquilo sob a forma de uma geleia, e imaginar que gosto e que consistência essa geleia teria. Cogitava eu: “Este mar seria bom para ser servido frio ou gelado?” Eu optava pelo gelado. Compreendo que outros optassem pelo frio. Pelo quente eu não compreenderia. Isso me levou a notar a distância que havia entre o que poderíamos chamar de dois mundos numa alma. Um primeiro mundo seria a racionalização daquilo que conhecemos. O segundo mundo seria a imaginação daquilo que gostaríamos que fosse de certo jeito.

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Isto levou-me a compreender que havia em toda criatura humana, portanto em mim também, um teclado para tocar toda uma musicalidade imaginativa a respeito de um mundo mais ou menos criado pela pessoa. E um outro teclado com uma possibilidade racional de pôr tudo como 2+2=4, preto e branco. Sendo o homem uno, ele não podia ser um ente desalinhavado. Imaginem um homem que não conseguisse mover sincronicamente os braços e as pernas: seria um estropiado. A harmonia e a construção de seu ser exigem naturalmente que essas coisas andem sincronicamente para prestar determinado serviço, como, por exemplo, andar. Nessa perspectiva, procurei estudar a relação que havia entre aquilo que os sentidos me apresentavam – sons, por exemplo – e aquilo que a razão me indicava, na percepção de que certas impressões são expressivas de certas ideias abstratas, e de que certas outras impressões são indicativas de outras ideias. Eu notava que havia uma correlação – como se fossem dois painéis colossais – entre o que os sentidos sentiam e aquilo que a inteligência conhecia, e que o modo de conhecer da inteligência servia-se largamente dos sentidos. Isto depois era trabalhado, era analisado e, conforme o caso, podia gerar uma impressão ou outra. O exemplo mais flagrante disto se dava na hora de considerar a fisionomia das pessoas. A primeira reação que temos diante de uma fisionomia é instintiva e está no fundo de nossa natureza reta. Olhando-se uma pessoa, simpatiza-se ou antipatiza-se. Só depois é que iremos ver se a pessoa é boa ou é má, de acordo com as ideias e com a conduta dela. O fato é que primeiro se faz uma análise sensível, e apenas depois a análise racional, para no fim concluir: “Fulano é tal coisa”. E aí se fecha o juízo sobre Fulano. Percebia, assim, como era construída essa harmonia que deveria existir no homem, e como o homem deveria respeitá-la. Mas ficava visto também que essas correlações existiam e que, quando analisada uma pessoa, podia facilmente acontecer que a forma do nariz tivesse um grande papel sobre a ideia que se iria formar dela. Os olhos, nem se fala. Então a pergunta: que relação há entre o nariz e o caráter? O mesmo nariz que, na face de um, poderia causar a impressão de um bico de águia nobre, arrojado e destinado às alturas, na face de outro poderia dar a impressão de uma nariganga pesada, cacete e difícil de carregar.

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O nariz é o mesmo, mas, encaixado no contexto de uma determinada fisionomia, dirá uma coisa; e no contexto de outra fisionomia, dirá outra diferente. Ficava-me a ideia de que podemos fazer todo um trabalho de correlação entre formas, gostos, cores, sons entre si. É o mundo dos sentidos e, depois disso, o mundo da razão. Dessa forma é que podemos emitir um juízo, servindo-nos desses dois teclados. Como é que fui ordenando essas coisas? Muito simplesmente porque a mim me encantava encontrar as correlações. Fazendo-as, eu me percebia mais ordenado e me sentia mais explicado para mim mesmo. E notava que daí nascia dentro de mim uma força face aos outros, e também servia para explicar-me, para dizer, para perguntar, para inquirir, para invectivar, para ser amável. Tudo que eu quisesse fazer, eu me manobraria a mim mesmo de maneira muito melhor agindo assim. E, tendo-me compreendido a mim e recebendo o apoio da minha razão para aquilo que eu fazia, me sentia muito melhor, mais à vontade. Eu tinha encantos por essas correlações e as exercitava como quem se distraía. Em certos momentos elas formavam grupos de correlações, e então eu correlacionava uns grupos com os outros grupos330.

* Essas considerações em algo metafísicas que eu fazia preludiavam, sem eu o perceber, os ambientes-costumes-civilizações, e se juntavam no meu espírito da maneira que a seguir exemplificarei. Um tio meu possuía em casa uma grande concha de louça, toda ela revestida de uma espécie de nácar por dentro. Por fora era comum, feia como são essas conchas, mas nela aparecia uma pérola que estava se formando. As pessoas todas achavam interessante ver a pérola se formando. E eu achava interessante ver o nácar refletindo naquela concha. Que efeito produzia esse nácar em mim? Quando a luz incidia nele dentro da sala, eu percebia, naquele jogo muito discreto de cores, uma interrelação entre aquelas cores bonitas e cheias de luz com algo que me parecia ser uma afinidade das próprias qualidades de certas almas, e as relações de afinidade de umas tantas almas boas com outras.

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Bem entendido, antes de tudo, mamãe. Parecia-me que mamãe tinha isso dentro de si mais do que qualquer outra. Mas também – isto por causa dos costumes daquele tempo – no trato entre as pessoas entre si, muito impregnado ainda de estados de alma que tinham sido católicos, muito embora essas mesmas pessoas já fizessem isto de modo muito laico. De onde ainda existir ali um certo prolongamento da influência católica. Era esse um traço de alma que criava relações bonitas. E algumas dessas relações me pareciam ter certa relação com esse nácar. De um modo geral, um pouco disso reluzia em todas as relações das famílias de boa categoria em São Paulo. Não precisava ser do píncaro, bastava ser de uma boa categoria. A vida social tinha, portanto, muitos aspectos assim. Nisto tudo eu via, como já disse, o reflexo de alguma coisa metafísica salpicada de sobrenatural, e também de ordem psicológica, que tinha qualquer relação com o pulchrum moral que aquele nácar representava in abstracto. Depois eu fazia aplicação para essas, aquelas e aquelas outras situações. Para mim, isto era antes de tudo, na ordem dos valores, uma beleza sobrenatural, que eu não sabia que era sobrenatural, mas “sentia” que era; beleza esta que era também metafísica, moral, psicológica, social. Por exemplo, a expressão dos objetos de decoração em minha volta em parte realçava a compreensão dessa correlação. Duas cadeiras poderiam ter relações entre si, estáticas, mudas e eternas, no sentido de que seriam infindas, tal como duas pessoas que se sentassem nessas mesmas cadeiras e conversassem com a distinção e a elevação de alma que a cadeira pedia. Assim, os móveis repetiam de algum modo a sociedade humana, e a decoração de uma sala ou de uma casa inteira poderia repetir o estado de alma da família. Na restauração da civilização cristã que está por vir – e que chamamos de Reino de Maria –, suponho que venha a ser esta, de um modo todo especial, a atmosfera que predominará, atmosfera esta por assim dizer impregnada das graças do Divino Espírito Santo. Será então graça-graça, no sentido estrito dos compêndios de Teologia: a “participação criada na vida incriada de Deus”, e a qual se fará sentir depois de se ter modelado tudo isso. Falei dos efeitos da decoração. Mas também as pessoas, ao frequentarem determinado ambiente, deixavam não sei que marca imponderável nesse mesmo ambiente. Elas se refletiam nos móveis, como os móveis as refletiam. Casas, por exemplo. A arquitetura das casas tinha algo disto.

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Era, portanto, uma realidade muito harmônica a que eu percebia, em que a mesma luz celeste pervadia toda a ordem temporal católica331. Certezas sólidas, filhas da admiração e fundadas nas evidências fornecidas pelos sentidos e na retidão interna da alma Já disse atrás que havia desde menino no meu espírito, e creio ser isto fruto do senso do ser, próprio ao inocente, uma clareza enorme pela qual, aquilo que eu via, eu via; aquilo que eu ouvia, eu ouvia; aquilo que eu sabia, eu sabia; e o que eu vi passar, passou-se mesmo, e passou-se com tais contornos, com tais matizes, com tais características. Aquilo ficava visto e agarrado, sem esforço, com a naturalidade própria às coisas que funcionam bem. Não era desses investigadores colocados na proa do navio para observar o que vem na frente. Era um observador na linha da normalidade, sem nada de genial, mas que via inteiramente claro, de modo inteiramente lúcido, e inteiramente seguro aquilo que eu estava vendo. Nisto eu era bem servido pelos cinco sentidos. Nunca tive nenhum desses sentidos de modo prodigioso, mas em modo excelente sim. Bastante excelente para que cada um a seu modo me desse certezas totais: “Isto é assim, não há dúvida nenhuma”. Correspondendo a esta certeza banal que os sentidos dão, havia certezas interiores das quais a mais preciosa era a clareza no perceber a interrelação das coisas, as reversibilidades, o que já é muito diferente de simplesmente perceber as coisas. Eram às vezes reversibilidades longínquas, uma situada em uma ponta e outra noutra ponta, as quais vinham ao espírito com a facilidade de quem toma um copo d’água. Quer dizer, o próprio viver, o próprio ser é assim, por causa dessa capacidade de correlações, possuindo um sentido muito nítido da ordem total e a noção de como cada coisa deve ser. Para quem quer conhecer uma coisa como ela é, a meta não consiste em uma mera descrição, como num tratado de física, mas em ver em cada coisa a sua ordem interna, a sua finalidade e a maneira como aquela ordem interna realiza essa finalidade. E isto tudo deduzido da própria essência da coisa. Por exemplo, indo a alguma fazenda, ver um osso de animal, branco de tão calcinado pelo sol, jogado no caminho, e que ninguém destruía, 331 CSN 28/9/85 168

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ninguém guardava, ninguém jogava em algum lixo, bramia dentro de mim, pela ideia de que aquele osso deveria estar colocado em uma determinada ordem, e no entanto estava destacado dessa ordem. Essa era, para mim, uma ideia mais enérgica do que o belo princípio latino: “Res clamat ad dominum” – “A coisa clama pelo seu senhor”, para a sua totalidade. Assim, a minha observação era imensamente voltada para compreender a ordem interna das coisas, e depois as várias ordens dessas coisas, até a ordem total. Essa ordem total era a ordem do universo, a ordem de todas as criaturas entre si, as visíveis e as invisíveis. Isto era uma matriz do espírito, creio que vinda da inocência, pela qual eu tinha, previamente a todos os conhecimentos que levavam à ordem total, uma espécie de instinto dessa ordem total que, se não me engano muito, é profundamente tomista. Quer dizer, é um instinto da alma, mas firmíssimo. Este sentido da ordem é, portanto, o sentido do ser, entretanto muito ampliado, muito reto, muito direito. O homem inocente tem esta visão, tal como tem in radice uma pessoa que conserve o estado de graça dentro da graça batismal. E sem esse mecanismo, tenho dificuldade em compreender que se possa ter certeza de possuir esse vigor. Chamo a atenção para este ponto. Isto não é a certeza do gênio. É a certeza da retidão, que por sua vez tem a seu serviço uma inteligência bem constituída. Esta noção da ordem e da correlação das coisas entre si, e da excelência que há nisto, nunca me levaria a adivinhar que Nosso Senhor Jesus Cristo existiu e foi Deus. Ninguém, nem os maiores gênios, seria capaz de, da razão, deduzir o que Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou. Alguma coisa sim, porque Ele ensinou verdades também do plano natural. Mas outras, como o mistério da Santíssima Trindade, eu nunca teria desconfiado que existisse, nem mesmo São Tomás de Aquino. Era preciso que Deus nos revelasse para nos darmos conta. Vem então daí o ato de fé, no sentido específico da palavra. Esse senso da ordem tinha, num plano individual, uma transposição para o próprio campo da ordem. Quer dizer, perante cada coisa, qual era a minha relação com ela? Por que devo amá-las, por que devo querê-las, por que devo apreciá-las, não no sentido de que são agradáveis, mas por achá-las de tal maneira admiráveis que não quero viver a não ser na consideração delas? Por que razão isto era assim? Repete-se a mesma explicação. Como eu tinha um senso muito nítido pelo qual, com a mesma certeza com que eu via as coisas fora, via também as de dentro de mim; e como tinha uma noção muito viva de quem eu era, não só genealogicamente, mas de como eu era, de como não era, eu via 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 169


essas coisas numa introspecção calma, sem sustos, sem medos nem ilusões: “Você é assim, você é isto”. Nesta análise eu notava qualquer coisa de luminoso, notava um lumen, que tenho certeza de que era a graça, o qual me levava a perceber que eu era feito para as mais altas coisas, não como um fruto de minha natureza, mas como fruto de uma adequação de minha natureza a algo de luminoso, de sobrenatural que eu percebia também com calma, pois todas essas considerações se davam em ambiente de muita calma332. Uma axiologia sã e firme: a ordem do universo é fundamentalmente boa Bem na fase de minha inocência, eu sentia em mim certas coisas que por assim dizer integravam o meu próprio ser. Sentia uma muito grande bondade, no sentido de que eu era bem intencionado, benévolo, alegre em relação ao bem que encontrasse em todo o mundo, e desejoso de encontrar nos caminhos de minha vida um bem onipresente que fosse benévolo para comigo, que me quisesse bem como eu o queria, que fosse benfazejo para mim como eu tinha a tendência de ser benfazejo para com ele. Formava uma espécie de convívio paradisíaco, no sentido de que eu me sentia assim, tinha alegria de ser assim, a vontade de ser assim a vida inteira, a ideia – quão ilusória – de que a vida inteira dos homens era assim e julgando que a vida que se estenderia diante de mim se desenrolaria desta maneira. Há alguma referência a isto, embora muito vaga, na “Oração da Restauração”333. De um modo geral, aquela atmosfera primaveril da minha vida espiritual era toda ela encaminhada nesta linha.

332 CSN 3/10/87 333 O texto desta oração é o seguinte: “Há momentos, minha Mãe, em que minha alma se sente, no que tem de mais fundo, tocada por uma saudade indizível. Tenho saudades da época em que eu Vos amava, e Vós me amáveis na atmosfera primaveril de minha vida espiritual. / Tenho saudades de Vós, Senhora, e do paraíso que punha em mim a grande comunicação que tinha convosco. / Não tendes também Vós, Senhora, saudades desse tempo? Não tendes saudades da bondade que havia naquele filho que fui? / Vinde, pois, ó melhor de todas as mães, e por amor ao que desabrochava em mim, restaurai-me: recomponde em mim o amor a Vós, e fazei de mim a plena realização daquele filho sem mancha que eu teria sido se não fosse tanta miséria. / Dai-me, ó Mãe, um coração arrependido e humilhado, e fazei luzir novamente aos meus olhos aquilo que, pelo esplendor 170

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Olhando para dentro de mim mesmo, eu me sentia tão bom quanto me pareciam bons os outros, tão benfazejos quanto me sentia ser benfazejo para com os outros. Era, portanto, uma espécie de harmonia global, da qual eu seria um fragmento; não um fragmento quebrado, mas um fragmento vivo, como por exemplo um galho de uma planta é um fragmento e um prolongamento natural da planta. Assim, eu me sentia como que um galho de toda essa ordem universal. Tudo isto, tomado em seu conjunto, não posso afirmar que girasse em torno de mamãe, mas se nutria largamente do exemplo da pessoa dela. Ela era toda dourada em tudo dela, o que explica aquele amor que eu tinha a ela e que conservo até nossos dias334.

* Também o pulchrum aparecia para mim como a própria pele do rosto do bem. Quer dizer, se era pulchrum, esse pulchrum era a expressão do bem. Por causa disso eu cometia, na apreciação psicológica das pessoas, dos outros meninos e de tudo o mais, erros colossais, porque às vezes uma pessoa pode ter fisionomia de pura e de boa por mera aparência, sem ter no fundo nada disso. Daí decepções colossais e sistemáticas. Então, o amor à coisa bonita era misturado com o amor ao bem. A coisa bonita era, para mim, quase que a consubstanciação de uma coisa boa335. Felicidade de situação Comecei, portanto, a aprender a degustar os prazeres castos, as alegrias sóbrias, as satisfações moderadas, mas suculentas, a tranquilidade de consciência, e fazer de minha vida uma vida alegre dentro da ordem posta por Deus336. O fato de ser bom, o fato de ter nexo com o que chamamos de transes337 fera , comporta uma felicidade imensa. E quando o indivíduo rompe o nexo com a transesfera, ele rompe sem ter bem ideia de que aquilo é felicidade.

de vossa graça, eu começara a amar tanto e tanto. Lembrai-Vos, Senhora, deste Davi e de toda a doçura que nele púnheis. Assim seja”. 334 CSN 12/8/95 335 MNF 7/10/94 336 Chá PS 6/12/84 337 Sobre o conceito de “transesfera”, v. nota 288 da página 137. 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 171


É um estado tão natural e tão nativo nele, que ele nem tem ideia da possibilidade de outro estado, como para nós não constitui uma condição de felicidade não sermos asmáticos e respirarmos à vontade. Eu era muito consciente dessa felicidade e a amava deliciosamente. Amava-a em si, e por aquilo para o qual ela me conduzia, que no fundo era Deus. Mas também pelo “bene esse” que me proporcionava e cujo valor eu sentia perfeitamente. Eu tinha muita paz na alma. Essa paz ajudou-me a desenvolver minhas posteriores “truculências”338. Eu notava que tinha essa paz, amava essa paz, gostava muito dela339.

* Também por esta razão eu sentia a alegria própria da criança inocente. E a alegria da criança inocente é superior, é capaz de experimentar um bem-estar que não vem do que ela come ou do que ela bebe, mas vem daquilo que ela é. A primeira demarcação entra a nocência e a inocência vem de que essa alegria, quando a criança mantém a sua inocência desde os primeiros passos, é superior à outra. Ela gosta de comer, ela gosta das coisas que as crianças gostam. Mas se ela vê, por exemplo, o pai agradar a mãe e a mãe agradar o pai, ou seus irmãozinhos se quererem bem, ela tem alegria de que, num certo plano, as coisas estejam bem ordenadas. Esta capacidade de se alegrar vai se desenvolvendo e vai constituindo para ela uma felicidade que podemos chamar de felicidade de situação. Esta felicidade de situação, na criança, explica, por exemplo, certos adormeceres suaves e certos sonos profundos que tendem a prolongar-se indefinidamente, mas que são a respiração da boa ordem, do bem-estar, e que fazem com que a criança não acorde de repente. Ela sai do sono e encosta na realidade como um barquinho que vem do mar e encosta na praia. Não bate na pedra. A criança errada já bate na pedra. Quando a pessoa tem este senso e o vê desenvolver-se, ela encontra um certo gênero de harmonia até entre esses bem-estares e os gostos mais triviais. Ela percebe uma harmonia entre o comer e isto, percebe uma harmonia entre o dormir e isto340.

* 338 Sobre o sentido que Dr. Plinio dava à palavra “truculência”, v. nota 47 da página 37. 339 MNF 11/5/84 340 MNF 12/10/94 172

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Por isso, a propósito de todas essas coisas, eu me sentia literalmente inundado de felicidade. Os prazeres me eram agradáveis. Os estudos, que representam para todo o mundo uma mancha de infortúnio dentro dessa história, não tinham ainda aparecido. Essas alegrias eram realçadas por aspectos de felicidade terrena. O que normalmente dá uma certa alegria a determinadas pessoas, a mim dava uma alegria imensa. Essas coisas me traziam alegria, davam-me felicidade, porque desde aquela primeira idade eu sempre tive gosto pelo conforto, pelos objetos bonitos, pelas coisas dignas. Eu me sentia realçado com isso. Os prazeres da alimentação, eu fui sempre sensibilíssimo a eles. Lembro-me – já o disse – que, quando irrompeu na São Paulinho o creme chantilly, uma Fraülein austríaca, Fraülein von Sigler, me iniciou no gosto da chamada Schlagsahne. Eu achava aquilo delicioso. Lembro-me de mim mesmo comendo dois doces, e, na culinária, pendor teutônico patente: Streuselkuchen e Krapfen. O gosto que eu tinha por Streuselkuchen e Krapfen era uma coisa enfática, turbulenta, fenomenal341.

* Lembro-me de coisas que me davam uma alegria inocente e sem “torcida”. Exemplo dessa alegria inocente e sem “torcida”: em certas semanas em que as minhas notas no Colégio São Luís subiam a ponto de contentar inteiramente Dona Lucilia, a Fraülein, que conhecia os meus gostos e jeitos a mais não poder, preparava uma coisa que me regalava: um jantar, quando o dia ainda estava claro, no terraço de casa. E mandava vir coisas de que eu gostava do Herr Max, o padeiro suíço, como uns copinhos que representavam taças de chopp recheadas de geleia. Em cima desses copinhos havia uma espécie de açúcar que imitava a espuma do chopp, e o copinho então transbordava. A criança comia o açúcar de cima, depois comia o copinho, e acabava comendo até a asa do copinho, que era toda feita do mesmo material. Vinha depois o Resinenkuchen, bolo feito com fermento de cerveja, canela, açúcar e cravo. E manteiga às torrentes, junto com a comida comum. Então eu degustava o ambiente ainda um pouco pastoril do bairro dos Campos Elíseos, com arvoredos enormes, jardins colossais, pássaros em quantidade, o que criava um ambiente quase bucólico.

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É preciso dizer que o meu lado gastronômico era desapegado. Pode parecer que não era, mas era342. Dava um gênero de fruição que não tinha um auge sensível. Era uma fruição, portanto uma sensibilidade, mas que não exigia de mim aquele deleite intemperante: ahhhhh! Era uma felicidade de situação. Era uma coisa francamente agradável, mas mais agradável pela situação, do que pelo pão e por mil outras coisas que poderia haver na mesa. Não era o ficar tenso, mas o contrário: era desfrutar daquele prazer na distensão, na distância, sentindo-me eu mesmo e sentindo o meu domínio sobre as coisas, e não o domínio das coisas sobre mim, o que constituía uma verdadeira felicidade. Há aqui, portanto, um estilo de vida baseado numa ideia de serenidade, de tranquilidade, mas sobretudo de recusa da ideia do super gozo, do super gáudio. Era a aceitação de uma felicidade indiscutivelmente sensível, mas uma felicidade que está muito mais na situação e na análise intelectiva da situação do que propriamente no gostoso343. Acabei percebendo que, na vida, havia uma série de prazeres tranquilos e uma série de outros prazeres intranquilos. O sabor do prazer intranquilo tem todas as atrações e as falácias da droga. E o indivíduo nervoso assim é um pré, pré, pré-drogado. Quer dizer, se ele vivesse duzentos anos, acabaria tomando droga, por esta ser uma coisa muito mais saborosa, muito mais deliciosa do que esse prazer tranquilo que parece enfadonho a quem se habitua aos prazeres da “torcida”. Na “torcida” são momentos de prazer inebriante, e o resto todo fica sem graça. Então, uma vida com ilhotas paradisíacas, no meio de mares sujos, revoltos e desagradáveis de atravessar. Eu então me punha a pergunta: o que proporciona melhor felicidade para o homem nesta terra? E a resposta era: prefiro um prazer tranquilo, despreocupado, de consciência tranquila, com deleites que não trazem consigo nenhuma forma de sofrimento. Resultam do esforço, mas não trazem nenhuma dor. E compreendi que há duas escolas de felicidade, duas escolas de prazer, duas escolas R-CR de organizar o prazer e o deleite na vida terrena. E, portanto, dois sistemas de educar. Procurei fazer de minha vida, não algo que evita a cruz e a batalha, mas, pelo contrário, as enfrenta de cheio, mantendo no entanto essa tranquilidade até dentro da cruz e dentro da batalha; chegando até o fundo do mar se for preciso, mas atravessando o que for, mas com essa tranquilidade e sem 342 CSN 2/2/85 343 EANS 13/4/76 174

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nada de “torcida”. Uma vida assim é muito melhor do que a vida habitual de “torcida”, que deixa a pessoa em pandarecos e nunca proporciona uma felicidade real344.

* Percebia muito o que esses prazeres da vida tinham de reto e de santo. E pela ordenação com que a graça punha isto na minha alma, a fonte principal de minha felicidade não era tal ou tal coisa, mas era notar que essas coisas no fundo eram santas. Debaixo de certo ponto de vista, isto me preparava para o tipo especial de vocação que temos, mas poderia escandalizar uma pessoa que tivesse um feitio de alma comum e julgasse que um menino muito chamado deveria ter o desejo de fazer sacrifícios, de flagelar-se etc. Não era o que se dava comigo. Por exemplo, na minha casa, no sábado se trocava a roupa de cama. E, quando chegava a hora de dormir, o deitar-me ali e sentir aquele frescor, a boa categoria da roupa de cama, o conforto, o bom, o reto e ordenado dessas coisas, a inocência que tudo isso tinha, dava-me gáudio. Deitar-me naquela roupa de cama e sentir um prazer físico era o corolário do prazer espiritual da pureza daquilo tudo. A pureza tinha, no fundo, como eixo, mamãe. Ela não era uma mãe qualquer, mas era a mãe arquetípica, no meu juízo, perfeita. Então, eu tinha um gosto físico, mas gosto físico mesmo. Eu me deitava, passava a mão debaixo do travesseiro, sentia aquela roupa de cama fresca, limpa, ligeiramente com um pouquinho de goma; depois, na fronha também, aquilo me dava um bem-estar físico dentro do qual eu sentia o gosto da virtude. O que me dava mais satisfação era exatamente ver que tudo aquilo tinha uma relação com a santidade. Assim era com cem outros gáudios. Eu vivia com muito gáudio, era uma criança muito alegre e de um gênio muito igual. Isso me dava algo que constituiu um horizonte de felicidade terrena, e que tinha como centro a felicidade de ser puro, de ter fé, de ser um bom menino; sentia a graça palpitar – eu não sabia que era graça, só hoje é que sei – e sentia o contato com ela, no fundo o contato com Deus, no regime da mística ordinária345. Sentia essa graça e me regozijava. 344 CSN 2/2/85 345 Por temor ao erro do “quietismo” – segundo o qual a alma deveria permanecer inativa e renunciar aos esforços da sua vontade para que Deus pudesse agir nela – os autores espirituais dos séculos XVIII e XIX insistiram no caráter ascético e purgativo das primeiras 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 175


Essa ordenação rumo a Deus era a fonte da minha alegria. A Ladainha lauretana chama Nossa Senhora de “Causa nostrae laetitiae” – “Causa de nossa alegria”. Era bem a causa da minha alegria346.

* Passando de meu estado de criança para a adolescência, eu notei que havia na vida prazeres calmos que não traziam consigo nenhuma inquietude, nenhuma aflição, e que por outro lado eram intensos. Esses prazeres calmos e intensos eram em geral os prazeres de alguém que não está em estado de pecado e que está se entretendo com algo que não é pecado. Daí os prazeres serem intensos. Ao longo de tudo isso, várias vezes me vinha ao espírito: “Cumpri bem todos os meus deveres, estou inteiramente em dia com a Lei de Deus, com o que quer minha mãe, com os imperativos da Fraülein, e sinto a limpeza de minha própria consciência. Sinto também uma especial leveza que parece tomar meu próprio corpo, e sinto a alegria de meu ser. Eu estou com mais bem-estar por causa disso do que se tivesse algum prazer que desse remorso contra mim”. Esse gênero de bem-estar joga algo na alma que é muito parecido com o papel de um sol numa paisagem. Bate o sol e o que acontece? Nenhum objeto muda de lugar, não se acrescenta nada ao que está na paisagem, não se tira nada do que estava nessa paisagem. Houve apenas este fato: baixou a luz.

etapas da vida espiritual, dando a entender que a via iluminativa e a via mística seriam separadas e posteriores à via purgativa e uma via reservada a almas muito avançadas na santidade e beneficiárias de graças extraordinárias. Esse desequilíbrio foi retificado por grandes autores espirituais do começo do século XX e notadamente o sulpiciano Adolfo Tanquerey, no seu famoso “Compêndio de Teologia Ascética e Mística”, e pelo dominicano Reginaldo Garrigou-Lagrange, na sua obra “As três idades da vida interior”, o quais insistiram no fato de que “a contemplação infusa, se considerada independentemente dos fenômenos místicos extraordinários que por vezes a acompanham, não é algo milagroso, anormal, mas resulta de duas causas: o cultivo do nosso organismo sobrenatural, sobre tudo os dons do Espírito Santo, e de uma graça operante que, também ela, não tem nada de milagroso” (Tanquerey, op. cit. n°1564). De onde resulta que “a via mística não é algo propriamente extraordinário, como as visões e as revelações, mas algo eminente na via normal da santidade” (Garrigou-Lagrange, op. cit. p. 27; o sublinhado é nosso). No vocabulário de Dr. Plinio, o termo “mística ordinária” significa essas graças iluminativas (“flashes”) com as quais o Espírito Santo favorece a maioria das almas, em todas as etapas da vida espiritual. 346 CSN 13/1/90 176

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O quadro de minha vida me parecia luminoso. E eu carregava a impressão, aliás fundada, de que esta era uma alegria que Deus punha em minha alma, para me premiar por estar andando bem. Era a alegria da virtude, feita de um misto de elementos terrenos e elementos celestes. Quais eram os elementos terrenos? A noção de que está tudo em ordem, não vai haver amolação, e o que acontecer comigo é moderadamente agradável, sem excitação, sem bagunça; não tem apreensões, não tem desordem, não tem “torcida”. Estou na minha calma. Mas havia o elemento celeste, que era essa graça que me fazia sentir uma alegria por cima desta, a qual não era senão um símbolo. Então, o símbolo e mais algo que sobrenaturalmente me falava do simbolizado, isto me dava a alegria da virtude347.

347 Chá PS 17/5/84 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 177


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2ª PARTE

A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL AS PRIMEIRAS MOÇÕES DA GRAÇA, FRUTO DO BATISMO Da inocência ao amor de Jesus Cristo

D

eu-se comigo, mas tenho a impressão de que também se dá com todos os que tenham sido batizados na Santa Igreja Católica, o seguinte. Quando a criança começa a ter os primeiros lampejos da luz da razão e olha para o mundo externo, ela discerne primeiramente os objetos materiais: o berço, a coberta, a bola, a mamadeira, umas coisas assim. Depois avança um pouco mais e identifica o pai, a mãe. Em certo momento não muito definido, olha para si e forma a ideia do “eu”. E nessa dupla operação de olhar para si mesmo e de perceber que existe, começa a se perguntar: “Aplicada a capacidade de conhecimento que eu tenho, não mais em relação ao mundo externo, mas ao mundo interno; e olhando-me, que impressão me dou de mim mesmo?” A criança evidentemente não formula a pergunta com esta precisão. Mas como ela vive na sua inocência batismal, não pecou nunca e está com todas as graças do batismo, ela sente muito comprazimento por si mesma. Não é um comprazimento vaidoso, é um comprazimento bom. A criança de algum modo sente como seria a presença de Deus nela; e nisto se sente boa, sente-se inocente, gosta de si mesma, e imagina que todo mundo é como ela. Em consequência, a criança olha com simpatia para a vida e para todo o mundo que está em torno dela, e aí aparece uma primeira noção da sua própria inocência. Neste processo, há uma fase em que a criança de um modo ou de outro vai conhecendo a Fé católica. É um crucifixo que o pai ou a mãe pôs no seu quarto de dormir, é um medalhão representando um anjinho e que está amarrado na cabeceira da sua cama, é a História Sagrada que a mãe 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 179


conta. Essas coisas todas vão pondo na criança uma certa noção do que seja a Igreja Católica. Isto se dá sobretudo – ao menos foi assim para mim – com a face sacratíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, o rosto e o semblante d’Ele, a fisionomia moral expressa tão bem pela sua fisionomia física. O rosto d’Ele é a imagem perfeita e fidelíssima de sua santidade infinita. A criança olha e fica pasma. Aquilo produz nela uma atração e abre em sua alma uma espécie de matriz, superior ao que a alma poderia conceber por si mesma se não tivesse conhecido a Ele. Nosso Senhor Jesus Cristo é estritamente inimaginável, mas quando se o vê, compreende-se o que Ele foi. Comigo sua compreensão veio de uma conjugação da sua fisionomia física e do Coração d’Ele, sendo que ambos eram expressões de uma fisionomia moral, quer dizer, uma compreensão de como era a santidade d’Ele, de como era a virtude d’Ele, de como era a sua bondade: um misto de seriedade e de majestade infinita, mas com uma capacidade de considerar o mais minúsculo, o menorzinho, dando importância a esse menorzinho e tratando-o com uma bondade, com uma afabilidade incríveis, mas ao mesmo tempo tomando esse minúsculo inteiramente a sério. Aquela mesma pergunta que Ele fez três vezes a São Pedro: “Pedro, tu me amas?”, Ele, por assim dizer, a faz para a criancinha. Na fisionomia d’Ele há qualquer coisa que leva a criança a perguntar-se se o ama. É alguma coisa que procede d’Ele e que pergunta mais ou menos o seguinte: “Meu filho, tu me queres bem?” 348

* Quando em pequeno eu ia à igreja do Coração de Jesus, em que as minhas primeiras noções de perfeição espiritual se formavam, elas se formavam em presença da figura do Sagrado Coração de Jesus, vendo n’Ele a própria perfeição. Por exemplo, Ele chorando, vertendo sangue diante do pecador, mas ao mesmo tempo o olhando com bondade, tendo um gosto de ainda encontrar, no fundo da alma desse pecador, alguma coisa pela qual este pode ser chamado, e fazendo esse chamado com paciência, com alegria, com boa vontade, de maneira a atraí-lo349. Nessa adoração a Nosso Senhor Jesus Cristo, o que preponderava era um abrasamento no conhecimento do verum, um amor entusiasmado e comovido pelo bonum e um deslumbramento pelo pulchrum: Ele, como 348 Chá SB 4/7/88 349 MNF 17/5/90 180

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é veraz! Como é verdadeiramente o Homem-Deus! Como n’Ele habitam, na unidade de sua Pessoa, duas naturezas, a humana e a divina! E como tudo isto é reversível, ordenado, perfeito! E, sobretudo, o que é Deus ali dentro, que coisa fantástica! De outro lado, que natureza humana perfeitíssima! E como o encontro da natureza humana com a natureza divina é admirável! O verum, aqui, está não só em que isto é assim, mas em como tudo é coerente dentro disso. É lógico, deve ser assim. E, portanto, um entusiasmo da verdade possuída. Como é esse entusiasmo? Não é um entusiasmo exclusivamente silogístico: “Eu raciocinei e cheguei à conclusão”. É um ato de Fé que em mim precedeu de muito esse raciocínio. É uma espécie de evidência algo mística dada pela Fé, e que o raciocínio apologético vem calçar depois, mas não suprime; vem servir a esta ação meio mística dada pela Fé. Ouço pessoas falarem na firmeza das minhas convicções. Tenho vontade de sorrir e dizer: “Você não entende nada. Fale da firmeza da minha Fé. Porque a partir da firmeza da minha Fé e do que eu deduzo da Fé é que me vem muita certeza. No que eu não deduzo, não tenho essa certeza. Agora, disso que eu deduzo da Fé, eu tenho certeza. Ali eu piso com sapato de ferro, porque não tenho medo de peso nenhum”. Por outro lado, nasce também disso o tranchant com que eu corto: uma coisa é má, outra coisa é boa. A boa devemos praticar, favorecer, estimular, louvar e ser dela inteiramente. A má devemos execrar, devemos detestar; devemos viver no reconhecimento constante do mal que é, e desconfiado desse mal, numa atitude a mais policialesca que se possa imaginar contra esse mal, pegando-o e triturando-o implacavelmente, numa luta de todo momento e a todo instante, e só tendo sossego quando descobre, pega e agarra este mal. Agora, o que dizer do pulchrum? Como o pulchrum é o terminal do trajeto, nele se vê o verum e o bonum e acaba-se proferindo a palavra pulchrum. Mas essa palavra pulchrum não exclui o verum e o bonum, ela os contém. E contém com a luz própria a cada coisa. Então, o pulchrum é o esplendor da verdade e do bem, com mais algo. Porque não é dizer que ele não exista, ele é ele; mas que me leva a dizer, numa espécie de ousadia de pensamento, que talvez houvesse entre o verum, o bonum e o pulchrum uma relação parecida com o reflexo do Padre, do Filho e do Divino Espírito Santo350.

350 MNF 12/4/89 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 181


* Os episódios do Evangelho pelos quais eu sinto mais atração não são aqueles em que Nosso Senhor aparece tratando com os homens, mas é quando Ele se isola para tratar com Deus351. Para mim, apesar de o Evangelho ser uma montanha de sublimidades, as partes mais sublimes são as orações que Ele, enquanto orante, dirige ao Padre Eterno. Quando Ele diz “Meu Pai”, Ele diz com um jeito, com uma força, que temos a impressão de que Ele estava – e estava mesmo – comunicando-se diretamente com o Padre Eterno, com toda a Santíssima Trindade, da qual Ele, enquanto Deus, é membro. E havia, portanto, nessas orações, uma sublimidade muito grande. Eram orações divinas as d’Ele352. Falando com o Padre Eterno, Ele comunica uma elevação que não tem limites; nós não podemos senão formar uma vaga ideia do que é a elevação dessa correlação d’Ele com o Padre Eterno, e naturalmente também com o Divino Espírito Santo353. O pórtico de entrada da vida espiritual de Dr. Plinio: a devoção ao Sagrado Coração de Jesus ensinada por Dona Lucilia A primeira imagem do Coração de Jesus que eu conheci é a que está no oratório do quarto de dormir de Dona Lucilia. É uma imagem francesa de boa qualidade, muito composta, muito fina, muito nobre, muito delicada, que representa Nosso Senhor Jesus Cristo apontando para o próprio Coração354. Observando-a, eu formava na minha cabeça de criança a ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo era exatamente assim, sem tirar nem pôr. Portanto, se eu quisesse fazer uma ideia d’Ele, deveria certificar-me de que Ele era exatamente como estava representado naquela imagem, e que a mentalidade d’Ele era precisamente a mentalidade que aquela imagem quis representar355. E dizia para mim mesmo:

351 Chá SRM 15/6/93 352 Chá PS 23/10/91 353 Chá PS 1/12/93 354 Chá SRM 6/1/94 355 Conversa 1/1/93 182

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– Mas que coisa extraordinária! Como Jesus é fabuloso! Não se imagina um homem assim; não há imaginação que o imagine. Ele existiu e por isso o pintam, e a tradição guardou a fisionomia d’Ele tal como Ele era. Homem nenhum seria capaz de imaginar alguém como Ele. Ele é perfeito, basta olhar o jeito d’Ele, a santidade e a beleza que tem, a bondade e a disposição de ter pena de mim, de me ajudar na minha luta”356. Nascia assim a noção de que aquela figura era o tipo humano perfeito, e que a perfeição da natureza humana se encontrava, ali, elevada a um grau superior a si mesma, por causa da presença da natureza divina, e que a perfeição de todas as coisas se realizava na medida em que elas eram afins com aquilo357. Muito pequeno ainda, eu sabia que Ele era Deus. E sabia que Ele era homem. A noção teológica de Homem-Deus eu naturalmente não tinha, era brumosa para mim, eu vim a conhecer depois. Mas eu sabia que Ele era homem e era Deus, e não me inquietava. Isto me bastava inteiramente para as minhas cogitações de menino358.

* Tendo eu a notícia, como a tinha toda criança, de que Nosso Senhor Jesus Cristo existia, e ouvindo as descrições de como Ele era, qual foi a minha primeira cognição e como foi o meu primeiro ato de adoração a Ele? O que minha alma sentia? As minhas primeiras considerações sobre Nosso Senhor Jesus Cristo nasceram da consideração da pessoa d’Ele através do que mamãe contava, e igualmente da contemplação das imagens d’Ele que havia em mais de um quarto de minha casa. Também contribuiu para isto um livrinho infantil de religião que eu possuía, e outras coisas assim. Todas essas considerações vinham de permeio com as verdades do Credo ensinadas por mamãe. Não que ela falasse diretamente do Credo, mas o que ela dizia tinha como pressuposto essas verdades do Credo e o ato de Fé, que era o ponto de partida dessa formação. Mamãe não levantava, nem de longe, problemas como: “Eu vou lhe provar que a Igreja Católica é verdadeira”. Porque ela tinha a ideia de que, contando-se simplesmente as coisas da religião, essas coisas já provavam que Igreja era a verdadeira. E para a criança é assim mesmo. 356 Chá SRM 6/1/94 357 Conversa 21/1/93 358 Despacho 25/1/93 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 183


Assim, eu possuía a noção evidente de que Nosso Senhor era o Homem-Deus. E a partir desta convicção, eu desenvolvia uma análise psicológica de Nosso Senhor, e discernia na Pessoa divina d’Ele uma elevação de cogitações e uma elevação de vias absolutamente excelsas. Aos meus olhos, Ele se situava desde logo numa altura inacessível ao homem, e sua natureza humana tocava nesse mais alto. De tal maneira que, olhando para Ele enquanto Homem, era-me possível compreender o que, na pessoa humana d’Ele, resplandecia de divino, e que essa era uma elevação própria a Deus. Eu considerava a humanidade d’Ele como em atitude permanente de contemplação e adoração da sua própria divindade, e das outras duas Pessoas da Santíssima Trindade. E que, a partir dessa elevação, Ele mantinha contato com todas as almas, pela noção de que somente quem se situa nessa altura consegue se pôr acima das limitações pela qual um Plinio, por exemplo, não teria a menor possibilidade de manter contato com as outras almas359. Nosso Senhor Jesus Cristo conhece todas as almas, sabe o que acontece com elas e intervém dentro delas justamente por causa dessa elevação que há na natureza d’Ele, e que é, de jure e ex natura rerum – ou seja, por direito e pela própria natureza das coisas – tão superior, que Ele tem direito a esse contato. Ele está, portanto, dedilhando continuamente todas as almas que foram, que são e que virão. Naturalmente, em mim todas essas ideias eram muito implícitas. Não imaginem, portanto, um menino de 4 anos fazendo pedantemente essas digressões. Eu me perguntava de que maneira se dava esse contato d’Ele com as almas. Essa era uma resposta que eu só conseguiria obter observando, não como esse contato se dava com os outros, mas como se dava em mim. Percebia que, pelo simples fato de contemplar a grandeza do ser d’Ele e do seu cogitar, eu me sentia algum tanto elevado acima de mim mesmo, o que fazia nascer uma certa luz no cogitar e no ver que me extasiava, por sentir algo em mim feito para olhar mais além do que eu. Desta forma, eu como que saía da minha vida de menino, e observava em mim algo que possibilitava ver mais do que eu, e que de fato era mais do que eu. Ficava-me a impressão de que, assim, escapava e fugia do bom para o ótimo, o que me punha na ponta dos pés. E isto me alegrava. 359 Quando Dr. Plinio fala de “contato de alma”, se refere evidentemente ao sentido comum da relação de convívio das almas entre si, e da relação existente entre Criador e criatura, a qual se opera através da infusão das graças ordinárias, ou mesmo extraordinárias que Deus concede às almas, e não no sentido de aparições ou de outros fenômenos da mística extraordinária. 184

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Havia depois outro ponto: ao mesmo tempo em que contemplava essa vida que há n’Ele, que é um pensar, um querer e um sentir, Ele como que me fazia tocar com as mãos no pensar, no querer e no sentir d´Ele. E isto me comunicava, com a elevação própria dessa percepção, uma retidão e uma santidade do pensar, do querer e do sentir, que era como um remédio delicioso que eu bebesse, e que me agradava sobremaneira, e ao mesmo tempo me corrigia. Então eu compreendia que devia ser assim por uma dupla ação: primeiro, porque via como Ele era e O adorava; em segundo lugar, porque, adorando-O, via que coisas tortas em mim, que eu nem percebia que eram tortas, se endireitavam. E com isto Ele me curava de coisas que eu não sabia que eram doentes360.

* Na igreja do Sagrado Coração de Jesus havia um ambiente que correspondia inteiramente às aspirações que eu tinha, de contato e de convívio com almas que me dessem, em primeiro lugar, uma grandíssima elevação, uma elevação tão grande que o olhar humano quase não chegasse a medir até o fim. Elevação do quê? Elevação de alma, elevação de sentimento, elevação de maneiras, elevação de convívio, a posse de uma grandeza que eu encontro representada nesta jaculatória da ladainha do Sagrado Coração de Jesus: “Cor Jesu, majestatis infinitae, miserere nobis”. Quer dizer, eu imaginava o Coração d’Ele – tomando a palavra coração não só como o órgão físico, mas também como mentalidade – portanto como a santidade d’Ele –, infinitamente majestoso, de tal maneira alto que o espírito humano não conseguia atingir, e superando todas as majestades concebíveis. De outro lado, com o direito e o poder de dominar absolutamente tudo, com o domínio absoluto de tudo, e colocando tudo em ordem segundo essa elevação. Ao mesmo tempo, eu o via infinitamente seguro de si, infinitamente sereno, ordenando tudo segundo uma ordem que é o reflexo de si próprio, amando cada coisa na proporção e na medida que lhe é própria, e sendo amado por cada coisa também na medida e na proporção que lhe é própria, o que supõe uma infinita seriedade. Então, uma doçura infinita em fazer o seu amor repousar sobre tudo o que existe. E repousar com uma torrencialidade que até desconcerta, que abarca até o passarinho ou o fio de cabelo que cai da cabeça, e que ninguém nota, nem o homem que está junto da árvore de onde cai o passarinho, nem 360 MNF 12/4/89 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 185


o dono do fio de cabelo que cai, mas que Ele conhece por inteiro e ama aquilo de modo perfeito como deve ser amado. Mas ama de um amor que envolve completamente, que penetra inteiramente, que faz todo o bem cabível. E que teria horror a qualquer perturbação nessa ordem que Ele criou. Via n’Ele, portanto, um amor cheio de intransigência, mas também cheio de perdão. Daí Nosso Senhor esbofeteado, flagelado, tratado do jeito que nós sabemos e não perdendo a paciência nem uma vez sequer. Bondoso, patiens et multae misericordiae – paciente, quer dizer, capaz de sofrer – e de muita misericórdia. Mas, no fundo, tudo capitulado pela majestade divina, que a bem dizer é, debaixo de certo ponto de vista – a expressão não é própria –, a qualité maîtresse que ordena tudo isso. Cada criatura, em vista disto, procura nos seres com quem tem contato aquilo que pode ser ordenável para o Sagrado Coração de Jesus, ou no que constitui a cor-Iesucidade de cada coisa, e desejando ver cada coisa assim, e não sossegando a não ser na medida em que cada coisa é assim, e tendo nisto o repouso de sua alma e até de seus nervos361.

* E assim fui tomando conhecimento mais exato daquilo que era um pórtico, uma entrada de uma infinitude de perfeições que adornam e enchem a alma de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mais ainda: enquanto Deus, Ele não tem apenas aquelas perfeições, mas Ele é aquelas perfeições. Então, naturalmente, de um modo gradual, sem que eu possa fixar uma data, sem que possa determinar nenhum momento especialmente marcante, fui gradualmente adorando cada vez mais o Sagrado Coração de Jesus, até o momento em que essa adoração se tornou um ponto fixo. Esse ponto fixo foi aquele que me determinou, no silêncio de minha alma, os sucessivos sacrifícios e sucessivas entregas minhas a Ele. Isto, de lá para cá, espero que venha continuando a se desenvolver. Nós devemos cada vez mais adorá-Lo, amá-Lo e ser d’Ele. Mas sempre com certa discrição, certa nota de luz de abajur e não de luz resplandecente como um sol, e que é o modo como eu me habituei desde pequeno a vê-lo e a considerar as suas perfeições362.

361 MNF 15/9/89 362 Chá PS 28/6/95 186

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O crescente amor à Igreja Católica Na Igreja Católica, entrei com o meu batismo. Não me valeria ter nascido se não fosse para ser batizado; não me valeria a pena ter vivido, não me valeria a pena nada se não fosse para a Igreja, com a Igreja, na Igreja, pela Igreja. Desde quando me lembro da minha vida espiritual como uma coisa organizada, refletida, pensada, está presente este amor à Santa Igreja Católica, a fortaleza da verdade, do bem e da santidade na terra, e a fortaleza do alto da qual o mal recebe todos os tiros, toda a punição que ele deve receber, e que eu já lamentava naqueles tempos longínquos que fosse muito menor do que quereria que fosse363.

* Conheci a Igreja quando me dei conta de que existia uma realidade chamada Igreja, mas uma realidade dentro da qual eu estava, tal como uma criança que morasse em uma casa com muitas salas e em certo momento uma delas lhe chamasse mais a atenção. E então passasse a analisá-la. Dessa criança pode-se dizer, em certo sentido, que ela só conheceu aquela sala a partir daquele momento. Antes ela corria por ali, mas sem dar maior atenção. Quando ela analisou a sala, passou a considerá-la como sendo “a” sala da casa dela. Foi assim que conheci a Igreja, quer dizer, já como batizado e filho d’Ela. Quase se poderia dizer que, tal como ia gradualmente conhecendo mamãe, assim também abri os olhos para a Igreja. Eu já possuía certos dados primeiros que tinham antecedido o momento em que a conheci. Eram dados, eram graças que em certo momento se imbricaram para formar um todo. Compreendi então que aquela coisa chamada Igreja era o centro e o foco de profundidade, de irradiação de tudo o mais. Essa cognição assim da Igreja veio um tempo de antes de eu ser aluno do Colégio São Luís – portanto no meu tempo de inocência despreocupada, não militante364.

* Percebia, até nas menores coisas, a santidade da Igreja, a perfeição d’Ela. 363 Chá PS 19/11/91 364 CSN 3/3/90 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 187


Quando entrava em alguma igreja, para mim a atmosfera se modificava completamente: sentia a presença de Nosso Senhor, e que aquela igreja era a casa d’Ele. Era onde Ele mandava, e era como se os anjos estivessem esvoaçando ali e irrigando – com as graças que lhes corriam ao longo das asas, das túnicas, do olhar, dos cabelos – todo o ambiente, com eflúvios divinos. Isso era para mim uma coisa totalmente evidente, que não gerava dúvida nenhuma. Eram graças que, com o favor de Nossa Senhora, eu conservo365. Sou levado a pensar, sem ter certeza, que o batismo de si dá essa união com a Igreja. E que, se uma pessoa corresponder à graça batismal, tem isto. No batismo as graças são habitualmente muito mais abundantes do que na confissão. Não nego que a minha atenção tenha sido muito especialmente atraída pela graça para essa harmonia, e que outros prestem muito menos atenção nessa harmonia. Não nego, também, que Nossa Senhora possa ter tido a condescendência de me dar uma graça maior do que a outras crianças. Mas o que quero afirmar é que, de si, uma pessoa inteiramente fiel à graça do batismo tem isso. Notem que pela graça do batismo nós nos tornamos membros do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não éramos antes. É uma ação de um categórico, de uma riqueza e de uma força extraordinária. Acho que o estado de união que eu tinha então com o Bem, com a Igreja, era um estado de união – radicalmente falando, ou seja, em sua raiz – igual ao de hoje366.

* Em virtude da inocência, todas as graças da mística ordinária eram por mim avidamente aproveitadas e eram um sustentáculo muito grande para a Fé. Porque, seja como for, o apalpar a coisa dá uma forma de certeza próxima à evidência. Imaginem que, desde a Ascensão até hoje, os vivos nunca tivessem visto nada de sobrenatural. A Fé tomaria um baque com isso. A ideia de que nós não vimos, mas que outros viram, dá certa solidez. Mas se nunca ninguém tivesse visto, ficava ou não ficava, à la São Tomé, uma dificuldade? Então, a Fé é um pouco essa inocência, e um pouco o reservatório que toma essa inocência. Donde o meu enlevo pela religião católica, pela Igreja Católica, por causa desse misto da Fé e desses reluzimentos da inocência. 365 Chá 11/11/94 366 CSN 11/10/80 188

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Das cerimônias da Igreja eu gostava totalmente: o cantochão, o canto polifônico, o vagar com que as pessoas se deslocavam no presbitério, as reverências que faziam, os gestos. Aquilo tudo era a precisa expressão de como eu imaginava a mentalidade católica apostólica romana. O báculo, com aquela volta pensativa. A mitra, com aquela majestade maior do que a de uma coroa; ainda mais as mitras como usavam antes de aparecerem os erros progressistas: eram mitras altas, bonitas, ornavam a cabeça magnificamente. As formas e as cores éclatantes dos paramentos, as cerimônias de Semana Santa, do Natal e de toda a liturgia encantavam-me totalmente, porque nelas eu não encontrava outra coisa senão a Igreja orante, pensante, falante, atuante, numa pureza extraordinária de coisas e de linhas367.

* O conhecer a Igreja encheu-me de entusiasmo. Mais do que um panorama, mais do que uma flor, mil vezes mais do que qualquer prato de comida ou cama gostosa, a Igreja foi me falando à alma. A igreja do Sagrado Coração que eu frequentava em menino, parecia-me um santuário magnífico. Ela tinha uma harmonia, uma composição de cores, de formas; ela me parecia tão digna, tão séria, tão recatada; ela me parecia a expressão da própria santidade. Tocava o sino, entrava o padre, começava a Missa. Sabia mais ou menos o que era a Missa. Era muito pequeno, mas meu curso de Catecismo ensinava-me. Eu observava os paramentos, os cânticos, até chegar a hora em que se fazia silêncio, a hora da Consagração. Falava-me à alma sobretudo a hora da elevação do cálice: “Que bonito isto! Que coisa!” Eu começava a notar que a Igreja tinha em tudo, nos ensinamentos, na doutrina que eu ia aprendendo, nas vidas de santos, uma uniformidade maravilhosa. Parecia-me haver dentro daquela igreja uma correlação entre a forma da pia de água benta e o espírito de tal santo, o episódio da vida de tal outro, o colorido de tal janela ou de tal som de órgão. Parecia-me que tudo vinha de um Espírito infinitamente superior, do qual tudo isto procedia, e que quase se mostrava e se deixava ver misteriosamente aqui, lá e acolá por aqueles símbolos, por aquela ação interna dentro de minha alma, e que me deixava cheio de veneração: era a Santa Igreja Católica368.

367 Chá PS 14/10/80 368 SD 12/5/84 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 189


E dizia de mim para comigo: “Há aqui um conjunto de sublimidades perfeitas, que é o tom de tudo o que existe. A verdade total está nisto. Este conjunto reúne em si todas as qualidades e contém uma dignidade insondável, inimaginável, ao lado de uma carícia inefável, de uma fortaleza sem nome, mas de uma pacificidade, uma paz, um amor à paz extraordinários!”, tudo contido nesse primeiro momento em que se olha a Igreja e se tem a impressão de que a Igreja nos olha. É claro que a palavra “olhar” vai aqui entre aspas, é uma metáfora. Trata-se, isto sim, de um discernimento primeiro. Mas hoje, lembrando-me daquilo tudo, recordo-me de que tinha a impressão que Ela me olhava, e que eu sentia o olhar d’Ela pairando sobre mim, analisando este menino que chegava – e estava no direito d’Ela, se Ela fosse redutível a uma pessoa –, como quem pergunta: “O que é que vai ser este: uma via de júbilos ou uma via de dores? De qualquer maneira vou me dar inteira a ele”. E eu, embaixo, não cabendo em mim de desejo de entrega, de entusiasmo, de fervor369.

* Lembro-me especialmente da igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde a piedade católica se apresentou para mim reluzente de graças da mística ordinária370. Observando-a, veio-me a ideia de uma fisionomia moral da Igreja que era harmônica com o que eu via em mamãe – que representava, para mim, “a” católica –, e com o que eu via, por outro lado, na ordem dos jesuítas. O que eles contavam de Santo Inácio me deixava para lá de extasiado. Tudo isto era tão coerente, tão harmônico, que formava aos meus olhos uma fisionomia moral. Essa fisionomia moral imprimia em mim a certeza de que aquela era a santidade perfeita, e em Nosso Senhor Jesus Cristo a santidade absoluta. Vinha-me também a ideia de que, olhando para aqueles modelos, eu tinha o modelo absoluto, perfeito, eterno, e que não se tratava mais de pesquisar e procurar, porque a pesquisa estava feita, ela era inútil, pois a verdade me entrava olhos a dentro como a luz do sol da manhã quando se acorda. Então, tratava-se de ser fiel, de cumprir o dever precisamente à vista do que foi dito. Daí veio, com o favor de Nossa Senhora, uma Fé muito sólida e a convicção de que o modelo era este, e o que eu precisava seguir era isto, 369 CSN 18/7/81 370 MNF 15/9/89 190

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e que não havia outra coisa a fazer. Dê no que der, aconteça o que acontecer, arrebente como arrebentar, ou tenha eu o sucesso que tiver, nada tem importância, a não ser me tornar conforme a Nosso Senhor Jesus Cristo. Da firmeza dessa convicção decorreu, pelo favor de Nossa Senhora, a minha perseverança na Fé católica, apesar de toda a confusão dentro da Igreja contemporaneamente. É uma confusão que não se pode imaginar maior. Mas isto não me perturba, por saber que, na medida em que é desordem e é caos, nessa medida isto não pode ser imputado à Santa Igreja, porque Ela é por excelência aquela Igreja perfeita, como diz a Escritura, sem mancha nem ruga, sem idade, eterna, acima do tempo, e que se trata de conhecer e de amar cada vez mais e de servir sem limites371.

* Outra coisa que produzia em mim um efeito profundo era ir com Dona Lucilia à Missa nessa mesma igreja do Sagrado Coração de Jesus. Eu me sentava ao lado dela e tinha a impressão de que, ali, ela abstraía da minha existência e só pensava em Deus. Ela rezava suas orações no Goffiné, que era um livro de Missa muito apreciado naquele tempo. E quando ela rezava, eu via que aquela influência de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre ela crescia, e fazia com que a alma dela ficasse ainda mais bela, mais ordenada, mais delicada. E a sentia mais mãe, e eu mais filho dela. Eu a admirava mais quando notava aquela presença de Nosso Senhor nela. Tudo isto levou-me muito cedo a fazer da verdade, da santidade e da beleza um trio no meu espírito, o qual eu procurava unir de todas as maneiras, orientado exclusivamente pela Igreja Católica, minha Mãe infalível que tinha a promessa de Deus de que nunca erraria, e, portanto, sempre me guiaria para o bem. E era a esta minha Mãe, a Santa Igreja Católica, à qual minha mãe terrena devia o fato de eu a querer tanto assim; porque, se eu a queria tão bem, era porque notava que ela era muito católica. Tudo isto junto levou-me à procura contínua de um maravilhoso católico, de um maravilhoso bem ordenado, no qual se encontrava a santidade com a verdade, ou seja, o verum, o bonum, a santidade e o pulchrum, coordenados e de alto grau, e formando o maravilhoso372.

* 371 Chá SB 4/7/88 372 Chá SRM 6/1/94 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 191


Veio em seguida a Primeira Comunhão, as graças da minha Primeira Comunhão; e depois o conhecimento mais exato da doutrina católica, e de tudo quanto veio antes e depois de Nosso Senhor Jesus Cristo, em cursos regulares como o do Catecismo, da História Sagrada. Comecei então a observar a Igreja. E, na Igreja, bem como em tudo quanto eu sabia do passado e do presente d’Ela, e no que estava profetizado para o seu futuro, eu via Nosso Senhor Jesus Cristo que habitava n’Ela e se fazia sentir de um modo todo especial, como um sol que não para de brilhar, por uma ação que eu não sabia ainda chamar de graça. Vinha então a ideia complementar, a partir do convívio com os meus, de uma grande instituição que, maior do que o ambiente temporal em que eu vivia, era uma fonte dessa ação de Cristo sobre os homens. E vinha também, paralelamente, a ideia de que meu ambiente era assim pelo fato de aderir a essa fonte. Ou seja, era um ambiente católico e, em última análise, se Nosso Senhor Jesus Cristo tinha este nexo com a minha alma, é porque eu era católico. Enfim, eu compreendia que era dentro da concha sagrada da Igreja que podíamos encontrar Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas encontrá-lo, não no sentido de que Ele estivesse fisicamente num edifício, mas no sentido de que Ele ilumina e transfigura tudo por dentro e em volta. É como numa igreja católica: se até o solar da porta é uma coisa santa, é porque alguma coisa da ação d’Ele está ali presente. Quantas e quantas vezes eu tive vontade, antes de entrar numa igreja, de ajoelhar e oscular o solar da porta: “Aqui começa a casa d’Ele”. Certa vez vi uma pinturinha que dizia: “Haec est porta coeli”. Eu exclamei: “Mas é claro! A porta do Céu é esta!” 373.

* A qualidade que mais prezo em mim mesmo é de ser filho da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. O que mais admiro nas pessoas é a coerência na fé católica374. O itinerário desde os movimentos incipientes e inconscientes de piedade, até a comunhão frequente As minhas reflexões eram sempre em função de um tema religioso. Era a época em que eu ainda rezava pouco, infelizmente. Fazia apenas 373 MNF 12/4/89 374 Entrevista para Rádio Uruguaiana, 21/6/90 192

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umas orações de manhã, que nem me lembro quais eram, e depois algumas orações à noite. Depois, durante o dia inteiro, não rezava. Mas a minha reflexão era religiosa, e a Igreja estava no centro de minhas cogitações muito amorosamente, com muita veneração375.

* No tempo em que fui formando minhas primeiras noções sobre doutrina católica, aprendidas no Catecismo para criança, mas também na atmosfera geral católica que flutuava no ar pela cidade naquele tempo, havia uma ideia muito definida, muito categórica, de que o colóquio com um ser que tinha morrido e que estava no outro mundo, e máxime com um que tinha ressuscitado e que era o próprio Homem-Deus, era uma coisa própria a santos que estavam em alto grau de fazer milagres, de ter levitação, de ter o dom de ubiquidade e outras coisas assim. Como eu me sentia a léguas disso, nem me passava pela cabeça de ter propriamente colóquios com o Coração de Jesus. Eu falava com Ele, dizia coisas a Ele, mas não esperava respostas. Ele pairava no mais alto dos Céus, sentado à direita de Deus Padre, e Deus Ele mesmo. De maneira que seria uma raridade alguma voz minha chegar aos ouvidos humano-divinos d’Ele. Eu rezava, e como Ele estava atento para o comum dos homens, inclusive para os mais vulgares, julgava que Ele olhava também para mim. Portanto, debaixo de certo ponto de vista, achava que esse olhar dirigido a mim era muito pouco individualizado. No meio da multidão, há também um Plinio e a esse Plinio Ele se digna olhar, e de vez em quando permite que a voz do Plinio chegue até Ele, como a de milhões de outros indivíduos que existem na terra. Quando ia rezar para Ele, punha-me diante da sua imagem na igreja do Sagrado Coração de Jesus, ou daquela pintura que há no teto, e começava a fazer a análise psicológica d’Ele. E pensava: – Dado que essa imagem coincide perfeitamente com o que a Igreja Católica ensina a respeito d’Ele, eu, olhando para a sua fisionomia, para a atitude do corpo, para o gesto, para as mãos, para o traje, para o cabelo, formo uma ideia global a respeito d’Ele que poderei tornar mais precisa e mais rica em contornos se eu examinar cada ponto e sobretudo seus divinos olhos e seu Sagrado Coração. Eu me colocava diante d’Ele e ia fazendo a análise. Era como se eu dissesse: “Eu Vos adoro, porque Vós sois isto e tendes aquilo”.

375 SD 10/12/83 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 193


Mas eu não dava àquilo uma forma de interlocução. Dessa análise se evolava naturalmente a adoração. Quer dizer, ao analisar, eu formava a mais alta das altíssimas ideias que minha mente de criança podia formar a respeito d’Ele. E daí partia naturalmente um ato de adoração, um ato de reparação, um ato de ação de graças e um ato de petição. Os atos não se sucediam nessa fila, mas conforme me passava pela cabeça fazer a partir desta análise. Eu tinha a impressão de que a imagem d’Ele – mas a imagem física, material, que estava sobre o altar – me olhava, não com os olhos de vidro de uma imagem sem vida, mas que Ele, por alguma ação, comunicava a essa imagem certa expressão. Não sabia como definir, nem me preocupava em definir, porque eu não tinha certeza de que isto não fosse uma ilusão de minha parte. Pois, se a distância entre mim e Ele era tão grande, como Ele chegaria a fazer uma coisa dessas em meu favor? Mas tinha a impressão de que a imagem me olhava e fazia comigo o que eu estava fazendo com ela. Quer dizer, eu, como mera criatura humana, fazia a análise. E Ele, olhando-me, como que me conferia: – Aqui está o tal Plinio, o Plinio número um milhão, quinhentos trilhões, de quem eu gosto; e me comprazo em apreciar tal coisa, em apreciar tal outra, e de quem Eu espero tal outra coisa ainda. No momento, por minha bondade, não vou olhar para os defeitos dele. Olho para as qualidades e vejo alguma coisa de um menininho bonzinho para o qual Eu me digno olhar com compaixão e com a intenção de beneficiá-lo. No fundo era um colóquio, mas não tinha forma de colóquio, como por exemplo aqueles de Santa Teresa, a qual falava com Nosso Senhor Jesus Cristo e Ele falava com ela. Quantos fatos assim se deram na vida dos santos. Mas não era isto. Não era um colóquio, mas tinha uma forma coloquial, tinha um quê de colóquio, que podia durar bastante tempo. Havia naquele tempo uma ideia – que estava na atmosfera religiosa de São Paulo, mas também se encontrava muito espalhada pelo resto do mundo – de que rezar era dizer o Padre-Nosso, a Ave-Maria, o Glória ao Padre. E que isto que eu fazia era perda de tempo, era fantasia. Ora, o contrário dessa ideia é que é verdade. Esta é a oração melhor. Mas eu não sabia disto376.

* Como se desenvolveu em mim a piedade eucarística? 376 Chá PS 1/2/95 194

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Eu fui, sob certo ponto de vista, muito bem preparado para a minha Primeira Comunhão. Debaixo de outro ponto de vista, não ouso dizer que não, mas também não ouso dizer que sim, porque, lendo depois a história de algumas almas admiráveis, a vida de santos etc., notei infelizmente uma diferença muito grande com o modo pelo qual as minhas aulas de Catecismo se desenvolveram. Eu tinha a minha atenção muito posta naquilo que, mais tarde, vim a chamar as graças de minha inocência, as quais eu observava em mim. Essa inocência tinha um conteúdo fundamentalmente religioso, embora naquela época eu não saberia definir isto. Via, na ponta das cogitações sugeridas pela inocência, aqueles esplendores todos, e me sentia unido à Igreja Católica, porque a Igreja Católica me parecia o sol que irradiava esses esplendores. E percebia que esses esplendores existiam na minha alma pelo fato de eu ser da Igreja Católica, e que se eu me afastasse d’Ela, esses esplendores ruiriam. Por aí pode-se imaginar como eu olhava para a Igreja. De outro lado, a minha atenção era muito chamada para a necessidade da fidelidade a esses esplendores, mas eu não sabia dizer que esses esplendores eram uma graça. Isto porque o próprio conceito de graça como uma participação criada na vida sobrenatural incriada de Deus era muito vago para mim, pois insistia-se pouco sobre este ponto. Resultado é que eu tinha a impressão de que tudo isso era uma elucubração do espírito, era uma apetência de minha alma. Posso dizer, na sinceridade do meu espírito, que não era levado a ficar vaidoso com isto nem um pouco. Mas não tinha ideia do vínculo que havia entre isto e a piedade. Tinha, entretanto, de modo muito acentuado, a ideia do vínculo que há entre isto e o estado de graça. Cometer pecado mortal, nunca! Nenhum! Porque um pecado mortal importa na fratura direta com tudo isto. De onde a deliberação, que pela misericórdia de Nossa Senhora se tornou muito firme, de não cometer o pecado mortal. Naturalmente, dos dois pecados que mais proximamente se põem para todo mundo, sobretudo em certa idade, um deles é direta e imediatamente mortal, que é o pecado contra a pureza. O outro é difusamente mortal, mas é por ele que começa o pecado mortal: é o pecado de orgulho, o pecado do amor-próprio. Sabemos até onde ele pode levar diretamente. Então, isto não! Havia também outros pecados, mas por assim dizer não estavam ao alcance de uma criança: roubar, matar e outras coisas assim. Eu tinha também a noção de que o Santíssimo Sacramento era o foco de atração, se se pudesse usar a expressão, o ponto de densidade máxima de 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 195


tudo aquilo que eu amava. E considerava que, enquanto Deus Eucarístico, Ele devia enormemente ser objeto do respeito e da veneração que se tem ao divino. Mas, não pouco paradoxalmente, eu cometia nesta matéria dois erros. Primeiro erro: eu comungava pouco. Em torno de mim comungava-se pouco. Seria natural que eu quisesse comungar todos os meses ou todas as semanas, ou mesmo todos os dias. Era para onde caminharia a ordem natural das coisas. Mas não sentia em mim nenhuma propensão para isto, nem estava persuadido de que era necessário para manter no meu interior aquelas graças que tanto amava. Segundo erro: não tinha ideia de que, para continuar com a graça da vocação contra-revolucionária acesa, era preciso rezar muito. De maneira que rezava muito mais para manter a pureza e não cair no pecado de orgulho, do que rezava para manter essa graça, que a mim me parecia um fruto normal do espírito. Eu mantinha a intenção de fazer umas quatro vezes por ano comunhões muito bem-feitas, muito bem preparadas. Mas não tinha a fome eucarística, ou seja, a noção de não poder passar sem a Eucaristia. Depois que entrei para a Congregação Mariana de Santa Cecília e vi os congregados comungarem todo mês obrigatoriamente, aderi a essa obrigação de muito bom grado, com toda naturalidade. Era o prolongamento do que eu queria. Logo depois sobreveio a ideia de comungar toda semana, porque via que os mais fervorosos comungavam toda semana, e que este era o desenvolvimento natural das coisas. Entreguei-me a isto também de muito bom grado, mas quase sem fazer uma meditação especial. Achava isto tão bom, tão natural, tão excelente, tão direito, que fiz assim e está acabado377.

* Certo tempo depois de me colocar completamente no serviço de Nossa Senhora, passei por um período de provações interiores terríveis378. Durante esse período fiquei com medo de comungar. E tinha uma nostalgia sem nome da comunhão379. 377 Chá SB 19/11/80 378 Chá SRM 4/1/93 379 Chá SB 19/11/80 196

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O amadurecimento do amor pela ordem monárquica do universo Desde muito pequeno tive a noção de que havia um ponto central, um foco de luz central cujo conhecimento trazia como consequência uma porção de outros conhecimentos na ordem dos ambientes-costumes-civilizações. E que, nessa ordem dos ambientes-costumes-civilizações, se irradiava uma visão que partia de certo ponto. Percebia em muitas coisas que havia uma forma de excelência ou de beleza que eu talvez chamasse de excelência ou beleza cônica. A figura do cone me é muito prática, porque é uma forma que vai subindo, se adelgaça e chega a uma fina ponta que está a um milímetro, ou a menos de um milímetro, do cone perfeito, mas da qual depende todo o resto. Essa beleza cônica me chamava mais a atenção, me agradava mais do que qualquer outra coisa. Donde, por exemplo, o bem-estar de alma especial que eu sentia contemplando ogivas. Foi este, por exemplo, o brado de alma que tive quando, pela primeira vez, vi em um desfile de carnaval algumas senhoras vestidas à la medieval, com aquele chapéu cônico, do qual pendiam tules. Quando vi aquilo, exclamei: “Oh! que beleza”. Havia nesses chapéus um padrão que me fazia compreender muitas outras coisas, uma perfeição e uma excelência que encontrava, naquela forma, a sua melhor expressão. Tudo quanto era muito alto, muito grande e que terminava numa ponta quase invisível me encantava. Analisando outras coisas da Idade Média, poderia mencionar essa presença de uma tendência a algo de cônico. E em muitas das minhas demonstrações, essa tendência cônica está presente. Analisando o que a Igreja ensina de Deus, parecia-me que Deus era o alto de um cone. E voltando minha atenção para o Sagrado Coração de Jesus, “Rex et centrum omnium cordium”, parecia-me que o mundo dos corações era o mundo do qual Ele era o cone. Daí é que me nasceu a ideia da ordem do universo. Eu não era um menino filósofo. Há um quadro do Fra Angélico representando São Domingos pensando, sentado, com os dedos tocando o queixo e lendo um livro. Nunca fui um menino assim. Fui um menino comum, andando, mexendo, falando como todos os outros, olhando as coisas, analisando, classificando. E por toda parte eu percebia o mesmo tipo de grandezas. As coisas do império austro-húngaro me tocavam justamente por causa de sua sacralidade muito marcante, entendendo-se sacralidade como algo 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 197


em que o temporal está profundamente embebido do espiritual, e o espiritual está em certo sentido intimamente vinculado ao temporal. Essa vinculação reúne, num possante todo, algo que acaba em um cone, que é o estilo de pompa e o estilo de grandeza do império austro-húngaro, em que uma grande cerimônia se fazia num desfile com grande despliegue, com grande desdobramento social, o qual não se vê nas cerimônias oficiais de outros países. Nesse despliegue de pompa religiosa ia o pálio com o Santíssimo Sacramento, e sob o pálio, antes de tudo, o “Rex regum et Dominus dominantium” – “Rei dos reis, e Senhor dos senhores”, quer dizer, a Sagrada Eucaristia, que o Imperador não tocava, porque não era digno e não tinha as mãos sagradas. Mas o Imperador, dignitário supremo do Estado, vinha de vela acesa na mão, acobertado e magnificado pelo pálio que cobria o próprio Deus. Depois, de um lado e doutro, uma presença imponente de tropas. Pelo meio desfilavam dignitários eclesiásticos, dignitários civis da nobreza, depois os corpos do Estado. E quando o desfile passava diante de certas igrejas os sinos tocavam, e diante de certos edifícios os canhões troavam. Isto é uma coisa que pede a presença de um ápice. Este ápice é como que um cone. E o alto desse cone é Deus. Já Versailles é diferente: termina em cima em terraços. O Duque de Saint-Simon comentava que mais parecia um palácio cujo teto pegou fogo. Porque os tetos anteriores eram em “V” invertido. A seção do “V” é um cone. Foi Luís XIV quem inaugurou os tetos rasos: já era um começo de Revolução. Mas ao menos tinha a capela, de uma suave e nobre altura, e que olha todo o palácio de cima para baixo, mas significando para todos: “Eu estou aqui”. Tudo isto me falava muito. Aquilo que poderíamos chamar “princípio-cone”, como sendo um princípio por meio do qual a ordem do universo pode ser descoberta, esteve muito presente na minha infância. Era um princípio condizendo muito com todo o meu modo de ser e através do qual o meu modo de ser apelava para Deus380.

* Existem certas supremacias que são limitadas, e que não vão além de certo ponto; mas, no ponto onde estão, não têm ninguém acima de si, ou não têm nada acima de si, e que reeditam de algum modo uma supremacia

380 Jantar EANS 30/4/92 198

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suprema de que minha alma é ávida, e que é uma concepção metafísica do próprio Deus. Lembro-me de, em pequeno, estando na Europa, abrir um vidro de água de colônia cujo tampão era todo burilado. Inicialmente eu queria apenas tirar a água de colônia para pôr no meu lenço. Quando comecei a mexer naquilo, tive um frisson: “Como isto é distinto! Vou brincar com esse tampão diante da luz. Não é régio, mas é muito bonito, é maravilhoso, porque nesta ordem não se faz uma coisa mais bonita do que isto”. Isto é uma supremacia limitada. E os vários graus de supremacia limitada que chegam ao grau supremo lembram-me Deus com seus anjos e seus santos. E me encantam. O que quer dizer aqui “me lembram”? Não é que eu faça um raciocínio em abstrato, que seria de si muito legítimo. Mas é que, vendo aquele tampão, captei uma realidade metafísica – se não fosse um absurdo, diria que é uma visão metafísica – cuja soberania limitada em si mesma me deu um pequeno êxtase de ver. E este ver a soberania limitada me fez entender melhor a soberania plena. É propriamente este apanhar o fundo da ordem do ser que produz, neste caso, essa sensação, essa impressão. Como sei que rationabiliter isto é um reflexo de Deus, por aí subo até Deus. E como é Deus que quero alcançar, porque é meu fim, e porque me santifico desta forma, aí dou o passo final rationabiliter, mas só depois de ter visto dessa forma a supremacia limitada. Eu procurava manter continuamente esse feitio de espírito. Colocado diante das coisas, queria ver a maior maravilha que havia dentro delas e o que, dentro delas, havia da tal supremacia limitada. Toda coisa tem, no fundo, uma supremacia limitada. É questão de a sabermos ver, mas tem. Essa tendência levava, de um lado, a procurar o mais maravilhoso na ordem palpável das coisas, sem querer fazer um sonho dessa coisa como ela não era. Isto seria fugir daquela noção de supremacia limitada, que é o encanto do assunto. Se agisse assim, eu fugiria da realidade. E a realidade é sempre mais bonita do que os sonhadores a imaginam, quando a vemos deste ângulo. De outro lado, tinha um desejo por assim dizer todo medieval e todo gótico, antes de propriamente conhecer a Idade Média. Eu alimentava o desejo de encontrar em muitas coisas muitas sublimidades que não eram limitadas, mas que eram inatingíveis, se perdiam nas nuvens381. 381 MNF 11/7/91 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 199


A aurora do entusiasmo pela boa ordenação da ordem temporal e pela Cristandade A inocência primeva continuou em mim durante muito tempo. E a amei intensamente – esta é a questão – enquanto encontrando o seu modelo na Igreja. Mas também a amei enquanto existente na sociedade temporal. No ambiente da minha casa, no modelo de minha casa, havia qualquer coisa disso. Uma ponta de sobrenatural que acompanha certos objetos antigos se fazia sentir a mim muito vivamente nela382. Posso dizer que uma das características de minha formação de espírito foi Nossa Senhora me ajudar desde muito cedo a perceber, com a facilidade própria a um menino, o reflexo de Deus nas coisas temporais, e não apenas nas coisas espirituais. Via as coisas espirituais e deleitava-me. Mas não tinha a tendência de passar a vida inteira dentro de uma igreja. Teria ficado muito contente, me teria honrado se isso me acontecesse. Mas não foi o que se passou. Eu não era de ir muito à igreja. Mas quando ia, deitava muito as “antenas” para o eclesiástico e o sobrenatural que ali havia, e com enorme complacência de minha alma, com enorme atração de minha alma, não tem dúvida. Mas, ao mesmo tempo, nas coisas temporais, na sociedade material, também gostava enormemente de ver quando elas eram corretas, bem ordenadas. E parecia-me ver ali uma superioridade e um atrativo, que depois, mais tarde, com o estudo e a reflexão, compreendi que era uma semelhança de Deus383.

* A forma de uma cadeira, a forma de um lustre pode me lembrar alguma coisa que, em última análise, lembra outra, outra, outra, e acaba tocando em Deus. Por exemplo, meninote ainda, eu estava numa casa onde serviram o lanche com um faqueiro delicado para cortar um bolo. A lâmina do faqueiro era banhada a ouro ou uma liga de ouro, e o cabo era feito com uma madrepérola lindíssima, delicadíssima, como poucas vezes vi. O copeiro veio trazendo tudo aquilo junto, numa bandeja, e foi servindo para as várias pessoas. 382 MNF 15/9/89 383 SD 9/6/79 200

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Quando vi o faqueiro, tive a impressão de um raffinement, de um domínio do homem sobre a natureza, de uma maneira de arrancar da natureza o que ela tinha de mais próprio, de mais elevado; e depois pegar em praias rebarbativas e inóspitas não sei que conchas, das quais um homem industrioso soube extrair aquela madrepérola e fazer aquele cabo; e por fim tirar de não sei que mina aquele ouro, e um artista desenhar aquela faca sem pretensão, mas muito distinta, muito alinhada, direita, tive uma consolação e veio-me à alma uma como que exclamação: “Que finura isto aqui! A civilização cristã inspirou isto. A finura infinita de Jesus Cristo está nisto”384.

* Eu morava no bairro Campos Elíseos. Passava muitas vezes a pé pelo jardim do palácio dos Campos Elíseos. E me lembro de que me regalava em passar perto do palácio, porque é uma construção digna de abrigar a mais alta autoridade do Estado. É uma construção respeitável, decorosa, e que levava consigo a ideia do poder e da ordem bem instalados. Eu, monarquista desde o primeiro piscar de olhos, pensava assim a respeito da ordem. E quando passava perto do palácio e era hora em que os soldados tocavam umas trombetas, não sei para que finalidade, esses toques coincidiam mais ou menos com a hora em que o sino da igreja do Coração de Jesus carrilhonava o Angelus. Aquilo me parecia uma convergência lindíssima. Por quê? Porque, sobrepairando sobre a ordem material, estava a ordem espiritual, imponderável, nobilíssima, muito mais nobre do que a ordem material a perder de vista, e que me falava já então do Céu e das coisas do Céu. Lá era o palácio eterno da ordem perfeita, onde Deus supremo, infinitamente sábio, infinitamente santo, infinitamente poderoso, mantinha em ordem todas as coisas. Esse quadro me enchia de comprazimento, de amor, de entusiasmo385.

* Eu nasci em 1908, quando São Pio X ainda era Papa. Ele morreu em 1914 e os reflexos do pontificado dele duraram até muito depois de sua morte. O progressismo e coisas congêneres demoraram muito para chegar ao Brasil. 384 Chá PS 1/12/81 385 Chá SB 22/5/91 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 201


Portanto, formei o meu espírito numa atmosfera “piodecimal”, em que as coisas ordenadas entre si eram ainda bem numerosas e me encantavam. Percebia que tinham ligações. Por exemplo, a questão da monarquia e da Igreja: não me pus o problema a respeito de se a Igreja e a monarquia deveriam estar unidas ou separadas; ambas instituições nasceram no meu espírito como coisas unidas. A afirmação da união entre elas era conatural comigo. Para mim, na ordem “B” das coisas, a nação princeps muito cedo se pôs como sendo a Áustria. Princeps na ordem política e na ordem político-religiosa. Na ordem “A” – não na ordem “B” – a nação princeps era a França – le doux pays amado e deliciado inefavelmente com encantos, e com uma irradiação na linha “A” a que sempre dei por alguns aspectos muito mais importância do que à linha “B”386.

* A fachada do Teatro Municipal em São Paulo era objeto de admirações enormes de minha parte. Sobretudo alguns de seus vitrais. Gostava de passar em frente para ver. Eram então certas admirações que esvoaçavam para todos os lados onde havia harmonias. E uma tendência para uma espécie de harmonia central da qual tudo partiria com sua nota dominante. Quando atinei que a harmonia que havia na alma de mamãe vinha da devoção que ela tinha ao Sagrado Coração de Jesus, aí compreendi tudo. Entendi que a Religião era o centro de tudo, que Jesus Cristo Nosso Senhor era o ponto de partida de tudo. Nesta linha, fiz longos estágios diante daquela imagenzinha do Sagrado Coração de Jesus que há no quarto de mamãe, e que me parecia muito bonita. A partir dela, eu formava a ideia de um Jesus do qual aquele era uma representação muito feliz, mas não era Ele. E me perguntava: “Como será Ele? E como será o Coração d’Ele? Que símbolo é este Coração? Por quê?” E aí, em torno desse núcleo central que era constituído pela Igreja Católica com todas as suas harmonias; que era constituído antes de tudo pela figura de Nosso Senhor e depois de Nossa Senhora; e também pelo órgão e pela liturgia, foi-se formando a ideia de uma harmonia religiosa eclesiástica e inspiradora e coordenadora de todas as outras harmonias, a alma da sociedade humana387.

* 386 Almoço EANS 17/7/92 387 CSN 4/6/94 202

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Havia uma porção de coisas que me enlevavam enormemente e que preparavam minha alma para a compreensão da Providência embebendo a vida temporal e elevando-a. Eu gostava enormemente de cada coisa da ordem temporal impregnada de tradição. Apreciava os objetos, as coisas, e via os mais altos aspectos disso e para onde é que conduziam. Tudo isso eu percebia perfeitamente bem. A Fraülein Mathilde, por exemplo, com o hábito que têm os alemães pela cultura clássica – eles não descendem nem dos gregos nem dos latinos, mas ninguém é mais enragé pela cultura clássica do que eles, e é ali! – nos leu todo um resumo quilométrico de coisas da guerra de Tróia, de “Aquilóis” (Aquiles), de “Tzóis” (Zeus). Na narração dela, aqueles nomes todos eram meio gregos, meio troianos, meio alemães. Ela “alemoava” aquele negócio todo, eu não percebia. Depois, gostando muito de tudo quanto é alemão, eu ia na onda, aquilo era assim mesmo. Lembro-me de ela falar do “Hector” (Heitor), como o “Hector” combatia. O inimigo do “Hector” era “Aquilóis” (Aquiles). E saía briga do “Hector” com o “Aquilóis”. O irmão de “Hector”, Páris (mitologia grega), parece que tinha paixão por uma Helena, que era uma rainha grega que estava lá. Bem, eram coisas desse gênero, não me lembro bem. Mas lembro-me de que eu fazia reflexões assim: “Como é lindo o heroísmo! Como é lindo esse ambiente da guerra de Tróia! Como pode haver gente que não compreenda o espírito militar e não ame esse espírito! Mas, de outro lado, como essa história não vale nada por não ter Nosso Senhor Jesus Cristo dentro!” Esses dois pontos eu não dizia para a Fraülein, porque ela não me quereria ver partir de lança em riste contra os meninos pacifistas daquele tempo. E sobretudo ela não entenderia que eu achasse aquilo vazio porque não tinha Nosso Senhor. Mas eu pensava: “O píncaro é Ele, e toda essa gente que está por aqui correndo de um lado para outro, pulando como cavalo, se matando e pulando do muro e depois caindo do muro, e com decepções e com esperanças, não é nada em comparação com o Sagrado Coração de Jesus”. Pusessem a Ele no centro das coisas e tudo se explicaria. Só gosto dessas coisas do “Hector”, “Aquilóis” e “Tzóis” na medida em que possa conceber em função d’Ele, porque assim é só Ele. E só gosto d’Ele e o resto não me interessa. Eu entendia perfeitamente que a ordem temporal recebia isto da Igreja Católica. E que se quisesse conhecer bem a ordem temporal, eu deveria conhecer a Igreja Católica a fundo e saboreá-la, porque Ela é o néctar do que tem a ordem temporal. A ordem temporal tem uma irradiação do que tem a Igreja Católica. Então: igrejas, sinos, torres, clero, todo o ambiente. 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 203


Se eu tinha amor a tudo isto, era porque no fundo estava Ele. E Ele assim, como descrevi. Sentia a presença d’Ele em tudo388.

* Olhava para os meninos com quem convivia e notava que Jesus fazia algumas coisas dessas nas almas deles também. Notava ainda que fazia muito menos, e que os outros prestavam muito menos atenção. E ficava com certa ideia de que isto era por culpa dos outros, uma indecência. Era o começo de luta que ia aparecendo no horizonte. E esse começo de luta não me empolgava como empolgou-me mais tarde. Como ainda não via o mal neles, via apenas um minus-bem, com isto não pensava no futuro choque, mas sentia um certo vácuo. Gostaria muito que isto fosse diferente. E isto ainda não me levava diretamente para a luta. Daí vinha outra ideia, que em termos de hoje eu exporia assim: “quam bonum et quam iucundum habitare fratres in unum”389 – “Como é bom e alegre que os irmãos morem juntos”. Eu formava com eles um todo tão alegre, tão bom, tão agradável, que eu pensava: “Como isto é bom”. Mas esse lado bom provinha sobretudo do fato de haver neles um efeito da ação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eles não tinham ainda rompido com Nosso Senhor Jesus Cristo, não eram inimigos d’Ele, não tinham estabelecido um corte de relações, não eram filhos do demônio. Aliás, eu sabia da existência do demônio, mas não punha o demônio nessa cogitação. Eu me sentia posto na minha situação própria e natural, contemplando Nosso Senhor Jesus Cristo na Igreja Católica, que começava então a aparecer ao meu espírito; contemplando em mim, em mamãe muitíssimo e em todos os que me circundavam. Os mais velhos, por reverência, eu imaginava transidos de disposições de espírito análogas. De maneira que era um mundo todo católico, mundo minúsculo de um menino, dentro do qual sentia a complementação normal da felicidade que me dava a contemplação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Detendo-me por um instante nesse panorama, ia nascendo em mim a noção de que a condição normal do homem era a de adorar Nosso Senhor Jesus Cristo, receber a sua influência e ser como Ele. E me dava conta de que, para isto, precisaria contar com a harmonia e a ação supletiva dos outros, tomando em consideração que a parte de bem que Nosso Senhor Jesus Cristo não me fazia diretamente, Ele me fazia por meio dos outros. E

388 CSN 20/12/86 389 Sl. 132, 1. 204

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que, com cada um, Ele tinha uma ação direta, e depois uma ação supletiva da ação direta d’Ele, exercida por meio dos outros. Aqui entrava, não a ideia, mas o pressuposto da sociedade temporal cristã, da Cristandade. O meu lar, a minha família, os meus parentes; também todas aquelas famílias que moravam no bairro dos Campos Elíseos, todo esse conjunto eu considerava como uma mesma coisa. Era o mito de uma Cristandade, sustentado por uma porção de aparências que tinha o mundo naquele tempo, e que ainda eram boas, e que supunha habitadas pela influência de Nosso Senhor Jesus Cristo. Via, por exemplo, uma dona de casa sair da igreja com quatro-cinco filhinhos que se seguravam pelas mãos, ela segurando os mais novinhos, e na outra ponta iam os mais velhinhos. Ela ia conversando e vigiando. Atrás vinha o pai com ar grave, segurando uma bengala pelo castão, com ar de quem os defende contra qualquer ameaça que pudesse surgir. Eu achava aquilo tão direito, tão normal; Jesus Cristo estava tão presente em tudo isso, que eu formava a ideia de que, para ser inteiramente cristiforme, o conveniente seria que tudo em torno de mim fosse cristiforme também390. O desenvolvimento do amor pela lógica Eu amava imensamente a lógica, que teve em mim dois instrumentos para este amor. O primeiro deles foi a Igreja Católica, a Religião católica. Logo depois, o primeiro instrumento mais próximo deste amor foi a Fraülein Mathilde, com o seu espírito alemão. Aquela lógica eu admirava enormemente, a lógica que chega até o fim, que diz que tem que fazer e não tem remédio: ainda que desagradável, não recue, tem que ser isto. Eu às vezes – coisa de menino – me “rebifava”, porque era obrigado a fazer uma coisa desagradável. Por exemplo, obrigava-me a decorar aquelas declinações do latim: Rosa, rosae, rosarum; depois, qual era a primeira declinação, qual era a segunda, a terceira, a quarta, a quinta; os casos nominativo, genitivo, dativo, acusativo, ablativo, vocativo; plural, singular; substantivo masculino, feminino, neutro. Eu dizia para mim mesmo: “Ela, afinal de contas, é uma educadora fenomenal”. E era. Era uma educadora de mão-cheia. Pintei o caneco com ela, mas no total nos entendíamos, porque não me revoltei contra ela. Ela entendeu isto e tolerou.

390 MNF 12/4/89 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 205


Terminada a história, eu percebia que tinha aprendido as declinações. Mais ainda: percebia que tinha tomado certo gosto pela lógica da composição da frase latina e pela lógica da ordem inversa. Como era bonita essa ordem inversa! Creio que a Fraülein não conhecia a beleza disso, porque ela nunca me disse, mas eu a senti. E saía dessas aulas dizendo: “Afinal, não deixa de ser verdade que essas declinações são, para o espírito, o que uma escada é para o corpo. A gente sobe, desce, entra por aqueles vãos, mas sai de dentro mais forte”. E acabava me regalando com aquela mecânica das palavras no latim, um pouco parecida com a mecânica celeste. Eu não dizia isto para ela, mas chegava à conclusão: “Tudo isso aprendi porque a Fraülein foi lógica! Oh! lógica.” Eu tinha então entre dez e doze anos. Foi mais ou menos nesse tempo – isto para ver como as coisas iam se encaixando –, que conheci os “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio. Eu tinha um professor chamado Padre João de Castro e Costa, um amazonense muito tagarela, mas de uma lógica de pensamento uma coisa extraordinária. Percebia que ele tinha essa lógica porque os jesuítas ensinavam para ele. E pensava: “Este mestre aqui sabe essas coisas todas porque aprendeu desses padres. Aprendeu de quem? De Santo Inácio. Foi ele quem fundou a Companhia de Jesus e ensinou a ser lógico assim”. Vieram os Exercícios: – Ahhhh! que lógica! Não tem coisa igual! Mas, então, a vida tem que ser lógica. E ela só tem beleza e é digna de ser vivida se for coerente. Por causa dessa lógica terei que sofrer, porque impõe um sofrimento medonho. Quero ou não quero esse sofrimento? Já que Nosso Senhor morreu por mim na cruz, eu quero! E neste caminho vou até onde for! Só sei que a Revolução deve ser derrotada, e espero assistir a vitória da Contra-Revolução. E, nessa vitória, Nossa Senhora me paga de uma vez tudo o que eu fizer por Ela! Essa postura de alma denotava um entusiasmo pela lógica, que vale mais do que qualquer entusiasmo sensível. E este é de fato o esteio da alma. Porque o entusiasmo pela sensação vem, vai, é uma maré que sobe e desce de acordo com a lua. Mas pela lógica, não. Está visto como é, e se formos inteiramente lógicos, inexoravelmente as coisas caminham assim. Esse entusiasmo vinha da persuasão de que tudo o que não vá na via da lógica acabava sendo mentira, fraude, frustração, catástrofe, derrota, sujeira. E isto dá vida ao meu modo de operar, porque se eu não for lógico no que estiver fazendo, vai sair uma coisa torta. 206

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Pelo contrário, por maiores que sejam as adversidades que venham por cima de mim, se eu for lógico, acaba dando numa coisa magnífica. Preciso ser lógico. Percebi desde logo que o elemento primeiro da lógica é um espírito de verdade, pelo qual tomamos as evidências como evidências e cremos nelas com toda força, e respeitamos nelas o que elas têm de evidente. Aquilo que é evidente não vou dar como certo: dou como evidente, o que é um grau superlativo de certeza. E aquilo que é certo vou dar como certo, e não admito dar por evidente. Igualmente, se tal coisa comporta dúvida, devo medir o grau de dúvida que comporta, nem mais nem menos. E assim por diante. Percebia também que há uma espécie de limpeza de alma nessa posição, que é um aspecto da inocência primeva. A pessoa deve procurar conservá-la na primeira idade, com o mesmo cuidado que, na segunda idade, irá conservar a pureza. Isto produz na alma toda uma sinfonia de certezas, que até dentro da incerteza irá introduzir um elemento de certeza, fazendo o seguinte raciocínio: “De tal coisa eu duvido, mas estou certo de que aqui é o caso de duvidar”. Não é, portanto, uma dúvida de quem não sabe que atitude tomar perante aquilo, mas é uma dúvida certa, que tem fundamento, sabendo que aquele grau de dúvida não só é legítimo, mas obrigatório naquele caso. E que faz com que essas certezas primeiras bem construídas, vindo junto com o amor à lógica, dão um edifício de verdade magnífico391.

O caráter sobrenatural desse robustecimento da inocência

Quando me recordo de coisas que se passaram comigo dos quatro ou cinco anos em diante, quando se produziram fatos de mística ordinária, os quais naquela época absolutamente eu não sabia que pudessem ser místicos – eu nem sequer conhecia o sentido da palavra místico – eu ficava de momento tão encantado, os fatos eram tão dicedores, diziam tanta coisa, que aquela degustação em mim durava muito tempo. Em primeiro lugar, atribuo isto a não ter dado adesão às coisas do mundo moderno. Na minha inocência, eu tinha dado adesão a mamãe, e a tal ou tal coisa boa que via. Dar adesão significa, aqui, permanecer na minha alma. Eu ia formando um depósito de impressões, de sensações desse gênero que se iam depositando em minha alma, e que durante o dia voltavam e combatiam aquilo que tentava destruir em mim esse bem-estar, essa felicidade, essa santidade interior. De onde nascia uma reação minha contra o que se opu391 CSN 13/1/90 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 207


nha a esse depósito de impressões: “Aquilo é ruim”. Daí essas sensações demorarem392.

* Quando em menino voltei da Europa, e mesmo um pouco antes disso, recebia graças que me levavam a deter-me longamente na análise de coisas, mais do que de pessoas. E percebia que essas coisas eram uma representação criada de algo infinitamente superior que, em outra região, existia e que se mostrava ali. De onde uma tendência contínua, não propriamente a atribuir às coisas qualidades que elas não têm, mas em compreender que as coisas têm qualidades visíveis e certas qualidades invisíveis, as quais se perdem nas nuvens, mas podem ser vislumbradas por uma pessoa dotada de certa perspicácia ajudada pela graça. Ela então acaba percebendo algo de enormemente superior nessas coisas. Isto é propriamente uma meditação na linha da mística ordinária, comum, que é dada a qualquer homem, e é uma contemplação de coisas sobrenaturais que um toque da graça faz-nos ver em nexo com alguma coisa natural que caiu debaixo dos nossos olhos. E acredito que, essas graças, Nossa Senhora me dispensava largamente393. Não pensem que se trate de uma aparição, de uma revelação. Nunca na minha vida fui favorecido com uma aparição ou uma revelação. Nunca! É no terreno dessas graças comuns394. Isto tive desde os cinco anos, mas sem o menor esforço, e continuamente, não no sentido de que tivesse isto a propósito de qualquer coisa que visse, mas no sentido de que muitas eram as coisas a propósito das quais eu via. E o que eu via, para mim não representava o esforço de uma ascensão, não representava o esforço desagradável para me destacar daquilo que estava considerando. Era como se aquilo se iluminasse por dentro com uma luz que fazia ver o mais alto. Nisto entrava o esplendor da alegria, e de uma cognição sensível de uma graça – que não era uma visão, repito – a qual vinha acompanhada de uma cognição muito grande do mal e, portanto, de tudo quanto tal coisa,

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tal pessoa ou tal objeto tinham de mal em si, seguida de uma repulsa que se deve sentir em relação a isso395.

* Nas impressões suscitadas em mim por uma inocência natural, dois efeitos se produziam: o primeiro era o gáudio intenso que sentia pela posse daquele bem inocente, gáudio esse que tinha qualquer coisa de sobrenatural; o segundo, quando comecei a tirar os olhos da realidade imediata que me circundava e a prestar atenção na realidade remota da Europa, vislumbrando nela aspectos maravilhosos. Via aquela realidade de maneira completa. Havia nisso uma graça que já não era mais o prolongamento da inocência primeva, mas que, na linha da inocência primeva, abria horizontes para outras realidades existentes. Havia também, por fim, realidades sobrenaturais que eu discernia por uma graça sobrenatural. Eu punha em ordem ambas essas coisas, juntando-as com as impressões primeiras. E tudo aquilo ficava promiscuamente na minha cabeça. Entretanto, a divisão que havia não era o natural e o sobrenatural, mas era a Revolução e a Contra-Revolução, que é um fenômeno de tal natureza que a todo momento, se se quiser fazer a distinção, aparecem pontas de sobrenatural. Eu apenas não tinha a atenção voltada para esse ponto da necessidade da graça, porque, para meu espírito, isto era a concepção de todo o mundo396.

* O fato de ter sido muito precoce e conservar a inocência em um período em que, para efeitos da arquetipização das coisas, a minha alma já estava bem mais desenvolvida do que a de um menino de minha idade, isto devo a uma proteção especial da Providência. Menino de menos de dez anos, eu já tinha considerações, tendências, movimentos de alma muito intensos, não como de um homem adulto, mas correspondentes aos de um mocinho. Digo até mais, embora isto possa parecer um exagero ridículo: quando criança de quatro ou cinco anos, já notava em mim movimentos de alma – que não era a minha alma toda – de uma precocidade de menino de doze anos ou mais.

395 Chá PS 23/10/91 396 MNF 12/10/94 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 209


Havia alguma coisa de natural, mas da natureza inocente de uma criança que, embora concebida no pecado original, e com todas as limitações daí decorrentes, ainda não pecara. E julgo que um grau de inocência assim, poucos homens a conservam até a idade de onze, doze anos. Eu não era de nenhum modo um menino prodígio, desses que sabem, que aprendem, que não sei mais o quê. Era um menino comum, inteligentezinho, mas que, nesse campo de assuntos, naturalmente falando, era muitíssimo dotado, mas muitíssimo dotado; e, graças a essa precocidade, desenvolvendo bem esse dote, de maneira que quase toda a minha vida, à maneira de criança, já se passava em cogitações arquetipizantes397.

OS PRIMEIROS COMBATES ESPIRITUAIS O combate contra a atração pelo menos elevado e por um mundo aprazível sem pecado De vez em quando produzia-se em mim uma espécie de vácuo. E sem que propriamente me esquecesse da atração pelo elevado, e sem que ela desaparecesse de mim, entrava uma apetência diversa, voltada para coisas materiais inocentes. Era o querer brincar com uma bola, tomar um sorvete, ir ao cinema. A vida social, a vida mundana comportava então uma gama de prazeres muito castos. Era o prazer da extroversão, o prazer da vida, o prazer de me sentir eu mesmo, e esse prazer substituía aquelas posições de alma, que não ficavam esquecidas, mas um pouco largadas de lado. Eram momentos muito fugazes, muito rápidos, em que notava que dependia de mim romper completamente com aquela coisa elevada, para pegar outra que sabia que era mais baixa, que me dava menos gosto, que me dava menos felicidade, mas que naquele momento exercia sobre mim uma atração que não era fabulosa, torrencial, mas – e isto é curioso – era até temperante. Seria como uma pessoa que estivesse cochilando e que, por preguiça de se levantar, renuncia a um passeio fabuloso que os amigos organizaram para aquela hora. A pessoa sabe que o passeio é mais interessante, mas no momento está na posse do estado de cochilo. E para não perder esse cochilo, esquece o passeio. Assim também me acontecia de esquecer o maravilhoso.

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Lembro-me de alguns momentos em que senti completamente o convite do livre arbítrio para escolher entre uma coisa e outra. Sabia que me seria fácil escolher a coisa inocente, mas sem maravilhoso. E como me seria também fácil optar pelo maravilhoso, bastando-me um esforço não muito grande – e isto era também curioso – para me colocar do lado do maravilhoso. Não me seria dolorido fazer essa opção. Seria um puro ato de vontade e de dedicação, um puro ato de fidelidade, e não uma fidelidade heroica, dolorida. Seria como decidir-me a ir a um passeio. Sentia bem que, se não praticasse este ato de fidelidade, eu fecharia para mim esse firmamento. Mas não me atemorizava. Sentia também, mais remotamente, que poderia afundar na imoralidade, e que, se quisesse, teria afundado. Foi porque Nossa Senhora me ajudou que, todas as vezes que esse problema se pôs, primeiro ponto, percebi o problema; segundo ponto, fui fiel. Sempre optei por aquilo que deveria optar. Em certo momento, esse tipo de prova cessou e então passou a ser conatural comigo essa boa escolha. Em que idade foi isto? Calculo que a intensidade maior foi por volta dos 12 anos, intensidade aqui entendida como a de maior frequência. Nunca foram para mim dramas dilacerantes. Isto se punha comigo tal como tomar um copo d’água. Mas era um ato de fidelidade assim398.

* Uma primeira provação para a criança, antes mesmo de aparecer a questão da pureza, surge por causa do seguinte problema: o “brinquedo” que a criança gosta mais do que todos os outros brinquedos é uma outra criança. Tanto é que, se a uma criança se pergunta o que prefere: brincar sozinha num quarto cheio de brinquedos, ou brincar com outra criança num quarto onde não haja brinquedo nenhum, ela prefere brincar com a outra criança, exceto se tiver o dom de gostar de ficar sozinha, o que é uma coisa muito privilegiada. Ao escolher brincar com outra criança, todo o ambiente atua no sentido de fazer com que a criança comece a gostar da bola pela bola, da bala pela bala, da bicicleta pela bicicleta, abstraindo do lado mais elevado. E nesse ponto o ambiente faz pressão para que a criança fique com uma verdadeira mania daquela outra coisa. Nasce daí a mania por aquele amigo e não outro, por aquela prima e não outra, e daí para fora, tudo isto ainda sem conotação sexual.

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Se a pessoa cede neste ponto, verifica-se nela uma queda na prática do Primeiro Mandamento, que é o amor de Deus. Isto porque a posição primeira da criança, conforme descrevi, é a do amor de Deus: ela está toda voltada para o amor de Deus399, porque o verdadeiro amor de Deus começa pelo amor às coisas elevadas400. Se a pessoa renuncia a isto, ela começa a se apegar às coisas da vida terrena. As tentações contra o amor de Deus as tive à maneira de assaltos, de repente. E, com vontade de ceder, objetava para mim mesmo que ceder nessa matéria não tinha nada de pecado. Mas percebia que, se cedesse, andaria mal para com Deus, sem saber como nem por quê. E assim me defendia contra essa tentação nessas ocasiões. Isto foi mais ou menos dos cinco até os doze anos. Um exemplo disso era a minha atração pela Casa Fuchs, onde, durante a época de Natal, os alemães punham o Tannenbaum, além de ciprestes e guirlandas enormes enfeitadas com frutinhas coloridas, mas frutas mesmo401. Nessa Casa Fuchs expunham presentes que me deixavam entusiasmado. E como já se ia desenvolvendo em mim um veio militarista, olhava com especial atenção para os soldadinhos de chumbo. Olhava também para caixas com materiais para montar casas de brinquedo, feitos de uma massa com um cheirozinho particular e pintada de várias cores. Esse cheiro, mais o cheiro dos galhos de pinheiro, tornaram-se para mim dois cheiros característicos de Natal. Tudo isso despertava em mim o desejo do gozo de vida, de uma vida gostosa com dinheiro largo, fazendo o que queria sem sacrifício nenhum. Não o pecado, isto não; mas uma vida em tudo deliciosa, uma coisa debandada. Como não entrava nesse desejo nenhum consentimento do pecado, achava que aquilo tudo era muito bom, e a que poderia me entregar como quisesse. De onde um desejo de vida luxuosa; mas não um luxinho qualquer, não. Seria um luxo grosso, luxo de grão-duque. E, bem entendido, nos projetos meus, viagem à Europa402. Nossa Senhora me protegeu, e com mamãe influenciando, a coisa foi mar alto no sentido oposto. E percebi que havia uma porção de “Casas Fuchs” no meio de meu caminho403.

* 399 Chá SRM 19/7/90 400 Chá SRM 23/7/90 401 Chá SRM 21/7/90 402 Chá PS 5/6/91 403 Chá SRM 21/7/90 212

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A cidade de Santos era para mim muito mais o lugar da alegria e do descanso do que o lugar do tormento. Foi lugar do tormento durante certa faixa de minha vida, mas fora disso foi o lugar da alegria e da distensão, do repouso. Ali eu tinha uma impressão muito intensa da natureza marítima, desde São Vicente até a ponta da praia, com aquela imensa sinuosidade, com suas casas de tamanho médio, algumas grandes, mas todas muito bem cuidadas, bem arranjadas, muito bem tratadas, soltas em jardins espaçosos. O cheiro da maresia se pendurava nas folhas, morava dentro dos telhados, era um só com o vento, ouvia-se o rumor do mar. A areia era de uma cor muito bonita, e o mar enorme, dando a impressão de uma imensidade degagé: vasto, amigo, atraente. Na hora do casto banho de mar, sentia-me inundado daquelas delícias todas. As cordas vibravam alto, calmas, mas sonoras. Lembro-me de mim tomando banho de mar à tarde, e achando aquele banho uma coisa deliciosa. De repente, olho para a casa onde estávamos hospedados e lembro-me de que ia ser servido um risoto no jantar. E pensei: “Puxa! Além de tudo isto ainda há o risoto de siri, e depois a cama. Que coisa ótima!” Quando pensei nisto, senti que eu tinha vibrado errado, que algo era excessivo e que se me deixasse arrastar, aquilo me entortaria. Então disse: “Preste atenção! Não se deixe ir por este caminho, porque do contrário você entra num abismo. E aí entorta, não pode ser. Você nunca mais deve desejar cúmulos de bem-estar e felicidades dessas”. Notem que nesta reflexão não entrou a mínima conotação de pureza pelo meio; era o mero gáudio da vida que outros chamariam de inocente. Era um tipo de deleite que falava muito aos sentidos e muito menos à alma; e o corpo tendia a tomar conta da alma. A alma se punha como uma espécie de escrava do corpo, para arranjar para o corpo o objeto com que se deleitar. Toda a inteligência era colocada nessa direção: deleitar o corpo. E a alma entortava. A rainha ficava escrava e o escravo ficava rei. É uma revolução, não pode ser404.

* O primeiro obstáculo que encontrei no caminho era a tentação de que já falei, de degustar um mundo sem pecado, aprazível, no qual a inocência estaria presente apenas como uma não-nocência, quer dizer, uma situação

404 Chá 15/10/80 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 213


em que não entrava o pecado, mas também não estaria presente a alvura da coisa sobrenatural. Muito característico disso é o meu apreço pela res germânica, não enquanto combativa e onde certa coisa sobrenatural ainda continuava, mas enquanto organizadora da vida gostosa. A vida gostosa germânica é susceptível de ser organizada na base temporal, para uso de um homem casto, de um modo delicioso, trazendo junto a alegria de não ter pecado, a alegria da consciência tranquila. Não estava presente, nessa concepção, certa nota sobrenatural que o mundo austríaco tem e o mundo germânico não tem. Estava, assim, à procura de um ambiente que somasse o conforto alemão ao sobrenatural da Igreja Católica e ao delicado do francês, como sendo o habitat próprio da inocência, mas inocência para a qual eu não tinha o nome, e que eu confundia com o estado de graça. Como a inocência é uma modalidade excelente do estado de graça, compreende-se que na alma de um menino com seus 15 para 20 anos, essa confusão era possível. Mas não me dava conta de que isto distraía, no sentido próprio da palavra, o espírito da inocência alcandorada e primeva de que falei405. Isto ia trazendo para a minha alma, debaixo de certo ponto de vista, um certo peso. Porque o conceito de inocência e tudo o mais animou em mim um mundo de coisas. Toda a minha mentalidade estava posta nisto. Mas, enquanto tal, ela progrediu menos do que animou; em primeiro lugar, por causa da estagnação decorrente da heresia branca; e em segundo lugar, como consequência da heresia branca, a não distinção entre o estado de graça muito deleitável e a inocência. Não excluo que houvesse nisto uma culpa. Não quero me apresentar como vítima inocente de certas situações às quais eu poderia ter resistido. Uma das minhas preocupações na hora da morte será de pedir perdão a Nossa Senhora, como desde já peço, do que possa ter entrado de pouco generoso dentro disso. Eu também apreciava a segurança, a estabilidade, o não-perigo, a não-incerteza, a não-vacilação. Mas tudo isso ia criando uma espécie de mundo não-nocente natural, que ia tirando o lugar da inocência alcandorada, sobrenatural. E erigia esse gosto da segurança à categoria interna dos bens da vida que são como a respiração. Quando nossa família perdeu dinheiro e passei a andar sobre os males da insegurança, a despreparação que havia em mim para isto, em grande parte por criteriologia alemã, e em outra parte pela concepção da máquina 405 MNF 28/3/91 214

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registradora portuguesa, oposta a essas situações a mais não poder, criou-me uma dificuldade para praticar a virtude da confiança406. O combate contra a tentação da mediocridade Tive tentações espantosas de mediocridade. Na rua Barão de Limeira, bem adiante de nossa casa, tinha a casa pertencente a uma alemã, pessoa do nível social da Fraülein, que correspondia a um padrãozinho médio de vida, suculento e tão bem instalado, limpo e bonitinho que me veio – Vuuuuu!! – o seguinte pensamento: – Está vendo? Isto é uma vida gostosa, sossegada, em que você pode renunciar a qualquer esforço, espraiar-se completamente e levar uma existência agradável. Vou, com jeito, sem criar problemas, tomar distância da minha família, do meio em que ela vive, e vou me meter aqui dentro, vou me imergir na pequena burguesia407.

* Sempre me interessou soberanamente a análise da vida, a observação da vida. Saber como é esse, como é aquele; como vive, como pensa, o que é que acha, para onde vai; como se relaciona com este, com aquele e com aquilo; como aconteceu, como vai acontecer, isto me atraía a atenção fabulosamente. Cada qual é feito de um modo, mas acho que essa característica é inerente à nossa vocação. Isto se manifestava, por exemplo, em relação a toda a gente que morava em torno do largo do Coração de Jesus e formava quase uma vida de aldeia muito aconchegada em torno da igreja. Quando chegava a hora marcada, vinha o padre, expunha o Santíssimo, começava o Tantum Ergo. Depois vinha a bênção do Santíssimo: tocava o sino, movimento de muito recolhimento e de muita elevação espiritual, de muita piedade. Por fim, aquela gente saía e eu ficava prestando atenção nela. Era um mundo que não era o meu, era fechado para mim e eu fechado para eles, mas eu queria saber como era. E daí ficar observando. Eu os olhava dentro da igreja, os olhava enquanto saíam, enquanto tomavam a água benta. Não sei o que pensariam daquele menino curioso 406 MNF 28/3/91 407 EVP 29/5/83 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 215


que olhava para eles. Mas enfim, eu olhava. Não contava isto para ninguém em casa, porque julgariam extravagantíssimo que me dedicasse a essas cogitações sociais. Percebia que, quando essas pessoas entravam na igreja, elas eram o que descrevi; mas quando saíam, elas saíam com uma dimensão dentro da alma muito maior. Certos reservatórios interiores de resignação, de sublimidade, de elevação de espírito estavam reabastecidos até o dia seguinte. O Sagrado Coração de Jesus as tinha dessedentado, e elas tinham-se abeberado nesse Sagrado Coração de Jesus, a rogos de Nossa Senhora Auxiliadora. Saíam, portanto, saciadas, e se desfaziam na bruma ainda violácea do dia que estava se pondo. E o menino curioso ia sozinho para casa fazendo suas reflexões. Cheguei a me pôr uma pergunta do ponto de vista meramente individual, sem cogitar da vocação – eu não tinha noção ainda de vocação –, e minha ideia era esta: – O que convém mais para eu levar uma vida agradável: integrar-me nesse mundo agitado e brilhante, mas trabalhoso, da alta sociedade paulista, ou me destacar desse meu meio e integrar-me no mundo do largo do Coração de Jesus, ou seja, no mundo da vidinha, do encolhido, vivendo à luz ou à sombra do santuário, sem aventuras nem riscos, sem problemas nem complexidades, e simplesmente me deixando afundar no anonimato, no cinzento, no pardo como uma figura que some na penumbra agradável do largo do Coração de Jesus? Hesitei seriamente entre uma coisa e outra. Tanto é verdade que a atração nobiliárquica não é uma preferência, não é uma mania para mim, que os meus lados fracos me teriam levado exatamente a me afundar: “Ahhh! deixe correr o marfim! Eles que se arranjem, vou aqui levar uma vida sossegada, rezando e fazendo pouco mais ou menos nada. Desde que eu viva bem, não me incomoda mais nada”. Por que razão não me deixei levar por essa hipótese? Por uma ideia do dever. Qual era a ideia do dever? Volto a dizer que não era a ideia da vocação, porque a ideia da vocação eu não a tinha ainda, ela não se tinha esboçado em meu espírito. Era a ideia seguinte: cada pessoa que leva consigo um nome histórico e se afunda nessa bruma, é como uma estrela que se apaga no céu. Embora seja menos trabalhoso para uma estrela afundar na bruma do que ficar cintilando pelos séculos dos séculos, a obrigação da estrela é cintilar. Eu, Plinio, tinha o direito de me afundar. Eu, Plinio Corrêa de Oliveira, não. 216

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Essa opção preferencial pelos nobres, eu a exerci não em virtude de uma ideia de comodismo, de vantagens, de prazer, mas de uma ideia do dever e vencendo o meu pendor naturalmente indolente408. Havia algo em mim que dizia com veemência o seguinte: “Você não tem o direito de fazer isso. Nunca pense nisto. Afaste isto como você afastaria um pensamento contra a fé ou contra a pureza. Porque será o seu aviltamento e a sua vergonha. Você é feito para essa borrasca e para essa luta, para esse cenário. Não se avilte, pondo-se mais baixo do que Deus lhe pôs. Crie vergonha na cara, resista ao comodismo e entre nessa borrasca”. Sou muito amigo das hierarquias. Mas nessa hora do comodismo não valia a hierarquia. Valia a irresponsabilidade, o delicioso farniente, concebido, notem bem, dentro de uma vida virtuosa. Não pensava nem um pouco em transgredir os Mandamentos. Era o contrário: a ideia era cumpri-los comodamente à sombra da igreja, indo de manhã à Missa, de noite à bênção, cantando junto com os beatos e os carolas, afinando com eles e bocejando com eles. Se tivesse seguido esse caminho, qualquer padre me diria que isto não é pecado409.

* Assim, em várias ocasiões de minha vida se apresentaram fórmulas que eram, no fundo, para me induzir à vitória da indolência dentro do brilho, ou à opacidade tranquila de um Zé Ninguém, mas que vive também sem se incomodar com ninguém. Dona Lucilia me ajudou a enfrentar essas tentações. Ela tinha uma alta ideia do que era o papel dos antepassados na vida de uma pessoa, e o papel do nome de uma família, que para ela era como uma bandeira carregada por um soldado: o indivíduo devia viver pelo menos à altura de seus antepassados mais ilustres. É uma honra para ele carregar a bandeira, e uma vergonha desonrar essa bandeira ou entregá-la ao adversário por preguiça, por medo. Para uma pessoa que não tivesse a vocação especial que eu tinha, isto era perfeitamente verdadeiro. Ela estimulava muito que o indivíduo não procurasse ser um ambicioso do dinheiro. Mas ambicioso de situações, de honras, de respeito, de adquirir respeitabilidade por suas virtudes pessoais, ela estimulava muito410. 408 Jantar EANS 18/12/85 409 CSN 6/8/83 410 Chá SRM 30/12/88 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 217


* Esse apetite de mediocridade se faz sentir no mundo inteiro. E é paradoxal que um homem de quem a Providência haveria de querer que tivesse que lutar várias vezes na sua infância contra a tentação de se mediocrizar, fosse o homem que abrisse a marcha para sair de dentro da mediocridade e ir para o píncaro dos píncaros oposto, que é o Reino de Maria. Quem me conhece sem esta confidência, imagina que eu, quando dei meu primeiro gemido, quando chorei pela primeira vez, logo depois exclamei: “Sou marquês!” É a impressão que posso dar. Nunca terá a impressão de que lutei como uma fera para não sair do meu meio e me mediocrizar. Entretanto, quando conto isto, percebe-se como isto teria fundamento no meu modo de ser: a minha estabilidade, o meu sossego, o meu gosto pelas coisas que se movem pouco. Gosto enormemente do imobilismo. E é do fundo dessa catarata que parte um apelo para que formas de altura: diretamente para o Reino de Maria. É um paradoxo411. O combate para preservar uma criteriologia inocente e cheia de Fé Desde a infância, nas horas e horas de ida e vinda de bonde para meu colégio, notava que outras coisas rodavam pela minha cabeça. Aí percebi que pensava... E dizia de mim para comigo: “Como sou esquisito. Todo mundo pensa de um jeito diferente: pega uma premissa maior, uma premissa menor e tira um silogismo. Já fico com esses fragmentos de pensamento de cá e de lá. Seja como for, se sou esquisito, sou esquisito mesmo, mas o que está na minha natureza é fazer assim e para mim isto é reto. E vou continuar fazendo assim. Um dia encontrarei a razão disso”. Bem mais tarde, percebi que subconscientemente estava fazendo aos pedacinhos uma enorme síntese. E mais tarde percebi que estava fazendo exercício de entretenimento. Portanto, desde pequenino o meu entretenimento começou. Era a inocência, que é o patrimônio de todos nós quando Deus nos cria e a Igreja nos batiza412.

411 CSN 6/8/83 412 RN 31/1/75 218

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Então, era a ideia de que coisinhas mínimas se prendem a princípios enormes e têm consequências colossais. Tudo, tudo na vida se prende às mais altas razões, aos mais altos princípios413.

* Coisas que eram consideradas grandes descobertas no meu tempo de estudar Física e Química, hoje se reputam coisas velhas e sabidas. Quando, por exemplo, o irmão leigo da Companhia de Jesus fazia alguma experiência de Física, aquilo para o nosso tempo era uma expressão do quanto a ciência desvendava os segredos da natureza, bem como uma expressão do mundo novo e perfeitíssimo que as invenções científicas haviam de proporcionar ao homem. Daí uma adoração pela ciência, que envolvia tacitamente uma subestima da Fé, isto porque a Fé não proporcionava certezas quadradas e palpáveis como as da ciência. E como, na concepção deles, em matéria de certeza só as quadradas e palpáveis é que são verdadeiramente certezas, a Fé ficava toda envolta em dúvidas. E, pelo contrário, esse mundo da ciência era o mundo da verdade indiscutível. Era, portanto, um mundo do maravilhoso, porque eram coisas que se iam descobrindo. E notava o espírito materialista que havia nisso. Consequência disso é que, para os brasileiros do fim do Império, ser poeta ou ser prosador era bonito, era uma grande coisa. Para os brasileiros do meu tempo, era uma coisa ridícula, porque a poesia não oferecia vantagem nenhuma para a vida prática. No fundo, era porque a poesia era um bem do espírito, e os bens do espírito não têm valor: os bens do corpo são os que têm valor. No fundo desse abismo de erros havia uma afirmação materialista. Odiava esta posição e recusava-me a participar desse banquete podre, que era o banquete do entusiasmo pelas ciências que vinham. Alguém dirá: “Mas o senhor poderia ter feito uma distinção, e poderia ter dito: o exagero disso é mau, mas a coisa em si mesma é boa”. Não é verdade. Quando se faz essas distinções com aquilo que o demônio está encumbrando414, de fato se engole o mal. Há certas distinções que são especulativamente válidas, mas que na ordem concreta das coisas são psicologicamente perigosas415.

*

413 Chá SRM abril /91 414 Palavra de origem castelhana, que significa “colocar no cume”, “enaltecer”, “destacar”. 415 Chá SRM 29/11/90 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 219


Ainda menino, eu notava, especialmente em algumas coisas, o contrário da virtude da sabedoria. Por exemplo, na mania de estar sempre dando risada, e só se preocupar com as coisas que provocam riso. Uma conversa que não provocasse riso não tinha valor para ninguém da minha idade, naquele tempo. Também nas músicas e nas danças: todas elas, comparadas com as do passado, eram de lo último. Alcancei, por exemplo, a introdução do jazzband. Se um louco tocasse uma fanfarra, saía um jazz-band, quer como partitura, quer como instrumento. Igualmente notava a falta de sabedoria nas casas novas que se construíam. As casas anteriores ao meu nascimento eram algumas maiores, outras menores, é claro. Mas todas eram sérias, e tanto quanto possível tendendo para palácio, para uma coisa ordenada, direita. Já as casas novas eram construídas no estilo bangalô, uma espécie de chalé suíço, mas mais baixo, mais chato, com quartos pequenos, onde se tinha a sensação de estar penetrando numa casa de bonecas. No bangalô, tudo era feito para o conforto, nada era feito para a distinção nem para a nobreza, nem para a seriedade. Por exemplo, uma grande biblioteca ou uma sala de visitas solene ficariam completamente fora de seu lugar num bangalô. Nas modas, a falta de sabedoria fazia com que a infância entrasse para a adolescência o mais tarde possível, de maneira que as crianças eram mantidas na infância até o mais tarde possível. Os moços eram mantidos na adolescência até o mais tarde possível. Os velhos eram mantidos na mocidade até o mais tarde possível. E todo o mundo queria voltar para trás insensatamente, para fugir da morte, como se isto adiantasse qualquer coisa. Quer dizer, cada vez mais eu percebia que tudo se deteriorava, que tudo perdia sua beleza, que tudo perdia sua dignidade. Toda essa maluquice exprimia muito a falta de sabedoria. E isto, naturalmente, eu rejeitava com toda a alma. Por essas coisas todas fui formando convicções: “As coisas devem ser o contrário do que estão acontecendo. Elas devem ser como eram e não como são. As que eram, eram piores do que as que tinham vindo antes. E as que vierem vão dar lugar a outras piores”. Nessa ideia está subjacente a ideia das três Revoluções. E fui formando, então, a execração da falta de sabedoria. Eu notava isto no clero também. Tudo isso me fez execrar a falta de sabedoria e recusar a minha amizade aos não sábios. Porque não se execra uma coisa má e ao mesmo tempo é-se indiferente a que o outro tenha essa coisa má. 220

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É preciso dizer que a não-sabedoria me pagava abundantemente na mesma moeda, e me execrava de um modo total416.

* Eu tinha uma propensão enorme para, a respeito de muitas coisas que conhecia e que me maravilhavam, perceber confusamente – porque cabeça de criança é cabeça de criança – a relação e a harmonia daquilo com certa disposição do sentimento humano. Desde cedo percebi que meu ambiente não era em nada receptivo a essas elucubrações. E tenho a impressão de que foi desígnio de Nossa Senhora permitir, como um primeiro passo, que o meu espírito caminhasse através dessas elucubrações, para depois, num momento oportuno, ser tomado pela Fé. Sabia que assim ia me isolando e formando um mundo interior, e que o atrito com o mundo exterior mais tarde viria. E percebia que eu ia criando uma situação de crise dentro de mim, que vinha de uma situação de recusa do mundo exterior, e que preludiava minha luta com ele e dele comigo. E, portanto, uma situação de desventuras no futuro. Mas, como achava que mais valia a pena qualquer coisa a ser infiel àquilo que se ia modelando dentro de mim, eu perseverava naquilo. Tenho a impressão de que isto era um convite da graça, que se servia in concreto das condições internas de uma determinada casa, no caso a de minha avó, que era tudo o quanto há de mais comum. O caminho da Providência para toda alma é mais ou menos este: tomar o ambiente onde a pessoa está, pegar o que tem de bom nesse ambiente e valorizar; ver o que tem de ruim e ir formando o segundo sentimento pouco a pouco. Notem que sempre faço, em relação a meu percurso intelectual, uma crítica criteriológica: “Do que valeu aquilo que minha infância me disse? Se não estiver de acordo com a razão ou com a Fé, caput! Não serve!” Mas a análise criteriológica e lógica vem sempre. Tudo isto que estou dizendo foi anterior à colocação do problema da pureza. Foram coisas que andaram pela minha cabeça quando tinha cinco ou seis anos, e onde certo tipo de fruições ligadas à impureza não estavam presentes. De outro lado, hoje me dou conta de que via em tudo isso algo que era o contrário do egoísmo. Porque, amando essas coisas maravilhosas, todo o impulso, todo o jato, toda a força de impacto de minha pessoa caminhavam 416 Chá SRM 27/8/90 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 221


para uma realidade mais alta do que eu mesmo, em relação à qual eu tendia a me constituir numa posição de vassalagem, de admiração, e tendia a servir. A admiração era o próprio meio de me pôr nessa posição. Havia um gosto da vida ligado a isso, mas esse gosto da vida era intensamente idealista. Não diria altruísta, porque altruísta dá uma ideia de horizontal, mas era intensamente metafísico. No fundo era amor de Deus. Mas eu não punha esse assunto assim. Eu era um menino piedoso e percebia que a piedade rumava para essa linha. Mas a minha piedade não era tão saliente como de algum modo se tornou depois. Essa procura do maravilhoso era, entretanto, impregnada do amor desinteressado a esse maravilhoso, que seria um dia o amor de Deus417.

* Isto se aplica às menores coisas, como por exemplo, no desaparecimento do uso do sapato e o aparecimento do tênis: é uma época que acaba e outra época que começa. Pela bondade de Nossa Senhora, desde pequeno meu espírito foi muito ágil em pegar essas coisas. Pegando-as, sabia classificá-las. Classificando-as, fazia um depósito enorme de correlações, tanto do lado revolucionário como do contra-revolucionário; e assim fazia da minha própria cabeça uma fortaleza na luta contra a Revolução. Isto supunha, naturalmente, que eu tivesse amado muito o bem desde o começo, e odiado muito o mal desde o começo também. Desse amor ao bem e desse ódio ao mal procedeu todo o resto418.

* No livro “Meio século de epopeia anticomunista”419 escrevi uma frasezinha, com uma caligrafia péssima, e à maneira de poesia de pé quebrado420. Aquela frase exprime o que se passou em mim para conservar a minha inocência. Mas aqui, inocência não era só a castidade. Era também e indispensavelmente a castidade, e a castidade inteira, mas ousaria quase dizer que não era principalmente a castidade. 417 CM 19/1/86 418 Chá SRM 22/3/94 419 “Meio século de epopeia anticomunista”, Ed. Vera Cruz, São Paulo, 1980. 420 O texto completo é o seguinte: “Quando ainda muito jovem, / Considerei enlevado as ruínas da Cristandade, / A elas entreguei meu coração. / Voltei as costas ao meu futuro, / E fiz daquele passado carregado de bênçãos / O meu Porvir...” 222

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Eu queria conservar a inocência de minha alma e percebia que, conservando-a, negava tudo o que os revolucionários defendiam. Mas via que isto não bastava: era preciso levar a negação do que eles dissessem a um ponto onde há séculos ninguém negava, e assim tornar a negação tão completa quanto possível. Procurei as razões profundas pelas quais a minha inocência queria firmar-se a si mesma e encontrei essas verdades. Percebi, nessa ocasião, a vida que isto abria para mim. Era a vida a mais extraordinária e a mais bela que um homem do nosso século, talvez de muitos séculos, pudesse levar. Mas também a vida mais triste, mais atormentada, mais difícil e mais esmagada, se não conseguisse de algum modo empurrar os adversários para trás. Resolvi, ao pé da letra, crucificar-me nisso. Quer dizer, não esperar nada deles. Às vezes até me espanto, porque no meu “orçamento” estava a previsão de que eu devesse pagar um preço mais alto ainda do que de fato paguei pela minha fidelidade. Em tudo isto, a graça foi-me ajudando. Sem a graça eu não teria forças para isto421. O combate externo contra a visão prosaica e interesseira da vida e contra o espírito hollywoodiano Por tudo quanto me parecia grande e sublime, a minha alma tinha uma verdadeira atração. De maneira que uma porção de coisas me despertavam pensamentos e gostos para o elevado, para o extraordinário, para o magnífico. Quando pela primeira vez me chamaram de lado para me dizer que não havia cegonha, e como no gênero humano se dava a multiplicação da vida, senti o infame que me disse isto gargalhar contra o sublime. Vi que ele queria arrancar de minha alma essa sublimidade, contando uma coisa que era verdadeira, mas que era informada de maneira a ter uma perspectiva falsa. E com essa perspectiva falsa arrancar-me do sublime. Eu me indignei, não aceitei. Pouco depois, entrando no Colégio São Luís, ao travar contato com os meus colegas, percebi que o sublime não estava presente em nada no horizonte deles: nem nas brincadeiras, nem no que eles falavam, nem no que eles diziam. Nunca ninguém falava de uma coisa sublime. Eram só brincadeiras levando para o mais baixo, as quais se apresentavam a mim juntamente com tendências sociopolíticas peculiares. 421 CM 30/11/86 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 223


Em certo momento percebi que a recusa do sublime era, no fundo, a causa do afastamento deles da Religião. Meus colegas não tinham a menor atração por Nosso Senhor Jesus Cristo, por Nossa Senhora, pela Igreja, pelas cerimônias da Igreja, porque tudo isso era sublime. E como eles absolutamente não toleravam o sublime, não queriam saber disso. Então, o unum da Revolução ficou muito claro aos meus olhos. Mas o ódio contra a Revolução também, porque, sem o sublime, não queria viver. E então temos a batalha que dura, graças a Deus, até hoje422.

* Lembro-me de que, quando tinha sete ou oito anos, andando no quintal de casa, veio em minha direção uma negra relativamente moça, tal como eu a revejo hoje, mas para mim já parecia uma mulher feita, dada a minha pouca idade. Ela se chamava Belmira. Ela parou perto de mim, e chamando-me de “você”, foi-me dizendo: “Você ainda acredita em São Nicolau?” Olhando para ela, vi em seu riso qualquer coisa de cético, de carregado de dúvida. Era o espírito da Revolução. Não sabia dizer o que era, mas vi o espírito que nega tudo e que fica contente quando demonstra que tudo quanto é elevado, bonito, feérico, é falso. E reiterou: “Você ainda acredita em São Nicolau?” Provavelmente devia ser por perto do Natal. Respondi-lhe com naturalidade: – Acredito. – Ah! ah! ah! Isso é uma história. Você acredita em cegonha que vem trazer criança? – Acredito. – Nada. Bobagem. Ah! ah! ah! E lá se foi dando risadas. Não fiquei com nenhuma dúvida e continuei a acreditar. Eu acreditava porque era tão bonito que devia ser verdade. Para a Belmira era o contrário: era tão bonito que não podia ser verdade. Nesse pequeno diálogo de fundo de quintal, entre uma empregada doméstica e um meninote, duas filosofias se opunham. Alguns dias depois, brincando com primos no jardim, alguns deles já mais velhinhos chamaram-me para perto e um deles me perguntou: – Você acredita em cegonha que traz crianças? – Acredito. – Nada. Isso não é assim. É um conto. Criança nasce assim...” 422 Chá PS 26/3/93 224

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Achei a coisa tão prosaica, no fundo tão diferente da aparência com que elas estavam postas, que fiquei indignado e protestei. Eles então me deram explicações detalhadas, e aí percebi que era verdade. Compreendi que não poderiam ter inventado aquilo, que só poderia ter sido composto por gente mais velha e que sabia o que dizia. Permaneci em um reverente silêncio, sem compreender por que Deus Nosso Senhor tinha disposto uma coisa tão prosaica. Eu não compreendia. Mas, se foi Ele, é bem feito. Não me causava nesse ponto a menor perturbação. Mas ficou-me uma indignação pelo modo com que eles disseram isto. E conservo a recordação bem exata da cena, das caras, dos risos e dos falares perto de mim, num segredo que sentia as suas delícias em ser secreto. Chamou-me também a atenção uma espécie de falta de ar e de comunicação meio palpitante, meio ofegante da parte deles, como se me revelassem um segredo que alterasse completamente a face do universo. Era como se o universo tivesse antes uma face linda, mas boba e falsa, e passasse a ter uma face feia, mas verdadeira, e da qual o homem sagaz seria capaz de tirar partido. Percebi que era um convite intenso para eu fazer parte dos espertos, dos que tiravam partido da vida e a gozavam tanto quanto possível. E que, para isto ser assim, eu teria que ser um homem sem ilusões; ou seja, um homem sem ideais, vendo a realidade apenas no seu aspecto mais prosaico, para só falar do prosaico. Tive também a sensação muito definida de que eles propriamente não faziam isso nem para meu bem nem para meu mal. Entrava neles um ódio contra o estado de alma que era o meu, de idealismo, de ver a beleza das coisas. E que eu daria a eles certo alívio se abandonasse aquele estado de alma e me acumpliciasse com eles. Se eu não abandonasse, causaria a eles certo mal-estar. Seria amigo se aderisse, e inimigo se não aderisse, porque o odiado era esse estado de alma. Uma coisa vaga me dava a nítida sensação de que estava uma vendetta acesa caso eu não aderisse423. Parecia-me que, no modo de ser deles, palpitava qualquer coisa como um coração péssimo que queria que tudo fosse ruim, queria que nada fosse belo, que nada fosse bom. Queria que não se tivesse certeza nem da verdade nem do erro, que tudo fosse dúvida e que o homem se largasse, fazendo o que bem entendesse. Eles gostavam que isto fosse assim e estavam esperando que, com a narração que me faziam, eu deixasse de ser eu, para passar a ser como eles. 423 Chá SB 27/8/81 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 225


Senti inteiramente que me queriam mudar. Aí rejeitei isto como sendo o contrário de tudo quanto amava. Uma coisa que eu não sabia explicitar, porque era muito pequeno, e que ficava no meu espírito era isto: se bem que, neste ponto, possam estar com a verdade, eles são os defensores da mentira. Eles querem que a mentira tome conta do mundo. Eu, portanto, os rejeito. Foi o primeiro ódio que senti na minha vida. Também, nunca mais fui amigo deles. Sobretudo daquele que eu percebi que tinha organizado aquela arapuca. Vi também que ele me perseguiu durante todo o tempo da vida dele. Fomos inimigos, como um cristão pode ser inimigo do Anticristo. Ao longo dos tempos, esse primo não deixou de me combater a propósito das menores coisas, mesmo as mais insignificantes. Ele considerava-me de um modo depreciativo, ria, fazia comparações completamente desumanas, sujas e procurava aliciar os outros contra mim. Ele e outros do gênero iam, assim, me ensinando como era o ódio do lado de lá424. Evidentemente, senti a tentação, como também senti a graça. Nossa Senhora olhava nesse momento para mim como olha para todos os fiéis, e me ajudou nesse passo, sem o que não sei o que teria sido de mim. Naquele momento, naquela circunstância não estava presente a impureza – podia ter estado, já tinha idade para isso –, mas estava presente o gostinho de participar da fronda revolucionária deles. Aquilo tinha uma atração diabólica de fazer ver o mundo às avessas, como ele não é. E tinha a sedução do absurdo, do errado, do miserável. É a sedução que o demônio tem, ele é o absurdo, o miserável e tudo o mais. Percebia bem que, se aderisse a isto, apagava-se com pedradas uma série de luzes que sentia acesas dentro de mim. Posteriormente vim dar um nome a essas luzes: eram as luzes da inocência. O que me chamou muito a atenção, nesse momento, é que eu sentia que aqueles meninos eram dominados pelo que eles me diziam, eles não queriam outra coisa, eles queriam isto, e o resto para eles não era nada. Eu tinha toda a vida brincado com eles, conhecia-os bem; nunca, nem de longe, os tinha visto tão enfáticos como naquela ocasião. Mais tarde, em contato com o colégio – porque isso tudo se deu antes de entrar para o Colégio São Luís –, vi que isto era uma onda. E percebi no colégio que os alunos não eram senão reflexo de um ambiente muito mais amplo em São Paulo.

424 Almoço EANS 9/3/89 226

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Via também que esse ambiente era um reflexo do cinema, e que o cinema era um reflexo do mundo. Sabia que aquelas fitas de cinema que assistia eram aplaudidas no mundo inteiro; logo, o mundo inteiro devia ser consonante com aquilo. E percebi perfeitamente, não sei em que data, que essa ênfase era a do mundo inteiro. Naquele tempo, o cinema também demolia meticulosamente todos os vestígios da polidez europeia e construía o modo de ser hollywoodiano, que era uma contínua erosão da polidez, da douceur de vivre, da gentileza, das desigualdades, da hierarquia. Vi isto ao longo de mais ou menos um ano, no máximo. Tudo estava visto, o resto foi só explicitação. Como bom brasileiro, olhando para a realidade, não me era difícil percebê-la com toda clareza. O difícil era encontrar as palavras que exprimissem isto. Não era só encontrar a palavra, mas analisar bastante para depois saber que palavras tinha que procurar e depois encontrar. E algumas dessas sensações muito definidas que estou descrevendo, levei 20, 30, 40 anos para saber explicitar425.

* Tive – como já disse – uma primeira fase extraordinariamente feliz. E chamo de primeira infância a época que vai desde que nasci até quando comecei a enfrentar os sofrimentos. É a fase da inocência em todos nós. É feliz para todo mundo. Eu me alegrava imensamente com tudo que pode alegrar. Eu era louco por conversar com minha irmã, meus primos. Tinha muito gosto por um relacionamento cordial, amável, atencioso, respeitoso com as pessoas. E detestava qualquer forma de brutalidade, de brincadeira, ou de coisas que fossem fora das boas normas do bom trato. As normas do bom trato me pareciam a condição para o conforto psicológico na vida. Era um menino muito cerimonioso, gostava de ser cerimonioso com os outros, mas exigia cerimônia comigo. Meus primos estavam habituados a isso. Se vinha algum de fora brincar e que não tinha esse gênero, apanhava. E assim me sentia bem. Nunca dos nuncas uma palavra obscena, uma sujeira, uma imoralidade. Era a vida limpa da infância inocente.

425 Chá SB 27/8/81 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 227


Se não me engano, o começo de meu sofrimento foi logo no início de minha entrada no Colégio São Luís, antes mesmo de perceber o problema da impureza, mas percebendo a brutalidade do trato. Recordo-me que, em certo dia de feriado, meus pais me levaram a uma confeitaria. Encontrei lá alguns colegas, saudei. Responderam-me de modo vulgar e descortês. Percebi imediatamente que tinham do seu lado a unanimidade, e que eles respondiam assim ao meu cumprimento porque sabiam que, se eu falasse com outros meninos, os outros dariam uma gargalhada de mim e se poriam na linha deles. Percebi então que o mundo que vinha era construído sobre a brutalidade, sobre a falta de cortesia, sobre a falta das belas maneiras, que para mim eram uma condição para a felicidade. Eu tinha loucura pelos assuntos históricos e pelas coisas do passado, e via que para eles a realidade cinematográfica de Hollywood era a imagem do futuro, e de um futuro que eles desejavam com ênfase426.

* Eu notava uma diferença muito grande entre o espírito hollywoodiano que ia dominando cada vez mais a sociedade civil, e Nosso Senhor Jesus Cristo como Ele me era apresentado pela imagem do oratório de mamãe e pela imagem do Sagrado Coração de Jesus que está do lado do Evangelho na igreja d’Ele. Ao comparar o estado de espírito que eu via surgir em mim quando rezava para Ele, com o estado de espírito produzido pela música hollywoodiana daquele tempo – músicas aloucadas, desordenadas –, chegava à conclusão de que Ele era o contrário de tudo isso, ou seja, o contrário da Revolução. Era uma conclusão baseada numa antinomia evidente, diante da qual eu tomava atitude, pondo-me completamente do lado d’Ele, embora com o maior prejuízo pessoal. E pondo-me contra os que se punham contra Ele. Era assim que eu via o Sagrado Coração de Jesus e o vejo hoje427. Aí está realmente o fundo de minha mentalidade e de meu espírito católico. Mas aí está também o choque com a Revolução, completamente, completamente, completamente428.

* 426 Chá PS 18/11/83 427 CSN 11/12/93 428 Conversa 21/1/93 228

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No meu tempo de menino, todo o mundo usava sapato preto. Por que razão? Eu ignoro. Naquela ocasião, passar do sapato preto para o marrom entrava dentro de uma onda de declínio da seriedade. E nesse contexto era um passo a mais na diminuição da seriedade. De onde os meninos educados em ambientes mais sérios – em geral os ambientes mais sérios eram os ambientes também menos brilhantes socialmente – continuaram a usar sapato preto, e levaram mais tempo para passar a usar sapato marrom. Já os meninos educados nos ambientes mais finos, mais elegantes, adotaram logo a nova moda e passaram para o sapato marrom. Havia uma conotação de grã-finismo para quem usasse sapato marrom. Então, a falta de seriedade e o grã-finismo, que não se confunde com o aristocratismo, levaram-me a não usar logo sapato marrom. A partir do momento em que o uso do sapato preto ficou meio escandalosamente anacrônico, julguei não ser do interesse da Contra-Revolução enfrentar a Revolução numa coisinha tão inútil. Então passei a usar sapato marrom, hábito que mantive até a época do desastre que sofri em 1975, mais ou menos429.

* Nessa época cantavam-se em tom desbragado canções que ainda não eram as canções de Hollywood, mas eram muito chués, ordinárias. E pensava: – O canto religioso, que coisa bonita! Como é diferente dessas canções! O canto da Igreja é nobre, sereno, calmo, elevado, bonito. A minha alma é tomada por inteiro quando ouço a Igreja cantar. Também quando ia à igreja do Coração de Jesus, via, pintada no teto, a imagem do Coração de Jesus representando a aparição a Santa Margarida Maria Alacoque e dizendo: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens e foi por eles tão pouco amado”. E eu refletia: “É isto mesmo, eles não amam verdadeiramente Nosso Senhor”. Passava do lado de fora um caminhão: pa-ra-pa-pá! E pensava: – Está vendo? Se eles tivessem amor de Deus, não permitiriam que esse caminhão viesse fazer barulho perto da casa de Deus. Nem os padres se incomodam com isso. Mas quem é conforme à Igreja, os padres que são conformes à Igreja têm outro espírito, outra mentalidade. Essa mentalidade,

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esse espírito eu quero ter, exatamente porque é sublime, porque é admirável, porque é santíssimo, porque eleva enormemente a alma430.

* Isto tudo me enlevava muito, mas me levava a comparar o que via no Sagrado Coração de Jesus com as brutalidades e as doçuras sensuais da Revolução. Porque o homem revolucionário era brutal, o trato de uns com outros era de uma familiaridade desabrida, desagradável, uma coisa incrível. Eles eram amigos apenas na medida em que eram inimigos da autoridade, e cúmplices para desobedecer, para organizar a revolta, para defraudar a autoridade, para diminuí-la. Fora disso eram inimigos uns dos outros. Tudo isto eu julgava tão diferente de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nem se podia comparar uma coisa com a outra. Como tinha visto como era Ele e o tinha amado até o fundo de minha alma, queria que as coisas fossem conforme Ele, e não podia deixar de detestar as coisas feitas hollywoodianamente. Por exemplo, o boxe era um jogo muito usado entre os rapazes de minha idade, e que nunca joguei. Eu não permitiria em que outrem pusesse aquelas luvas e fosse de socos em cima de minha cara. Absolutamente não. Mas eles viam na atitude que eu tomava uma censura a eles, e eles jogavam boxe. Motocicleta: em si um veículo feio, que não tem nada de imoral em si. Mas aquela barulheira da motocicleta é o contrário de uma música. Via a alegria do indivíduo montado naquela máquina: quanto mais ele podia obrigar a máquina a produzir sons, e quanto mais esses sons fossem disparatados, mais ele ficava contente. Essas coisas todas criavam uma oposição enorme entre eu e a Revolução. E eram reflexões de menino. Sentia-me como num cárcere, pelo fato de não poder dizer isto a ninguém. Porque se dissesse, ouviria absolutamente de todo o mundo a mesma resposta: “Você acha feio o barulho da motocicleta? Eu acho engraçado. É coisa de moço. Moço é assim, moço gosta de fazer barulho”. Sei que viria daí uma inimizade de morte, mas sei que todo mundo responderia as mesmas coisas estereotipadas. Naturalmente, eu ficava para lá de indignado, por me sentir como se me amarrassem um pano na boca e me impedissem de falar. Daí uma incompatibilidade não sei de que tamanho, da altura do Pão de Açúcar431. 430 Chá SRM 6/1/94 431 Chá SRM 21/1/93 230

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* Contei como no largo do Coração de Jesus em algum sentido eu observava, na alma dos pequenos, a ação da graça, da qual o Sagrado Coração de Jesus é o foco. Digo agora como observava a ação da graça na alma dos grandes. Aos domingos, na Missa das 11 – era a última do dia, pois não havia missa vespertina naquele tempo – o aspecto do público da igreja era inteiramente diferente. Todo o mundo educado e de dinheiro, que representava mais ou menos a aristocracia local, ia a essa Missa das 11. Viam-se então chegar bonitos automóveis, senhoras de idade madura em bonitas toilettes, homens ainda usando fraque e cartola por homenagem a Deus, Senhor de todas as coisas e a quem eles iam visitar. Era um mundo em que aparecia muito do antigo donaire dessa espécie de aristocracia descoroada que era a alta classe rural tradicional de São Paulo. Mas notava neles, como notava em minha casa, o conflito de duas influências: de um lado, a velha tradição portuguesa, e de outro a hollywoodização dos costumes. A velha tradição portuguesa era muito afim em alguns pontos com a tradição francesa, e pela qual a nota distintiva do homem educado era uma seriedade amável, até afável. Mas a amabilidade e a afabilidade vinham per accidens, como um ornato complementar. A nota dominante era a seriedade, a conversa composta e a amabilidade cerimoniosa. Eu gostava muito dessa amabilidade cerimoniosa. Em casa, mesmo na intimidade, o modo das pessoas se dirigirem umas às outras era cheio dessa seriedade. Mesmo na intimidade, mesmo brincando, a brincadeira era feita com um tom cheio de respeito, e o respeito era uma espécie de atmosfera, de gás ou de líquido no qual a vida inteira estava imersa. Essa influência eu notava também nos ambientes das residências, nos móveis, por exemplo. Toda a casa que se prezasse tinha um salão dourado, com móveis também dourados no estilo Luís XIV, XV, XVI, ou um pouco mais antigos, Luís XIII. As paredes eram revestidas de damasco dourado ou de papel vindo da Europa, mas papeis de primeira ordem, dourados também; ou ainda de painéis de damasco de outras cores, fraise, azul, que também ficavam bonitos. Lustres, sempre, infalivelmente, e de cristal. E se as posses da família permitiam, o hall era de mármore, cortinas todas de damasco, sedas, veludo. 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 231


Quadros a óleo, sempre também. Não passaria pela cabeça de ninguém pôr uma estampa como decoração. Imaginem agora – e aqui entra a segunda influência – que, numa sala assim, fosse aberta uma janela dando para um lugar poluído. Foi o que naquele tempo aconteceu nessas casas: tudo começou a ficar aberto para a influência de Hollywood. A influência do cinema naquele tempo era pelo menos igual à influência da televisão hoje. Não havia ainda rádio nem televisão. Os filmes que se exibiam eram de heróis que, para fugirem da polícia, saíam pela janela e seguravam nos rebordos de um prédio de vinte andares, todo cheio de ornatos. Então se via a máquina de filmar focalizar o prédio do alto do vigésimo andar até a rua, e o herói se contorcendo, pendurado naqueles ornatos, e todo o cinema numa “torcida” única para ver o que ele faria. As músicas que as vitrolas tocavam, as canções que as pessoas cantarolavam ou que as senhoras executavam no piano, ou ainda a que os rapazes tocavam no violino, tudo isso já era hollywoodiano. O resultado foi a introdução de uma gargalhada superficial, agitada, estridente e sem significado profundo, a não ser como expressão de um imenso caos. Eu percebia essas duas influências que se combatiam. Aquela seriedade sacral de outrora ia sendo enxotada por aquela superficialidade trivial, adoradora da máquina, do dólar, da corrupção, e que já preludiava Las Vegas e outros antros de hoje em dia, e que tinha que dar na civilização moderna. E entendi o seguinte: quando eles estavam na Missa do Sagrado Coração de Jesus, todo o lado tradicional vinha à tona e dominava neles; quando estavam no cinema – muitos eu ia encontrar na matinée –, eles estavam cheios de Hollywood. De onde me vinham ideias como esta: “Se o lado tradicional floresce na igreja do Coração de Jesus e em outras igrejas de São Paulo, e não floresce no cinema, há uma relação de aliança, de afinidade entre esse ambiente, essa religião e esse lado bom. E há uma relação de antagonismo entre a igreja e esse lado ruim, quando eles vão ao cinema”. Imaginem o jazz tocando na igreja do Coração de Jesus: seria uma blasfêmia. Imaginem um órgão tocando música religiosa e acompanhando um filme de Hollywood: ou parava o órgão, ou parava o filme, porque os dois não iriam juntos. Vamos imaginar mais: que o próprio Sagrado Coração de Jesus aparecesse num salão de família daqueles. Seria uma honra excelsa que Ele faria a esse salão, mas uma honra que estaria na linha do salão, pela seriedade, 232

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dignidade e respeito do ambiente: nada seria atentatório contra Nosso Senhor lá dentro. Imaginem agora se Ele aparecesse em um cinema: não é uma hipótese blasfema? Não se pode nem pensar, nem cogitar. Logo, há no cinema um princípio hostil a Nosso Senhor; e há, na vida tradicional, um princípio que procede d’Ele. Olhava em torno de mim e pensava: “O que diria essa gente se eu dissesse a ela que estou pensando nisto?” Eles diriam que não era bem isto, que não estou entendendo nada, que esse antagonismo não se põe. Isto porque eles não queriam fazer a opção, eles não queriam fazer a escolha. O resultado é que eles deixavam devorar, como um câncer, a parte boa pela parte má, por não quererem optar. E dizia no meu íntimo: “Opto pelo Sagrado Coração de Jesus”. Alguém dirá: “O senhor me desapontou. Esperava que o senhor comentasse o efeito de um devocionário, de um manual de piedade, de uma fórmula de consagração a Ele; esperava que o senhor falasse de coisas dessas, e qual o efeito que a figura d’Ele produz na sua alma”. Respondo: está tudo dito no que estou dizendo. O efeito foi prévio, o de me deixar modelar por Ele a fundo. Eu o tinha conhecido, e tinha me deixado modelar por Ele tanto quanto minha miséria permitia. E era por isto que eu estranhava uma coisa que era dissonante d’Ele. Era por isto que eu reconhecia n’Ele a regra a ser seguida, qualquer que fosse o sacrifício, qualquer que fosse a batalha. O critério para diferenciar o bem e o mal, a verdade e o erro, é estar consonante com Ele. Isto é um ato de adoração, um ato de devoção. Supõe evidentemente rezar muito a Ele, ir à imagem d’Ele, ir à igreja d’Ele, tê-lo em vista nas imagens d’Ele em casa, e dirigir-me a Ele por meio de sua Mãe. Ou seja, ser devotíssimo de Nossa Senhora como canal necessário para chegar até Ele. Estou cônscio, deliciosamente cônscio, cônscio até o fundo de minha alma, de que nunca teria chegado a nada disso se não fosse a intercessão de Nossa Senhora. Mas, o que aconteceu com alguns outros que vi, grandes rezadores de manuais? Eles, de manhã, rezavam as orações do manual, mas não tinham suficiente amor para, na hora do cinema, estar se lembrando d’Aquele a quem tinham rezado. E evitavam a opção. Resultado: a devoção a Ele se limitava, nesses rezadores, cada vez mais a uma mera fórmula, e cada vez mais a entrega à mentalidade do cinema tornava-se neles uma realidade. Fica assim narrado, de um modo muito sumário, e tanto quanto me é possível narrar, um dos itinerários de minha alma rumo ao Sagrado Coração de Jesus. 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 233


Permitam-me um parêntese. Nessa dualidade jazz e tradição, havia um problema. É que a tradição aparecia tristonha, incapaz de suscitar alegria, vida, verdadeiro espírito de luta e algo que não fosse mofo. E era preciso um ato de fé para acreditar que a tradição havia inspirado coisas como as Cruzadas, por exemplo, de tal maneira ela estava no meu tempo carregada de mofo. Como a única forma de alegria estereotipada era a hollywoodiana, não havia uma fórmula para dar escoamento psicológico à alegria para a qual a alma tem tendência, senão os padrões hollywoodianos. Ser alegre aparecia então como uma espécie de infidelidade. Em sentido contrário, ser tradicional, ser fiel à Igreja de sempre parecia trazer como corolário ser tristonho, abatido. E tinha verdadeiro horror ao mofo e a tudo quanto não fosse vida. Assim, quando entrei para o movimento mariano, uma das metas que tive foi de fazer sentir que eu não renunciava nem um pouco à alegria sã e casta de viver. Mas confesso que não me era fácil comunicar isto a muitas pessoas em torno de mim, porque tomavam isto como falta de devoção, falta de piedade.

* Havia uma rua limítrofe perto de casa, que demarcava o mundo da antiga aristocracia rural e o mundo da pequena burguesia. Aquele era um mundo europeizado, aberto às ideias novas, com bastante dinheiro, com luxo até e com preocupações de progresso e de conforto para si mesmo, e participando de toda a agitação política, mundana, cultural, de toda a alegria, de todo o tom hollywoodiano que caracterizava aquele tempo. O jazz era o grande escândalo sonoro daquela época. Odiei o jazz desde o primeiro momento em que o ouvi, assim como amei o órgão desde que tomei consciência de que ele existia. O meu ambiente doméstico era um misto de órgão e de jazz. A tradição, que inegavelmente estava presente, tocava o órgão. Mas, assim como as badaladas dos sinos desciam no largo do Coração de Jesus, assim também as cacofonias do jazz cobriam o mundo e entravam também na mansão da rua Barão de Limeira, 77. Havia ali muitos espíritos aggiornatti segundo o jazz, enquanto pelo menos uma senhora e eu éramos ajustados segundo a tradição. Eu entrava em toda aquela sarabanda, à qual não se pode negar certo brilho, não se pode negar o deleite da vida. E era sensível a esse brilho e sensível a esse deleite da vida, quer dizer, à vida rica, à vida cara, à vida com luxo, às viagens para a Europa em navios palace com salões de dois 234

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andares; ao turismo pela Europa, ao palacete enorme em São Paulo, aos automóveis de luxo vindos da Europa, vindos dos Estados Unidos432. Naquele tempo, os acontecimentos sociais tinham muita importância: “Fulano não foi convidado para tal festa: isso o desclassifica de tal maneira. Sicrano vai se casar com tal moça, que o coloca de tal maneira na escala social. Aquele terceiro fez tal bom negócio”. Tudo também se movia, e continuamente, em lances vistosos no palco da micro-Pauliceia. Era o palco que havia, e um dos maiores palcos do Brasil. Então, era o micro-Brasil, mas valia tudo nessa matéria433.

* Na questão de modos de trajar, a minha incompatibilidade com meus trajes foi precedida de um período de indiferença. Quando tinha quatro ou cinco anos, os meninos usavam rendas e outras coisas do gênero. E deixava que me vestissem, não prestava atenção naquilo, nem me incomodava. Podiam pôr o que quisessem. Às vezes pensava: “Para que carregar isto? Enfim, custa menos carregar isto do que carregar uma briga. Se quiserem pôr mais um pompom aqui ou acolá, ponham, que não me incomodo. Nem sou eu que coloco, são outros, não me dá trabalho. Estou aqui como um cabide, pendurem”. Não me lembro de uma só vez olhar no espelho para ver como estava minha roupa. Não me passava pela cabeça434. A incompatibilidade nasceu quando comecei a usar paletó e gravata, colarinho, essa história toda. Eu era então mais velho, a capacidade de atenção mais definida, e, pondo a roupa nova, pensei: “Como é? Que história é essa aqui?” Compreendia bem que, ainda que fosse de calças curtas – porque no meu tempo já com calça curta se usava paletó e gravata –, aquilo representava um estágio intermediário para o homem completo, de calça comprida. Se me tinha engajado num caminho que era o do homem de calça comprida, tinha que ver no que ia dar. O raciocínio era: “Estou aqui numa roldana que vai me empurrando para lá. Depois, queira ou não queira, é isso, lá vai. Preciso ver o que é, o que vai acontecer nessa história aí”.

432 Jantar EANS 18/12/85 433 CSN 6/8/83 434 Jantar EANS 11/3/87 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 235


Percebia através das revistas, do cinema, das fotografias em jornal, que uma coisa estava na moda e que outra coisa não estava na moda, inclusive para homens. E dizia: “Esse negócio de moda se move, e toda essa movimentação faz com que tudo se torne mais vulgar, mais pechisbeque, mais pífio. Quando é que começou a caminhar desse jeito?”435

* Por natureza, e creio também que com auxílio da graça, fui desde pequeno muito atento para a correlação entre as ideias que as pessoas exprimiam e o subconsciente delas, as atitudes que tomavam e os símbolos de que elas se rodeavam. Um exemplo entre cem outros: os lançadores de uma moda nova. Esses lançadores de moda eram em geral senhoras ou, mais discretamente e com menos saliência, homens – isto quando se tratava de moda masculina –, os quais eram tidos, em determinado ambiente, como os mais elegantes, os mais finos. Eles possuíam uma espécie de radar: assim que as revistas e o cinema apresentavam alguma coisa nova, eles percebiam por que caminhos essa moda nova ia correndo, captavam o estado de espírito que aquela moda criava, hauriam o que havia de ruim provindo da Revolução e depois, através dessa moda, lançavam e espalhavam aquele estado de espírito em torno de si. Eram verdadeiramente apóstolos de um espírito mau, no sentido literal da palavra. Observando tudo isto, percebi uma escola de ódio a Deus funcionando assim. E percebi que essa escola envolvia toda a humanidade, e que esta era propriamente a escola da Revolução, montada entre os homens por esta forma. Em face disto, eu era levado a reagir fazendo o contrário, folheando figurinos do passado, não para copiar trajes – seria uma demência –, mas para me embeber dos estados de espírito e dos modos de ser que traziam no fundo o espírito de Deus, ou seja, mais proximamente o espírito católico. O espírito da Igreja Católica é o Espírito Santo, é Deus Nosso Senhor. Por esta forma, enquanto os meus colegas de idade e de classe iam evoluindo para um lado, ia evoluindo definidamente para o outro lado, e ia criando para mim um modo de amar a Deus que não estava nos manu-

435 Chá SB 11/6/80 236

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ais, e cuja autenticidade, entretanto, não se punha em dúvida, porque era evidente436. * Abriam-se para mim dois caminhos diferentes, longe do pecado e fora do pecado. Um caminho era gozar a vida. Outro caminho era ser fiel à inocência, sofrendo perseguição, sendo detestado, odiado, ignorado e posto de lado pelos outros. Essas duas tendências não cheguei a distingui-las logo. Mas os fatos as impuseram para mim, porque teve início a batalha dentro do colégio. Comecei então a desenvolver uma luta raciocinada e política para disputar um lugar ao sol, que o silêncio velhaco e o abandono me negavam. Utilizava para isto as habilidades maiores ou menores de um político, para sozinho virar de pernas para o ar a política que faziam contra mim. Entrava nisto até um tanto de guerra psicológica, que eu nem sabia que existia, mas que, apalpando, ia percebendo: “Tal coisa se faz assim, tal outra coisa se faz daquele jeito”. E assim alterei em parte a situação. Mas aí já tinha contra mim toda a Revolução, já havia formado o ideal da Contra-Revolução. Torci o pescoço da bruxa, não pensei mais na vida de grão-duque e tomei a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. O que poderia haver de enfeitado seria imaginar um menino ideal que desde pequeno pensou na cruz. Na verdade, minha fantasia passeou longe, longe, por todos os luxos, por todas as coisas agradáveis possíveis, que eu desejava com uma veemência pouco imaginável437.

* Onde a batalha foi tremenda foi na seguinte alternativa: tudo bem pesado, pensava eu, vale a pena fazer o que estou fazendo por causa do Céu. Mas, do ponto de vista terreno, vale a pena o sacrifício que estou fazendo? Porque eu tinha todos os elementos para ter uma felicidade média, comum, de um rapaz de boa família de meu tempo. Depois, isto estava inteiramente ao meu alcance, eu não tinha que fazer o menor esforço. Era pegar e está acabado. E nesse ponto não havia dúvida. A dúvida que surgia era a seguinte. Para conservar uma posição agradável e sustentável, e evitar as aflições do estilo Hollywood, eu me punha de tal maneira diferente dos outros que uma parte da implicância que havia comigo, e de um cordão de isola436 Chá PS 1/12/81 437 Chá PS 5/6/91 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 237


mento que se fazia em torno de mim, era por causa dessa minha posição. E era também porque eles notavam a calma e o bem-estar interior que eu carregava comigo. Aguentar isto era de uma dureza que minava a vida. Era a cruz de Cristo. Além disso, havia ainda a minha posição militante. Eu não era militante por temperamento, era militante porque devia ser. Então vinha a tentação duríssima de ter que rechaçar certas pessoas. E então está-se vendo o resto438.

* Em determinado momento, aparece uma bombarda que se desfecha no centro disso: “Rompa com a causa nostræ lætitiæ e seja como os outros. Senão haverá para você um dilúvio de padecimentos (os quais percebi perfeitamente, logo). Se você se mantiver fiel à causa nostræ lætitiæ, veja o que vem em consequência!” Quer dizer: “Não tenha ilusões, essas alegrias atuais vão se transformar para você em dor, e você vai ter luta. Essa vida de “nhonhô”439 que você leva só será gostosa se você trucidar a causa nostræ lætitiæ”. Isto me vinha ao espírito com toda a clareza. Mas, de outro lado, vinha-me também a ideia muito clara de que a felicidade que viria seria uma felicidade sporcata, emporcalhada. Seria um gozo, não seria uma felicidade. E depois, ainda que fosse uma felicidade, o que eu queria era a união com Deus, com Nossa Senhora, com a Igreja, em alguma medida com mamãe; isto eu queria, e não queria outra coisa. E aí, então, começou a batalha440. Lembro-me de ter calculado o preço que teria de pagar, caso alterasse a minha personalidade e passasse a gostar efetivamente do barulho do automóvel, do cheiro da gasolina e de outras coisas do gênero; sabia 438 MNF 17/3/95 439 A expressão “nhonhô”, dentro da linguagem interna da TFP, vem do tratamento respeitoso e ao mesmo tempo afetivo dado pelos escravos aos filhos dos grandes fazendeiros, os barões da terra brasileiros. Esses barões da terra sonhavam para os seus filhos uma carreira de advogado, de médico etc. que eles não puderam seguir, e almejavam para seus pupilos o aprimoramento cultural que os projetasse na sociedade. Mandava-os então estudar em Portugal (no período colonial) ou na França (no período da Velha República). Acontecia com certa frequência, entretanto, que, junto com a cultura, o rapaz assumia hábitos amolecidos das elites europeia já decadentes, e perdia a fibra e a força de personalidade de seus pais. Daí Dr. Plinio utilizar as palavras nhonhô, nhonhoseira, nhonhosar como uma expressão despectiva, própria de pessoa decadente, amolecida e de vida larga, que mais procura gozar a vida do que servir a uma causa. 440 CSN 13/1/90 238

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perfeitamente que, se não incorporasse esse gosto a mim, eu não seria nada junto aos meus colegas, e isto acarretaria uma capitis diminutio e um começo de exílio para mim. Qual é o pecado que haveria nisto? A rigor, nenhum, porque nenhum padre me disse que isto fosse pecado. Nunca ouvi um padre falar contra o efeito do automóvel. Pelo contrário, eles usavam euforicamente o automóvel, sem estranheza nenhuma. Vinha-me à lembrança, entretanto, os papéis de parede franceses, ilustrados com medalhões e laços de fita. E fazia o seguinte raciocínio: “Não venderei isso por preço nenhum! Ficarei filho dos medalhões e das coisas francesas vistas assim, e não me adaptarei à máquina. Não sei que futuro isto me trará; não vejo que seja pecado, mas meu dever é agir assim”. E isto acontecia com um menino de 5 anos! Todos nós fizemos opções dessas. Os senhores passaram por coisas dessas. Conscientizaram ou não conscientizaram, lembraram-se ou não se lembraram, fizeram ou não fizeram, isso pouco importa441. O combate para preservar o modo de ser cerimonioso, fazer-se respeitar e obter uma situação de superioridade Isso tudo levou a que meu modo de ser entrasse numa colisão violenta com o modo de ser daqueles que esperavam encontrar em mim uma ocasião para um convívio igualitário e apalhaçado. Encontravam da minha parte, pelo contrário, uma recusa e uma compunção a agir de acordo com o que eles queriam. E então vinha da parte deles uma recusa da grandeza, porque a grandeza instituía condições de convívio que eles recusavam. A grandeza era o contrário de tudo isso. A grandeza é a seriedade, a grandeza é o pouco riso, a grandeza é a reflexão, a grandeza é a desconfiança, a grandeza é o esforço. A grandeza não é só isso, mas traz necessariamente isto. E quem não quiser essas coisas, não tem grandeza, não sabe admirá-la, nem sabe viver com ela. Eu fazia uma espécie de sofisma com eles. Não era um sofisma oral, era um sofisma tendencial que consistia no seguinte. Eles apresentavam a grandeza como carrancuda. E eu procurava ser muito amável, mas de longe e de cima. Eu cumpria todas as antigas regras de educação, de maneira tal que o cumprimento dessas regras tinha aspectos de amabilidade. E eles, portanto, 441 CM 11/11/84 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 239


não podiam se queixar do meu trato. Mas com isso os obrigava a respeitar as regras. Lembro-me, por exemplo, de um rapaz que convidei para jantar em casa. Estava na mesa perto dele e lhe disse: “Fulano, você queria me fazer o favor de passar o sal?” Quando ele me passou o sal, eu disse: “Muito obrigado”. Ele me sussurrou à meia voz, para os mais velhos não ouvirem: “É preciso tantas fórmulas para obter um saleiro?” Fingi que não ouvi. Ele ficou em casa até tarde. E no resto do contato todo, as mesmas fórmulas. Resultado: ele não podia deixar de dizer que fui amabilíssimo com ele, e de sentir-se meio agradado com essa amabilidade, porque toda amabilidade agrada. Mas, por outro lado, ele se sentia mal à vontade. Era o jeito que eu tinha de sair do embrulhado da situação.

* Outra coisa era a atitude que eu tomava, como quem diz: “Se for vítima de uma agressão, pode ser que não leve a melhor, mas te quebro também! Pode ser que você me quebre mais do que eu a você, mas sai um caso em que te cai o mundo em cima da cabeça, porque você tem que me fazer tais e tantas para levar a melhor sobre mim, que disso sai uma encrenca grossa. Mas me entregar, não me entrego!” Isto, que efeito produzia? Um afastamento cordial, como quem diz: “Vou ficar longe dele, porque gosto de brincadeira abrutalhada, ele não gosta. Gosto das micagens, das graças e das imoralidades, ele não gosta. Gosto de um trato a maneira de potro, e ele conversa sobre temas sérios. Gosto de dizer palavrão e ele não gosta. Então vou me manter à distância dele, mas serei amável sem criar caso”. E assim aconteceu com um indivíduo que navegava contra a corrente, mas que a corrente não conseguiu levar para onde queria e seguiu o itinerário dele. À medida que fui ficando mais velho, essas coisas foram tomando mais corpo, naturalmente. Uma coisa é um menino de 10 anos, outra é um adolescente de 15 anos. Mas a réplica deles era sempre a mesma. Assim, acabei desenvolvendo uma arte que eu não tinha em menino, e que foi a arte de conversar. A boa conversa sempre atrai alguém. Os homens não são tão, tão asnáticos que, encontrando alguém que converse bem, não encontre alguma pessoa que queira conversar com ele. 240

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Tudo isso criou uma espécie de fato consumado, pelo qual era melhor não brigar comigo, mas também não aplaudir. Lembro-me de que, quando Luís XVI voltou de Varennes naquela fuga trágica, tinham escrito no caminho dele: “Quem aplaudir o rei ou vaiá-lo, será morto”. É uma regra da Revolução em relação àqueles cujo sucesso ela teme. Se for vaiar põem em realce. Se for aplaudir põem em realce. Deixe passar. Aliás, é uma regra bem pensada, como jogo acho bem jogado442.

* É verdade que, em moço, meus contemporâneos tinham certa complacência para comigo, certo gostar de mim por alguns lados, certo gosto de estar comigo. Não era um gosto extraordinário, era um gosto comum. Mas também é verdade que eles sentiam muita repulsa. O resultado é que me procuravam pouco e não abriram muito o campo para muita camaradagem, e eu sentia o isolamento. O que é natural, pois se crio um ambiente onde sei que eles não gostam de estar, não posso esperar outra coisa senão o isolamento. Ao menos eu obtinha o que queria: era o isolamento com consideração, e a partir da consideração, a possibilidade de influenciar. Sabia que minha presença na sala de aula, por exemplo, ou no recreio, destoava de todo o resto. Mas não dava pretexto para organizarem uma caçada contra mim. E assim eu me punha de cima e ganhava alguns passos contra o adversário. E era só isto que, naqueles verdes anos, eu poderia ganhar. Mas isso eu fazia metodicamente, com os cuidados, digamos assim, de uma psy-war. Por exemplo, uma coisa que ninguém mais fazia no meu tempo era, quando um colega ia passar pela mesma porta, fazer um sinal para ele passar na frente. Isto punha um frio no trato. Mas um frio que me deixava numa condição menos péssima do que eu poderia ficar se não fizesse isto. Mas, aos poucos, fui criando em torno de mim uma situação que, como era o único com quem se tinha cerimônia, isto revertia numa espécie de superioridade quando precisavam de algum favor meu. Porque, na hora do favor, ou eles iam de chapéu na mão, ou não obtinham o que queriam. Então, a situação de inferioridade foi revertendo lentamente para uma situação de superioridade443.

442 Chá SB 6/5/80 443 Chá SB 16/7/80 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 241


A formação de um primeiro filtro interior, católico e contra-revolucionário, anti-“heresia branca” Na praia de Santos, sentia a contradição daquele aspecto do mar, e do mar em si, com toda a vida hollywoodiana que se ia desenvolvendo. Sentia as afinidades do ambiente dessa praia com o passado, mas percebia que algo no passado também não conduzia à Igreja Católica como Ela era, não conduzia a Nosso Senhor Jesus Cristo nem a Nossa Senhora, mas afastava d’Eles. Via, portanto, nessa bandeira movida a ventilador, que nem tudo era bom odor. Havia uma espécie de pré-maconha puramente psicológica, e não química, que era o romantismo abrindo a alma para esse passado em que apareciam juntos, se quiserem, os heróis da Contra-Reforma misturados, séculos depois, aos românticos como Chopin, e tudo apresentado junto. O que era o passado? Seria uma sereia a mais para cantar o cântico da perdição, ou trazia verdades consigo? No coro angélico do passado cantavam más sereias?444

* Nas bombonières, as balas eram francesas; nas papelarias, os caderninhos, as lapiseiras, as borrachas, a caneta-tinteiro, essas coisas de que a criança gosta tanto, eram europeias: ora eram alemãs, ora francesas. Vinha de lá o que podia, como podia, até o momento em que o Brasil declarou guerra à Alemanha e cortou o comércio com ela. Músicas europeias: éramos por todo lado penetrados pela substância europeia, quando simultaneamente começou a soprar o vento hollywoodiano. Nessa contradição, tomando contato com a res francesa, eu me maravilhava, mas de outro lado dizia: “Em todo esse mimo, em toda essa graça falta algo: falta seriedade. Vejo que essa nação descende de cruzados, mas não vejo que cruzados descenderiam dessa nação”. Santa Joana d’Arc, que admiração! Godofredo de Bouillon, nem sei o que dizer. A convocação da I Cruzada por Urbano II, o “Deus o quer”; São Luís IX, a catedral de Notre-Dame, Reims: entusiasmos! Olhava para Versailles, cujas carruagens me tinham entusiasmado tanto; olhava para o Trianon; olhava para o Petit-Trianon, para Fontainebleau, para as florestas! Como tudo ria e sorria de modo encantador! E daí para fora, quantas e quantas coisas eu admirava! 444 SD 17/1/81 242

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Mas de mim para comigo pensava: “Isto é o sorriso. Quero ver agora a carranca, quero ver o ataque, quero ver a força”. Houve o heroísmo francês durante a I Guerra Mundial, é verdade. Foi muito grande, mas era o heroísmo de algo que quase arrebentou. E arrebentou por quê? Por imprevidência. Isto porque, na paz, os franceses não gostavam de se preparar para a guerra. Ora, ou o homem na paz gosta de pensar que talvez ele tenha a guerra, ou esse homem não será capaz de vencer a guerra. A indecência, a imoralidade, os lugares de perdição, a corrupção, tudo junto era a França daquele tempo. Então, para mim era preciso selecionar, era preciso tamisar; não era só dizer “não” à influência hollywoodiana, mas era voltar-me, sim, para a influência europeia, mas nela estabelecer uma distinção. Segundo que critério? Como empurrar de lado o que era empurrável? Como conservar o que era conservável, mas desde logo tendo mais empenho em rejeitar o que era rejeitável do que conservar o que era conservável? Uma coisa conservável que eu perdesse, enfim, seria próprio à falibilidade humana; mas, uma coisa censurável que eu aceitasse, envenenaria tudo por inteiro, trincaria a minha fidelidade, a qual eu queria conservar adamantina. Então, qual era o critério? A Santa Igreja Católica Apostólica Romana! Mas como fazer a aplicação desse critério, quando em torno de mim via grande número dos que representavam a Igreja pactuar indolentemente com a influência hollywoodiana que entrava, e olhar, como coisa que não deixava saudades, a influência europeia que recuava para a noite dos tempos? Como podia inspirar-me n’Ela? Era preciso utilizar um critério de fundo de alma: ver a Igreja tal como Ela me aparecia, numa coerência distinta em alguns pontos da atitude dos homens que a representavam. Isso tudo me levava a pesar, a ponderar, a comparar, a admirar, a censurar, a rejeitar; e a cada passo em que vinha uma admiração, ir fazendo uma comparação com a res hollywoodiana, para compreender como aquilo era rejeitável. Era uma espécie de trabalho tripartite, que não era feito intencionalmente assim: “Agora vou pensar nisso”. Mas era feito quando eu estava sozinho, no momento de uma reflexão sobre, digamos, uma concha, um caramujo. Nesse momento podia vir naturalmente à tona essas considerações, que depois eram longa e longamente analisadas por mim.

* 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 243


Como era frequente com meninos e meninas de meu tempo, minha irmã e eu aprendemos piano. Ela tocava muito bem, e eu datilografava o piano. Mas, se bem que mau executor de piano, eu tinha o senso muito atento, muito esperto da interpretação musical, do significado moral e psicológico da música. As músicas que tocávamos, ou que tocavam ou cantavam algumas pessoas já adultas de minha família, eram de influência europeia. De maneira que todos os compositores europeus do século XIX que compuseram para piano, passaram pelos meus ouvidos. E passaram com insistência, no convívio familiar. De vez em quando, aparecia uma letra de música. E a letra de música, na totalidade ou na quase totalidade dos casos, era francesa. Excetuava-se uma vez ou outra, muito raramente, uma melodia cantada em espanhol. Mas a nota predominante era definidamente francesa. Francesa, espanhola, italiana, inglesa ou alemã, o fato é que era a velha Europa que musicava dentro de meus ouvidos. Era a velha Europa da qual eu conservava na retina, na imaginação e no coração alguns aspectos fugazes do tempo em que, com quatro anos, estive lá. Era, portanto, a velha Europa da qual ouvira falar sempre e sempre, nas conversas caseiras. Era a velha Europa que eu admirava num livro que meu pai trouxe da Alemanha, quando lá estivemos em 1913, “L’Allemagne Moderne”, de um autorzinho francês, e fartamente ilustrado com fotografias da Alemanha do tempo do Kaiser. Eu não olhava as fotografias da vida econômica e capitalista da Alemanha. Isto não me interessava. Mas nesse livro havia fotografias e panoramas da Alemanha artística – que maravilha! –, da Alemanha de corte – que esplendores! –, da Alemanha militar. Folheava aquele livro longamente, embevecidamente, dez vezes, vinte vezes. Mas aí as coisas já começavam a balançar. As fotografias da indústria alemã davam-me aquilo de metálico, de mecânico, de material, de inanimado no sentido próprio da palavra, ou seja, sem alma, e que é próprio a todo ambiente industrial, ainda mais em nossos dias e talvez principalmente em nossos dias. Eu analisava as cenas da corte, analisava o Kaiser. Lembro-me, por exemplo, de uma fotografia muito bonita do Kaiser e da Kaiserin recebendo as homenagens de seus pajens, numa sala esplendidamente iluminada445. O Kaiser estava em pé, fardado, com a mão sobre uma espada. Ao lado dele a Kaiserin, delicada, feminina, não tinha nada da Germânia de um monumento que vi lá e que estranhei. Essa Germânia era colossal, co445 SD 24/1/81 244

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medora de sanduíches e trazia na mão uma coroa de louros que mais dava a impressão de um chopp duplo. A Kaiserin era diferente: era uma pessoa muito simpática, elancé, distinta, muito princesa, parecia mais feita de cristal; mas ao mesmo tempo muito hirta, muito retilínea, ela parecia um jato d’água. Eu tinha muito apreço à Kaiserin, achava-a extraordinária. Nessa fotografia podia-se ver, exatamente no alinhamento do estrado, os pajens da corte com trajes à la Ancien Régime, e a sala vazia, com o Kaiser olhando para um ponto vago, e a Imperatriz sorrindo para o ar. Tinha-se a impressão de que ela sorria para o povo alemão e o Kaiser tomava atitude também diante do povo alemão. Por sua vez, os pajens também tomavam atitude diante do Kaiser e da Kaiserin, como que representando o povo alemão. E me dizia: “Que coisa bonita! Mas há qualquer coisa aqui que está dura demais446. Há qualquer coisa aqui que já cheira a mundo moderno, cheira a indústria”. De repente, viro a página e vejo outra fotografia do Kaiser, não mais vestido de uniforme tal como se vestiam os reis daquele tempo, mas em traje civil, com ar galante e uma flor no peito. Pouco mais adiante, vejo uma fotografia da Catedral de Colônia, a célebre, a famosa, a histórica Catedral de Colônia, uma das mais bonitas do mundo e que foi terminada no tempo do Kaiser, a qual trazia esculpido do lado de fora, entre as estátuas próprias ao edifício gótico, o próprio Kaiser, representado ali como profeta do Antigo Testamento. Ridículo completamente! Aí bati com a mão na testa: o Kaiser era protestante. Como põem o Kaiser numa igreja católica? Indústria de um lado, protestantismo de outro, tradição no meio, tudo formando um mau conjunto, um conjunto objetável. Pouco tempo depois assisto a um filme do enterro do Imperador Francisco José, da Áustria. Era todo o contrário: tudo como deveria ser, exceto em um ponto: faltava a força e o empenho que eu admirava na coisa prussiana. Então me perguntava: “Não há jeito de juntar essas duas coisas? As coisas austríacas, quão belas, quão nobres; aqueles uniformes, que coisa esplêndida! Francisco José, que personagem magnífico! Mas essa gente toda aqui, se colocada em cima de cavalos e dando um “hurrah” de cavalaria, não enfrenta o exército do Kaiser. Ora, essas coisas bonitas só são verdadeiramente bonitas quando elas são vitoriosas; e só são vitoriosas quando são heroicas; e só são heroicas quando são profundamente sérias”.

446 SD 6/6/81 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 245


Quer dizer, eu percebia que era preciso filtrar, era preciso tamisar o que me vinha de lá. Não podia aceitar aquilo como um bloco. Mas com que critério filtrar, com que critério tamisar?

* Hoje, decorridos tantos e tantos anos, posso dizer mesmo tantas décadas, percebo melhor que a graça – portanto, Nossa Senhora, o canal de todas as graças – me ajudava a fazer uma espécie de seletivo do senso católico, dentro do conjunto das coisas que, já no meu tempo, havia em certas igrejas. Olhava, por exemplo, as imagens da igreja do Sagrado Coração de Jesus – são todas elas da escola sulpiciana – e sentia uma grande harmonia com aquelas imagens. Eram imagens representando personagens muito dignos, muito compostos e pensava: “É o longo hábito de não fazer coisas más que pode dar àquelas figuras aquelas expressões e aqueles modos de ser”. Isso naturalmente me agradava enormemente. Essas imagens sorridentes, afáveis, pareciam prometer que concordariam em rezar por quem pedisse as orações delas. E naturalmente davam esperança, tinha-se vontade de pedir auxílio, uniam-nos a Nossa Senhora. Mas havia nessas imagens um outro lado que eu não compreendia bem. Elas fitavam afetuosamente o fiel, mas eu não encontrava imagens fitando o adversário, e que ensinassem ao fiel como ele deve ver o adversário. Não havia imagens que excitassem no fiel o ato de repulsa, o ato de vigilância que constitui uma das facetas da alma católica. Pelo contrário, aqueles rostos, que representavam de vez em quando homens de 50 ou 60 anos, eram tão macios, que tinha-se a impressão de que naquelas faces nunca havia batido as tormentas, e que aquelas frontes nunca se enrugaram com preocupações, e que aqueles olhos vistoriavam com olhares lânguidos quem estava na sua frente. Desfrutavam de um repouso e de uma vida tranquila que, pelo menos no século XX, eu não compreendia que pudessem ter. Eu era menino, não conhecia quase História, mas via que isto não podia ser. E pensava: “Se de repente essas imagens se animassem e começassem a se mexer, iam encontrar esse, aquele e aquele outro. E aí, como agiriam? Iria tudo na bondade? Há alguma coisa aqui que não está muito direita. Ou não está direita na imagem ou não está direita em mim. Porque, entre a imagem e eu há alguma coisa que claudica, que não afina inteiramente. Como resolver esse caso?” Se fosse apenas a imagem, isto não seria nada. A questão era a Igreja Católica. Aquela imagem está colocada ali pela autoridade da Igreja e 246

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simboliza aquilo que a Igreja quer que eu seja, aquilo que Ela quer me ensinar. Quem apresenta um símbolo de virtude, de algum modo apresenta uma virtude. E então, meio subconscientemente, fazia o seguinte raciocínio: “Quando a pessoa não está na posição de luta, a posição de distensão boa é esta. Esse lado está de acordo com a ideia de que tenho da Igreja Católica. Nenhuma dessas imagens ensina algo que repute mal. Podem ensinar um só tom de bem, mas mal não ensinam. Ora, que uma tão enorme organização ensine só tons de bem sem que a pata humana se meta dentro para que ensine o mal pelo meio, já aquilo é divino. Vejo aqui uma divindade. Só por manter o mal encadeado, de lado, Ela já mostra divindade. Mas por que não vem expressa a luta em nenhuma imagem?” E me perguntava: “O que diria de mim uma beata se me visse nas minhas lutas e nas minhas pugnacidades? Ela diria que isto é falta de caridade. E eu responderia a ela tal coisa, tal coisa, tal coisa. Se a Igreja dissesse o contrário, eu concordaria com a Igreja, porque a Igreja tem razão e eu não. Mas a Igreja nunca disse o contrário do que eu diria para a beata, e o que eu diria para a beata era cheio de razão”. E respondia para mim mesmo: “Quando ficar mais velho, saberei explicar melhor. Quero ver se se levanta sobre a face da terra, dentro do recinto sagrado da Santa Igreja, uma voz para dizer que não tenho razão. Se for uma voz autorizada, falando em nome da Igreja, eu me dobrarei, porque a Igreja é a Mestra e sou o discípulo. Na Igreja, tanto mais se abre os olhos, tanto mais se confia. Pelos outros só nos deixamos guiar cegamente quando se é cego, do contrário usa seus próprios olhos. Pela Igreja, não. Nós, de olhos abertos, ainda pedimos a Ela que nos indique o caminho. Só Ela vê bem”. Então eu tinha, como um pergaminho enrolado, a ideia de um dia escrever um livro que poderia ter como título: “Afirmo o que as imagens que conheço não dizem”. Com o correr do tempo, as minhas reflexões sobre isto foram tomando raiz. E por leituras de cá, de lá e de acolá; vida daquele santo, episódios daquele outro santo; depois tal Salmo e depois tal oração, fui verificando toda a trama da heresia branca em ocultar a verdadeira face da Igreja. Forjei a expressão heresia branca para designar isto. De maneira que, quando tinha mais ou menos 20 anos, isto para mim estava completamente claro e já não temia absolutamente nada, porque sabia que eu estava com a Igreja e com minha consciência de católico completamente tranquila. Quando chegou a hora de escrever o “Em Defesa da Ação Católica”, aproveitei a oportunidade e disse: “Agora vou realizar o meu plano”. 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 247


Se os senhores tomarem o trabalho de ler o “Em Defesa”, verificarão que muita coisa é contra a Ação Católica, mas muita outra coisa é também contra a heresia branca. A Ação Católica era por alguns lados o auge da heresia branca, era a heresia branca virando heresia preta. Eu atacava o erro da Ação Católica, mas atacava, pari passu, o erro da heresia branca. E tudo documentado com textos pontifícios. Isto era dito publicamente, com inteira tranquilidade. Vejam por aí como a Igreja nos ensina, até mesmo quando a fazem calar. Interpretamos o silêncio d’Ela e adivinhamos a verdade447.

* Eu achava que todo o mundo tinha o mesmo enlevo. Foi só quando tive, no Colégio São Luís, o primeiro choque com a Revolução, é que comecei a perceber que, esse enlevo, um número incontável de pessoas não tinha. Afinal, acabei percebendo que quase ninguém tinha. Ninguém tinha em que termos? Nos seguintes termos: tinham rompido com aquilo, mas originariamente tinham visto a coisa que eu tinha visto. Era como eu supunha448. Posso dizer que, tudo quanto eu via da Revolução e da Contra-Revolução, era derivado do fato de ter tido, no fundo da alma, esse olhar primeiro. Por exemplo, a iniquidade e tudo quanto eu ia achando da iniquidade: a torpeza dela, o seu modo de combater, o quanto ela estava metida nas pessoas e até que ponto cada uma era um joguete nas mãos dela. E sentia que havia uma espécie de trama geral regendo isto. A palavra iniquidade eu a acho mais musical do que a palavra mal. Iníquitas é uma palavra magnífica para dar a entender a infâmia, mas também a dimensão angélica perdida e quebrada dessa infâmia. Então, não via a menor manifestação de outras pessoas dizendo que isto era assim, nem de que algum santo tivesse notado, nem de que esse santo tivesse sentimentos internos correspondentes aos meus. Nunca! Porque o que os padres diziam, o que as imagens falavam, o que as músicas tocavam e cantavam, as orações que os fiéis liam e tudo mais, tudo mais, tudo mais, não dizia isto. E pensava: “Quereria que a Igreja recriminasse essa iniquidade. Quereria que a Igreja me recriminasse a mim pelos meus defeitos. Quereria uma Igreja Mãe, Mãe de Misericórdia como Nossa Senhora, mas que soubesse me dizer as verdades”. Mas não via isto. 447 Chá PS 14/10/80 448 CSN 3/3/90 248

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De outro lado, pensava: “Analisando a Igreja, vejo que isto está implicitamente nesta coisa celeste que vi; apenas o que acontece é que esse raio de sol está dentro do sol e não está saindo no momento, mas tem que ser que isto seja assim. Portanto, por minha conta, risco e responsabilidade, andarei por caminhos que eles ainda não andaram”. E cheguei a afirmar, em nome da Igreja, coisas que nunca tinha ouvido antes. Por exemplo: “É preciso ser combativo! A combatividade é uma virtude católica”. Só muito depois é que descobri os ensinamentos da Igreja sobre a virtude da fortaleza. A fortaleza era apresentada, então, numa tal banha de modorra e de sono, que não me dei conta de que a Igreja a ensinasse. Bom, aí vem a heresia branca e tudo mais que dela decorre. Mas vejam o lado interessante: dizendo-me baseado na doutrina da Igreja, eu fazia afirmações que não havia estudado academicamente, nem tinha base escrita para comprovar. E sustentava que era o pensamento da Igreja. Via que certas pessoas não gostavam do que eu dizia, mas ficavam quietas. Os senhores podem bem imaginar, naquele período pré-rooseveltiano e pré-kennediano449, como me entregava à truculência, mas de braços soltos, sem nenhuma inibição. E aqui está o que me interessa mostrar, ou seja, esta forma de união proporcionada por essa espécie de olhar primeiro. Sem ler nem estudar a doutrina, deduzir; mas deduzir a partir de um estado de espírito e de uma virtude que tinha notado nesse primeiro olhar e que me havia encantado. Não digo que isto seja uma forma excelsa, super-excelente de união, mas digo que é uma forma de união muito autêntica450.

*

Eu notava frequentemente que as pessoas que me cercavam tinham uma ideia de bondade toda feita de ternura. A ideia era de que se deve ser bom para com todo o mundo e nunca fazer sofrer ninguém; deve-se ter uma palavra de indulgência para com todos os pecados, uma palavra de afabilidade para com todos os erros, uma palavra de contemporização e de conivência para com todas as abominações. Porque reprimir um erro, repreender um pecado, manifestar uma 449 A expressão pré-rooseveltiano é empregada aqui por Dr. Plinio para caracterizar o espírito pacifista acalentado, no fim da II Guerra, pelo presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt (1933-1945), especialmente no encontro de Yalta, cujos conchavos permitiram que metade da Europa caísse sob as garras da União Soviética. Um herdeiro desse espírito pacifista foi o presidente John Fitzgerald Kennedy (1961-1963), daí a expressão pré-kennediano. 450 CSN 18/7/81 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 249


inconformidade com uma infâmia é fazer sofrer. E o homem nunca deve fazer sofrer o outro. Observava isto no meio em que me movia, e percebia as devastações dessa forma errada de sentimento, em nome da qual eu via serem introduzidos os costumes mais depravados e as ideias mais erradas. E aqueles que tinham costumes bons, que tinham ideias certas, que tinham, portanto, obrigação de defender essas ideias e esses costumes, e preservar os jovens da sua família contra o contágio do tempo, mostrando o preto sobre o branco, tinham moleza para com toda forma de mal, inspirada nessa ideia de que a dureza com o mal faz sofrer. Mais ainda, notava com estranheza que se procurava identificar isso com a pessoa adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo, de maneira que se entendia que esta era a caridade cristã, que esta era a bondade. Dava-se a entender que Nosso Senhor tinha passado a vida amolecendo as forças do bem contra as do mal. No começo isto me causava estranheza, mas me parecia que, do lado da bondade, tinha certo quê de razoável. Mas acabei percebendo que isto não era senão um modo cômodo de levar a vida, de não brigar com ninguém, de não fazer inimigos, de, portanto, levar a vida na maciota. Como o número de pessoas “boas” assim era muito grande no tempo da minha infância, fui chamado a prestar muita atenção na psicologia delas, na mentalidade delas, e percebi que era quase ou inteiramente um sistema filosófico que essas pessoas tinham na cabeça. E o sistema filosófico era o seguinte: – Ninguém peca por maldade. Todo o mundo, quando peca, é arrastado sem culpa por forças internas pelas quais não tem responsabilidade. Quando se toma o pior bandido, o que tem que se fazer é tratá-lo bem, agradá-lo mais ainda do que agradávamos antes de ser assassino, para ele ficar um homem bom. Tratando bem, ele cairá em si e se arrependerá, porque no fundo ele não é ruim. Pelo contrário, se se tratar de frente, ele também entesta e amanhã ficará um homem ruim Era, no fundo, a forma de vender em favor do comodismo os princípios morais que temos obrigação de defender, e permitir a maré montante da infâmia que entrava. Porque, quem abria as portas para ela do lado do bem eram esses homens de uma sentimentalidade mole. Diante disso eu me indignei e disse a mim mesmo: – Esta bondade eu não quero. E se não quero a dureza de cimento do homem moderno, não quero também o caráter mole e sem-vergonha desse tipo de gente “boa”. Falsa bondade, embuste e mentira, eu te rejeito!451 451 SD 5/4/86 250

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A cruz do isolamento Além do número grande de primos, parentes e contraparentes que eu tinha, eu conhecia um número enorme de jovens do Colégio São Luís. Comecei a procurar entre estes452 gente que me acompanhasse na luta contra a Revolução. Não encontrei ninguém, ninguém, ninguém, no sentido mais rapado e literal da palavra ninguém. O sofrimento era uma coisa tremenda, mas tremenda! Eu era um rapazinho, mas sentia o sofrimento por inteiro. Não sei se os senhores já se puseram no papel de uma pessoa que sente que nasceu para arrebanhar gente disposta a lutar contra a Revolução e que não consegue isto de nenhum modo, de nenhum jeito, e tem todos os indícios de que não vai conseguir, porque essa era a impressão. Era uma espécie de non-sense viver para o que não fosse isso, não adiantava viver. Não havia nenhum sinal de que eu fosse morrer. Tinha saúde forte, até excepcionalmente regular, firme, a morte não se punha diante de mim, eu era muito jovem. A perspectiva de levar, vamos dizer, uma vida dos 10 aos 80 anos procurando encontrar, procurando encontrar, procurando encontrar, e dizendo no fundo: “Procure, procure, porque é a sua obrigação, procure, procure, procure”, é propriamente um tormento! O peso desse isolamento era maior ainda no interior do que no exterior, porque sentia que os mais próximos de mim no fundo estavam distantes. Havia um abismo no modo de pensar, de agir, de sentir e de tudo mais. Participar das reuniões, das refeições da família, ver que tudo o que os alegrava me entristecia, que tudo o que me entristecia os alegrava; tudo o que me preocupava os despreocupava, tratavam como não sendo nada; tudo o que me despreocupava era para eles objeto da máxima preocupação, e daí para frente: é uma solidão difícil de conceber coisa igual. Bem, alguém poderia dizer: “mas eles lhe queriam bem”. É verdade, mas era a mim? Ou era a um suposto eu mesmo que eles queriam bem? Se eles me conhecessem bem, em tudo aquilo que havia na minha alma, querer-me-iam bem? Nossa Senhora dispõe às vezes as coisas assim, e temos que aceitá-las como Ela manda. Esse período me deu muita profundidade de alma, porque no isolamento se aprofundam muito mais as coisas. A pessoa entende, sente muito mais as coisas do que na companhia dos outros. 452 Palestra NC 26/2/95 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 251


A companhia dos outros tende a levar para a superficialidade, e o melhor interlocutor que há para o homem é o isolamento453. As primeiras noções da própria miséria Eu me dizia interiormente: – “Plinio, preste atenção! Você é objeto dessa graça, é trabalhado por essa graça. Você ama e estima tanto essa graça, e está perfeitamente bem. Mas você, que tem 12 anos, já sente as garras dos seus defeitos, já sente as resistências que você opõe a essa graça. Essas suas resistências resultam de alguma coisa de fundamentalmente má em você, e que te procura separar disso. Essas coisas lhe fazem bem, mas vêm até você de fora para dentro. Você é ruim, e não é digno de nada disso. Dê graças de que, apesar de você ser ruim assim, por uma ‘sorte’ – vejam o que a palavra “sorte” tem de pagão –, Nosso Senhor Jesus Cristo permitiu tudo isso para você. E o que lhe compete é ter um sentimento profundo de sua maldade e de sua indignidade. Você deve compreender que oscular a porta por amor à soleira da porta é uma honra imerecida, porque você não é digno de oscular nem essa soleira”. Quando eu fazia essas considerações, sentia em mim um efeito curioso: sentia Nosso Senhor muito mais distante de mim, mas atuando mais profundamente em mim. Depois soube que esse ato era de humildade. Não sabia que isso era humildade. Então carregava o meu ato de humildade com toda a minha força, por me sentir mais perto d’Ele por causa disso. O objetivo era, portanto, me sentir mais perto d’Ele. Eu entendia de um modo muito confuso que, se bocejasse em cima dessa indignidade e dissesse: “É verdade, mas Ele me admite. E, portanto, vamos passar por cima de todas essas considerações; se ficar pensando muito nisto, Ele de repente se dá conta de que isso é assim mesmo e me expulsa”, eu no fundo pretenderia fraudá-lo. Se eu o fizesse, começaria a apagar a fé católica na minha alma. Tomei então como princípio de conduta o seguinte: quanto mais, em meu espírito, martelar na consideração dessa indignidade, quanto mais a tiver em vista, mais estarei próximo d’Ele. Então, a martelarei até me arrebentar! À vista disso, adquiri, por exemplo, o hábito de oscular as imagens apenas nos pés, por considerar-me nem digno disso, dada essa radical maldade existente em mim, e que me tornava objeto explicável da repulsa divina.

453 Chá SRM 8/3/92 252

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Tendo como fundo de quadro essas considerações, então me sentia mais unido a Ele, e nunca com vontade de fugir. O que estava em minha mente é que só Ele tinha palavras de vida eterna. E que, portanto, era preciso estar com Ele. Não saberia viver a não ser assim454.

* Junto com a percepção de Nosso Senhor enquanto foco das coisas mais altas e mais elevadas, veio outra coisa que julgo ter sido uma graça de Nossa Senhora também, mas inteiramente oposta a isso: foi a sensação da minha própria miséria. Quer dizer, sentia perfeitamente minha pecabilidade, e como tinha tendências mudas, quietas, que a qualquer momento podiam tomar vida, virar monstros e me levar para o oposto disso. Era uma miséria já de início, na sua raiz meio congênita, que me colocava a dois passos de ser réu de qualquer castigo, e um castigo esmagador. E que me punha na obrigação de me colocar diante de Deus numa posição de humildade completa. Ele tinha muita misericórdia em tolerar que eu existisse, muita misericórdia em me ajudar para ir seguindo meu caminho. Ele, portanto, tinha o direito de fazer de mim absolutamente o que Ele quisesse. Não tinha o direito à menor reclamação. Pelo contrário, devia tomar aquilo como natural. Eu podia pedir que não acontecesse: “Vejo que não é bom que aconteça, e peço para não acontecer”. Mas eu tomava como inteiramente natural que pudesse me acontecer. Lembro-me de que havia naquele tempo uns livrinhos para crianças, muito ilustrados, mas que não tinham nada que ver com a literatura infantil de hoje. Eram editados por uma editora Weissflog (Companhia Melhoramentos de São Paulo), que tinha, no caminho que é hoje a rodovia Bandeirantes, pinheirais que não acabavam mais, e que eram destinados a fazer celulose para o papel que se usava na impressão de seus próprios livros. Em um desses livros havia a história de uma criança que morreu e que saía do quarto levada pelo anjo, e que voava em cima da cidadezinha onde tinha nascido. E a criança, nos braços do anjo, via o cachorrinho do vizinho, via o carrinho do padeiro, via a árvore onde brincava, via todas as coisas da vida das quais ia se destacando.

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Quando o li, estava doente, com uma febre enorme, não sei se caxumba. E vinha-me a ideia de que, à medida que a febre subisse, chegaria a um ponto em que morreria. Para mim foi lancinante ler isto. Antes de tudo, pela ideia de deixar mamãe. Mas, depois, porque tinha de deixar coisas que eu queria, a que era afeiçoado. Por fim, a ideia da morte, que sempre mete medo: é uma catástrofe, é um desastre. Eu tinha uma vontade enorme de não morrer, e ficava muito angustiado lendo o tal livrinho. Mas não tinha a menor revolta, a menor inconformidade, o menor nada. É um direito d’Ele, porque sou uma pessoa rasa, chata, zero, de quem Ele tem o direito de fazer o que quiser, está na ordem das coisas. E se Ele dispôs isto, tenho que me adaptar de qualquer maneira e tocar para frente455. O combate contra a falta de vigilância Naquela época eu era muitíssimo pouco vigilante. Era o menos vigilante dos meninos. Minha irmã, um ano mais velha do que eu, era muito vigilante, muito esperta. Quando chegava a hora de atravessarmos a rua na São Paulinho daquele tempo, com os seus bondinhos, os seus automovinhos, ela me segurava pela mão e dizia: “Plinio! Olha o automóvel! Olha o bonde! Olha não sei o quê!” A Fraülein dizia: “Está vendo? Que vergonha! Ela é mulher, devia ser protegida por você! Na hora de passar a rua, o normal é que o menino diga para a menina: ‘Vamos que eu te protejo’. E aqui é o contrário: é a menina que protege o menino”. Ficava pensando: “Que diferença faz? Não é porque ela é mulher e eu sou homem que vou prestar atenção numas coisas sem graça nas quais ela presta atenção”. No fundo, o que eu me dizia era: “Se ela presta atenção por mim, do que adianta prestar atenção? Tenho onde aproveitar melhor o meu tempo”. Por mais que eu fosse assim, guardava certa noção de que havia um conjunto de coisas que possuía, coisas essas que eram adequadas a mim e das quais eu gostava – e aí gostava à la eu, quer dizer, agarrava e segurava porque eram boas e faziam parte do bem-estar – por fazerem parte da dignidade e da categoria. Dignidade e categoria são coisas ótimas, pensava eu, e é preciso ter e agarrar, seja como for.

455 CSN 3/3/90 254

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Não tardei em perceber que essas coisas, que eu não tinha a preocupação em aumentar, mas queria absolutamente conservar, estavam postas em xeque e em risco por múltiplos fatores. Donde a desconfiança. Nunca tive empenho em ser um menino que se salientasse muito no meio dos outros, que tirasse os primeiros prêmios. Essas coisas, nunca. E pensava: “Eles que se arranjem com os prêmios deles, não estou muito interessado nisto, nem neles, e não me incomodo. Mas ser o palhaço dos outros, ou sofrer pancadas dos outros, o ridículo dos outros, ser o bode expiatório dos outros, isto não. Aí não há só uma questão de conveniência, há uma questão de dignidade. E há também uma questão de conservar a própria face perante mim mesmo e perante certo lumen interior, o qual não quero perder por nenhum preço, porque vale mais do que o resto de minha vida. E até lá não me deixarei levar”. Daí a minha primeira desconfiança: “Esses revolucionários querem me achincalhar, querem me reduzir a nada, me reduzir a um trapo, querem me derrotar. E percebo que eles não fazem isso de maneira bruta. Eles empregam certos meios: em certas circunstâncias eles fazem, em outras não fazem. Isto quer dizer que há certas coisas que me defendem, porque senão eles fariam imediatamente de modo bruto. Tenho que conhecer como não dar pretexto a eles de me atacarem, e tenho que conhecer o que devo acionar para me defender, porque assim nós travamos a nossa batalha”. Então a desconfiança: “Esse aqui age assim, aquele lá age de outro modo”.

* Muito mais nobremente, a vigilância começou no que diz respeito à doutrina. Percebendo que, quem possuía certo defeito, pensava de certo jeito; e quem pensava de certo jeito tinha certo defeito; e que certos modos de ser eram correlatos entre si, não custei a me dar conta de que, em última análise, tratava-se de uma constelação de situações morais e de situações ideológicas relacionadas umas com as outras. E que, dentro dessa constelação, quem pensava uma coisa, pensava uma série de outras correlatas. Desta forma eu, pelo dedo, podia conhecer o gigante. Daí ter elaborado uma espécie de sintomatologia moral-ideológica pela qual eu dizia: “Esse é assim, aquele é daquele jeito”. Essas duas coisas foram se cruzando e desfecharam na vigilância. Essa vigilância se desenvolveu ainda mais quando, à força de viver, cheguei à conclusão de que as nações e os regimes que governam as nações – regimes políticos, socioeconômicos – têm fisionomias como se fossem pessoas. E têm também mentalidades como se fossem pessoas. Portanto, o 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 255


que eu estava aprendendo a respeito das pessoas, podia-se pensar também das nações. E assim comecei a ler História e a compreender a psicologia das nações e a psicologia dos regimes. A razão pela qual me interessei pelas questões sociopolíticas foi justamente porque elas me introduziam nesses grandes seres coletivos que são as nações. Através desse quadro, passei a conhecer, a desconfiar ou a admirar os povos, observando seus defeitos e as suas qualidades. Daí também a ideia de como fazer política com uns e com outros, como tratar com uns e com outros. Isso tudo foi se formando aos poucos. E aí está como Nossa Senhora me foi preparando para dirigir a TFP456. O combate contra a preguiça e o amor crescente à combatividade Na primeiríssima infância eu tinha uma alma em extremo delicada, em extremo afetiva, e, portanto, em extremo amiga da paz, das coisas que andam em ordem, andam bem e que não se chocam entre si. As brigas e coisas assim me causavam verdadeiro horror, como algo que não deveria ser. Esta disposição de alma estava, entretanto, destinada pela Providência a sofrer os choques mais duros, mais bárbaros, e choques no que eu tinha de bom. Mas sofri também muitos choques contra a moleza da parte da Fraülein Mathilde e de mamãe. Choques nos lados bons, quem deu foi a Revolução, e em quantidade. Em 80 anos de vida não fez outra coisa senão me chocar o tempo inteiro. Aí se pôs uma alternativa, que poderia ser expressa assim: – Ou essa sua delicadeza se completa com uma grande combatividade, ou você está liquidado por não saber lutar contra os inimigos de Deus. E se você não souber lutar contra os inimigos de Deus, de todo o maravilhoso que você ama, de todo o grandioso que você ama, de toda a hierarquia que lhe entusiasma, você será um admirador vazio e sem valor, digno de ser rejeitado, porque não será capaz de se sacrificar. E agora vamos ver: sacrifique-se! Não era um sacrifício qualquer, era um holocausto. Era a perspectiva de uma vida feita de dor: “Você aguenta ou não aguenta essa vida feita de dor? Agora toque para frente!” 456 Chá SB 18/10/81 256

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Não era uma contradição, mas uma antítese: duas posições em extremo contrárias. Lembro-me de que, nesta contingência de ser tão, tão combativo, me perguntava o que faria das minhas primeiras cordialidades, das minhas primevas afetividades: aquilo tudo estaria liquidado? A resposta para comigo mesmo era: “Não renuncie a isto. Conserve-o no fundo da alma para o dia em que for tratar com gente que mereça isto. Por ora, como você vive no meio dos jaguares, saiba ser jaguar com os jaguares, saiba lutar. E, portanto, força!”457.

* Neste ponto, começa a época das provações contra a pureza, começa a época do choque com a Revolução. E vem o medo, a tentação da fuga, os instantes que não chamaria de desânimo, mas da falta de energia e de mobilização própria a quem tem de entrar na luta. De outro lado, a perspectiva da luta contra as pessoas de mentalidade revolucionária, e o esforço que isto ia exigir de mim eram tão enormes, que eu me via, de repente, não naquela espécie de paraíso de Cristo vivendo em todos, mas numa realidade que era como se o demônio vivesse em todos, exceção feita de muito poucas pessoas. E isto punha-me num dilema entre a necessidade de lutar e a preguiça de lutar. Sentia obrigado a me privar do deleitável, do contato amistoso, jovial e engraçado com os outros, das alegrias despreocupadas da minha infância, sentindo-me quase um moço velho e fanado pelas provações, pelos problemas, pelas reflexões. E isto na idade de 10, 11 anos. A minha posição “sesquipedal”, diferente da do mundo inteiro, era quase – a comparação é muito exagerada, mas vou dá-la – como de um maçarico que ia me devorando: “Eu me resolvo a isto?” O lado da consciência do mal, que no fundo era a voz da humildade, me dizia: – Veja, quando você de tal maneira se descarregava a si próprio, quanta razão você tinha. Veja bem quem você é”. Paralelamente vinha-me outro pensamento: – Se sou assim, não sou nem sequer digno de rezar a Ele, nem de levantar meus olhos a Ele, nem de me aproximar d’Ele. Ele me rejeita com um desprezo tão mais magnífico como magnífico Ele é. Se Ele não me rejeitasse, não o adoraria. Eu o adoro na rejeição que Ele faz de mim, e na punição que Ele eventualmente me dê, porque aí, nessa rejeição e nessa 457 Almoço EANS 15/9/88 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 257


punição, serei capaz de ver que Ele era quem eu pensava. Mas, de outro lado, como é que me arranjo nesse caso?” 458.

* Na descrição daquilo que seria a história de minha vida interior, os senhores podem perceber bem o que foi. No meu caso, a grande provação, a grande tentação, a grande dificuldade e o grande auxílio de Nossa Senhora. Quais foram eles? Com toda clareza e sem nenhum subterfúgio, coloquei-me o seguinte problema: “Vejo tais e tais horizontes, tais e tais paraísos de inocência dentro de minha alma. E percebo que, diante disso não posso tomar uma posição ilógica, uma posição que não seja a aceitação completa ou a recusa completa. Não posso ficar no meio termo, porque terei uma vida que não é vida, chegarei a um fim que não é fim”. Colocado diante desse problema, em determinado momento verifiquei que tinha que adquirir uma virtude que me era, de todas, a mais difícil de adquirir, e para a qual o meu temperamento era o mais oposto, e que representava para mim o mais terrível sacrifício: a virtude da fortaleza. Compreendi que, ou assumia essa virtude até onde fosse capaz de assumir, ou não daria a volta no problema. Procurei então tomá-la numa proporção tal que, se não foi a maior que Nossa Senhora me pedia, foi bem maior do que a minha moleza nativa, minha covardia nativa, minha displicência nativa levariam a tomar. A manutenção da minha inocência e da minha integridade como contra-revolucionário dependeu disso. Vi claramente esse problema fundamental, sem rebuços e sem procurar disfarçar nada, nem ocultar nada. E compreendi também a opção total: ou totalmente sim, ou totalmente não. Totalmente não, não é opção que se apresente. Logo, tem que ser totalmente sim. Agora, para ser totalmente sim, ou é um sim que seja cada vez mais sim e que não concede nada, nada, nada ao não, ou degringolo completamente. E então me pus o problema de que era fraco demais para não ser sumamente forte. Quer dizer, se não fosse sumamente forte, por fraqueza, faria toda espécie de concessões. E era só me mantendo a anos luz do mal que me atraía, que seria capaz de resistir. Fora disso não haveria resistência possível. Ou era afundar no pior dos pantanais, ou entregar-me inteiramente ao mais alto dos ideais que via diante de mim. Não havia uma alternativa possível. 458 MNF 12/4/89 258

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Santa Teresinha tinha um dito dessa natureza: “Sou fraca demais para não dar tudo”. Quando li esta frase em Santa Teresinha, vi que ela me interpretava completamente: “Ou dou tudo, mas tudo na linha do que é preciso dar, quer dizer, diferenciar-me dos outros, combatê-los, aceitar de levar a carga toda do ódio dos outros contra mim, levar uma vida de trabalho, de preocupação, de luta e de contrariedade continuamente; ou viro para o outro lado”. Quando nos livros de vida espiritual se diz que devemos fazer uma opção entre Deus e nós, e que devemos renunciar a nós mesmos para seguir a Deus, não se diz um erro, diz-se uma verdade. Mas essa verdade poderia ser expressa numa consideração muito mais requintada, pois tenho em mim, potencialmente, três “eus”. Um sou eu como “príncipe herdeiro”459 de mim mesmo. Outro sou eu entregando-me aos meus defeitos, nos quais acabarei sendo a caricatura de mim mesmo. E o terceiro é o eu do meu livre arbítrio, que escolhe entre os dois polos, ou que fica como um pêndulo entre os dois polos. O verdadeiro eu, que sou eu mesmo, é aquele em que sou a imagem e semelhança de Deus. O outro é um “eu” quase entre aspas, porque é minha caricatura, não sou eu. Há, portanto, uma escolha entre a minha autenticidade e a minha caricatura. E o fundo da escolha não é “Deus ou eu”, mas é “Deus e eu, ou a caricatura de mim mesmo”. A única felicidade durável e séria que o homem pode ter nesta vida é quando sente que ele é idêntico ao príncipe herdeiro de si próprio, e à imagem e semelhança de Deus. Aí ele tem o bem-estar da alma, tem o prumo, embora possa sofrer muito, como era o caso de Santa Teresinha, que sofria muito. Em última análise, a grande opção acaba sendo, em matéria de Revolução e de Contra-Revolução, a pessoa empinar-se completamente contra o meio em que está. Ainda que o meio seja muito bom, devemos ser tão bons que esse meio, ou melhora conosco, ou se sente distanciado de nós. Diante de todos esses problemas, percebi que havia um método na minha preguiça para o qual eu tendia, e que era de dizer “talvez”, “quem sabe”, facilitar, brincar com fogo, pôr-me em ocasião de perigo, até correr o risco de acabar poluindo minha mentalidade e, infelizmente também, o meu corpo, porque é para onde iria.

459 A metáfora “príncipe herdeiro de si mesmo” era empregada por Dr. Plinio no sentido de que cada pessoa deve desejar atingir nesta terra o grau de perfeição e o perfil moral para os quais Deus a destinou. 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 259


Pensei: “Preciso então adotar o método oposto. Se o demônio me chama pelo método das pequenas e cômodas concessões, ou erguerei diante de mim uma muralha implacável contra qualquer concessão, por menor que seja, ou estou perdido. A grande inimiga de minha alma é certamente a grande tentação. Mas é uma lorota se eu supuser que é só a grande tentação. É também o enxame das pequenas tentações e das pequenas condescendências. Portanto, ou eu, em cada pequena condescendência, pratico um pequeno ato de virtude de dizer “não” para a condescendência, ou não serei nada”. Neste ponto, o pequeno ato de virtude de todos os momentos pode valer tanto ou mais do que a reação contra uma furibunda tentação. Aliás, assim foram os tais pequenos atos de virtude de Santa Teresinha. Creio que, se ela não obtivesse as pequenas vitórias, ela não venceria as grandes460.

* No Colégio São Luís, os padres em geral eram muito moles e deixavam o mal se expandir ali à vontade. Eles não viam ou faziam de conta que não viam. E o mal podia falar mal do bem, podia caçoar do bem, podia fazer o que quisesse que eles não entravam na peleja461. Ficava pensando: – Esses padres todos do Colégio são castos, são direitos, são querubins. Mas eles não percebem que os alunos deles são verdadeiros bandidos. Há certos alunos que só seguem a companhia do mal porque os padres não os apoiam na companhia do bem. Bastaria, pensava eu, um padre daqui fazer uma conferência sobre a castidade. Se ele fizesse uma conferência dessas por semana, ao cabo de cinco ou seis meses o colégio estaria mudado. Esses padres, continuava em meus pensamentos, são ingênuos, acreditam que não tratando do assunto eles não despertam oposições, e acham que dessa maneira os ruins ficam agradecidos e entram para o balaio deles. É uma ingenuidade, porque se agisse assim com meus colegas, ninguém me ficaria agradecido em nada; mas se, pelo contrário, eu desse umas boas pauladas neles, vejo que eles recuariam. Se todos juntos, todos aqui que amamos o bem, os bons padres e os alunos potencialmente bons, não tivessem respeito humano e fossem por

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cima do mal, o mal estaria derrotado. Portanto, a moleza e a candura dos bons que são responsáveis pela audácia dos maus. Então, é preciso ser combativo e é preciso servir-se da exibição do combate como arma de apostolado. É preciso ir mais adiante ainda: fazer compreender que o bom que não seja capaz de meter medo, é desprezado. E que o bom que mete medo, ele não é querido, porque o mal não quer bem ao bom, mas ele é respeitado. Consequência: o que o homem pode querer do outro na nossa época é ser respeitado, e por causa disso deve ter uma garra, uma estampa e um olhar que incutam respeito462.

* Quando apareceu, com grande entusiasmo para mim, o Padre Castro e Costa, ele falava muito a favor dos bons contra os maus. Os alunos maus que tinham vocabulário porco, que saíam do Colégio São Luís e que muitas vezes passavam em frente de casas de perdição eram numerosos. E ele falava contra isto, mas enchia de brasas a sala. E os que mantinham a castidade ficavam contentes, protegidos e amparados; eram poucos, eram uns três ou quatro na sala. Numa ocasião, um aluno do Colégio São Luís chamado Álvaro fez uma coisa que naquele tempo era considerada um verdadeiro escândalo. Combinado com o diretor espiritual dele, ele contou no colégio para todos que ia ser padre. Isto de um aluno querer ser padre era reputado a última coisa do feio, a última coisa do ridículo, porque era contra-revolucionária. Então, o Padre Costa contou: “O Álvaro vai ser padre. Os senhores têm obrigação de respeitar, não podem caçoar, ele tem o direito de ser o que ele deve. Ele não só quer ser padre, mas ele quer e deve ser padre, porque o sacerdócio é uma vocação, um chamado de Deus, e temos de fazer aquilo que Deus pede. Portanto, é preciso ser corajoso e ir. E ele teve essa coragem de dizer, para todos vocês que não concordam com ele, que ele vai ser padre. E aqueles de vocês que acharem ruim, que vão às favas. Se Deus o chamou, não são vocês que vão impedir a ele de fazer o que quer”. Tudo isto, para mim, era néctar, porque não tinha a intenção de ser padre, era muito definida em mim a ideia de ser leigo e de trabalhar como leigo na Contra-Revolução, a favor da Igreja, portanto. Mas de qualquer maneira via com muito agrado que outro quisesse ser padre, e via sobretudo com agrado um padre tomar a defesa do bem com esse calor.

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Quando ele contou este fato, coincidiu com um período em que a minha inclinação para não travar a batalha contra-revolucionária – quer dizer, não falar, não brigar, não discutir, mas ficar como um Zé Bobo qualquer olhando para as coisas, e até ouvindo desaforos sem reagir –, era uma inclinação colossal e era um defeito muito grave. Agora, os senhores vejam como a graça se serve às vezes das coisas para reformar uma pessoa. O padre disse, ouvia aquilo tudo, eu estava gostando: – O Álvaro outro dia fez uma coisa que aprovo inteiramente, e se fizerem a mesma coisa com vocês, imitem o Álvaro. Ele disse que ia ser padre para um rapaz que perguntou já dando risada: ‘Álvaro, você vai ser padre? O que é que é isso?’ O Álvaro disse para ele: ‘Vou sim, e você o que é que tem com isso?’ Ele respondeu: ‘Tenho, porque você é meu colega e eu não quero que um colega meu tome uma atitude ridícula’. O Álvaro deu um passo para frente e disse: ‘Eu vou te ensinar’. Abriu o braço e meteu uma bofetada colossal nele. O outro, em vez de ficar furioso, ficou quietinho e nunca mais reagiu. Porque uma boa bofetada, dada na boa hora, torna moles os maus e torna fortes os fracos. Os senhores não podem fazer ideia do bem que esse casinho me fez. Eu entendi que deveria ser assim e tive uma reação no interior da minha alma que me levou energicamente a querer ser combativo. A partir desse momento é que comecei a ser uma pessoa combativa e enérgica. Veio da bofetada do Álvaro, contada pelo Padre Castro e Costa463.

* Na São Paulo do meu tempo de moço, que já não era a São Paulinho do meu tempo de menino, mas ainda não era a São-Paulaça que está aí, havia ainda muita coisa de europeu autêntico, de gente vinda da Europa que abria aqui casas de doces, disto, daquilo, formando um comércio autenticamente estrangeiro. E havia algumas confeitarias e alguns restaurantes que eu frequentava com verdadeiro gosto. Então, por exemplo, íamos muito a um barzinho464 suíço-alemão, muito mais alemão do que suíço465, chamado Rütli, de donos suíços.

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Havia ali uma porção de coisas pitorescamente rudes, saborosamente rudes466: salsichas esplêndidas, pães pretos fabulosos, a que me entregava com delícias. E devo dizer que não percebia nada de mal nisso467. Então, era uma boa comida, uma boa cadeira, uma boa bebida, e a gente sentia seu corpo bem tratado um pouquinho como no Céu Empíreo, servindo como ponto de partida para elucubrações da alma. O que pode haver de forte em uma porção de coisas da Europa, com toda a espécie de variantes, da Suíça para a Rússia, passando pela Alemanha, aquilo tudo me vinha ao espírito como a degustação de uma fortaleza ideal que seria muito diferente de um lugar onde tudo fosse mole, onde tudo fosse aprazível, fácil e com aquela moleza das coisas já em estado de deterioração, e que não me agradava absolutamente. Mas não me agradava por quê? Porque sentia a verdadeira necessidade de ter firmeza de princípios e de caráter. Se é verdade que hoje em dia, graças a Nossa Senhora, consegui essa firmeza, por alguns lados tinha o contrário disso. Eu era o arquétipo do mole, do pirão de batata, do “entregadão”, e sentia a necessidade de reagir contra isso. Ao admirar esses povos e esses valores, construía diante de mim a figura de um ideal de homem, que era o homem da civilização cristã. Eu poderia ir a um Catecismo e encontraria ali a confirmação de tudo quanto estava vendo nesse sentido. Para mim, isto era capital, porque se tratava de ser como a Igreja. Mas, de outro lado, encontrava ali também alguma coisa que atraía. E para mim o ponto importante era fazer penitência, mas fazer a penitência que consistia em procurar ser bom, ser como a Igreja quer que a pessoa seja, o que é uma rude penitência. Procurar ser seriamente direito, seriamente católico, seriamente bom, é rude, muito mais rude do que qualquer cilício! Porque, quando nos colocamos seriamente dentro dessa tarefa e a admiramos, temos entusiasmo por ela, desejamos fazê-la, somos obrigados a nos segurar a nós mesmos com mão de ferro. Portanto, tudo isto que poderia parecer para qualquer outro uma distração, para mim era uma vida espiritual. Teria exultado se eu tivesse encontrado um modelo de santo com esses problemas, e que eu visse preceder-me nessa escola, procurando elevar-se até onde a Igreja manda. Mas não conhecia.

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As vidas de santos que havia, eram as que os senhores conhecem, ocultam o que possa aparecer na vida de um santo nesse sentido. Então, fazia de uma noite do Rütli, mas de quase tudo que via – o Rütli é um exemplo que estou dando para me tornar inteligível –, eu fazia uma noite de vida espiritual. Coisa que meu primo, por exemplo, não percebia, porque as cogitações dele eram outras e as vias também. Mas íamos tocando o barco. Algo filtrava do que eu pensava e ele gostava468.

* Concomitantemente com os primeiros contatos que tive com o mal, estava patente que a luta iria marcar toda a minha vida. A fidelidade seria não apostatar, ser cada vez mais de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora, da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, luz suprema de nossa vida, pátria e mestra de nossas almas, a ser seguida e obedecida sem nenhuma reserva, porque Ela é a Igreja verdadeira do único Deus verdadeiro. Entendi que, para ter coragem de lutar, era preciso compreender bem todo o valor da luta, toda a beleza da luta, toda a santidade da luta. Quanta dificuldade nisso! Quanta vidinha de santo apresentando incompletamente a fisionomia moral desse santo! E então apresentando um santo mole: “Fulano de tal entrou para o colégio. No tempo do colégio, ele levava uns pães e dava para os pobres que encontrava no caminho. Oh! santo menino”. Lia uma dessas histórias e pensava: “Se tivesse que obter de mamãe cem pães para distribuir para os pobres todos os dias, e não tivesse que sustentar essa minha luta, acabaria obtendo dela os cem pães. Porque é muito mais fácil chegar para um pobre, dar a ele um pão e ele me dizer: ‘Muito obrigado, que Deus o ajude’, e sairmos um sorrindo para o outro”. Isto é incomparavelmente mais fácil do que encontrar com um colega e ele me dizer: “Como é? Você ainda anda com aquelas suas ideias cabeludas e malucas?”, e eu ter de responder: “Não, cabeludo e maluco é você!” Então, começar a admirar a luta, a beleza do esforço, o ideal que nos leva ao próprio sacrifício e o esforço que o homem faz para fazer este sacrifício é uma coisa parecida com a sensação de um homem que passasse a vida inteira sem se mover e que de repente se move. Ele tem um alívio. É uma batalha andar, pode ser uma caceteação, pode ser um sacrifício, mas andou! Que alívio! 468 CSN 23/5/92 264

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Lembro-me de uma revista que representava um sultão do Oriente levando uma vida mole, sentado em cima de uma almofada colossal, num terraço todo de mármore, olhando um panorama muito bonito e fumando um tubo chamado narguilé. Para os senhores verem qual é a miséria humana, lembro-me de que me pilhei olhando para aquele sultão e pensando: “Como é mais agradável ser este sultão do que ser Plinio Corrêa de Oliveira! Porque fica sentado, não faz nada, fica fumando, olhando para esse horizonte na vida mole. Como a vida mole é gostosa!” Aí pensei: “Não pode ser! Não é o que Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou. Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou a vida dura: expulsar do Templo os vendilhões, increpar os fariseus, correr toda espécie de riscos, acabar sendo arrastado para um abismo onde queriam jogá-lo, e na hora de cair no abismo, Ele passar por entre eles e retirar-se. Isto porque Ele era Deus. Eles não sabiam, não queriam acreditar, mas Ele era o Homem-Deus. Todo o mundo se reverenciou diante d’Ele, Ele passou tranquilo e foi para a frente. Mas a morte o esperava. Ele então lutou e morreu gloriosamente”. Então eu exclamava: “Ah! bom, eu compreendo, essa luta é uma verdadeira beleza”469. Daí uma batalha em que compreendi uma coisa que não compreendia antes. Como me tinham formado com a ideia do menino bonzinho dentro de casa, compreendi que isto não bastava. Era preciso um menino que metesse medo e soubesse lutar. Então, segundo as necessidades da luta, fui adquirindo aquilo que deveria adquirir. Isto se acrescentou ao que já tinha, de maneira que fui me tornando um menino discutidor, polêmico, sabendo meter medo nos outros, sabendo me impor. Daí outro acréscimo, que é o de batalhador, tanto mais quanto a ideia da batalha, da guerra, tinha perdido o seu significado original de batalha pessoal, para tomar o aspecto de batalha pela cruz, pela Fé, pela religião. E, portanto, estava tudo feito para ir para a linha carolíngia, medieval. Bem, veio-me a certeza de que, ficando homem, teria que levar uma vida inteira de polêmica. Teria de começar a aprender, com aqueles que julgava mais dotados – ora era um padre, ora era um parente, ora era um político europeu cuja fisionomia moral via nas páginas de um jornal –, modos de fazer, modos de me apresentar, modos de ser que completassem isto.

469 SD 10/10/92 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 265


Assim, com o tempo, se formou o conjunto que está aqui diante dos senhores470.

* Depois, por revistas de história, tomei conhecimento das guerras de protestantes contra católicos. Os senhores não podem imaginar como fiquei entusiasmado com a reação católica! Aqueles protestantes encontraram diante de si uns católicos catolicões, da linha dura. O Duque de Alba, por exemplo. E a palavra guerra começou a me parecer cheia de beleza. A paz é bonita, contanto que não custe o seguinte sacrifício: nunca mais na vida haver guerra. Porque, para o homem é preciso haver guerra, como é preciso haver doença, como é preciso haver decepções. O homem está na terra para apanhar e para lutar, e se ele não apanha nem luta ele não vira homem. Tem que haver isto, custe o que custar. Mais ainda: este é o ponto alto da vida. É como um excursionista que quer subir uma montanha. Para ele, o ponto alto é o ponto do seu maior cansaço, é o ponto em que ele está mais escangalhado, mas é o ponto em que ele subiu até em cima e tem a montanha a seus pés: ele domina o horizonte. Assim é também a luta com a vitória. A vitória vem quando a pessoa está para dar os seus últimos haustos, mas Nossa Senhora lhe ajuda e ele dá os últimos passos, faz os últimos sacrifícios, os últimos arrojos confiando n’Ela. Em determinado momento, faz-se a serenidade em torno dele, o adversário desaparece e ele domina sozinho, obediente a Nossa Senhora471.

* Muito cedo compreendi enlevado as ruínas da Cristandade. E compreendi que o meu porvir, aquele porvir em função do qual sacrificava o meu futuro, era um porvir de lutas. De lutas acérrimas, de lutas terríveis, em que devia me preparar para dar tudo quanto um homem pode imaginar que possa dar de si. Toda a renúncia, todo o empenho, todo o sacrifício, todo o tempo, toda a força de impacto, tudo o mais eu deveria dar.

470 Chá SRM 8/5/89 471 SD 10/10/92 266

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Preparava-me para entrar na arena mítica na qual eu vivera até então, para afinal lutar. O campo de batalha era propriamente o polo magnético para onde a agulha de minha bússola apontava. Dentro da placidez do meu temperamento, tinha uma resolução firmíssima: “É isto. É preciso lutar! Como todos os exemplos da beleza da luta do passado que tinha me ficavam na memória, julgava que a luta era não só bela, mas era necessariamente bela. E que a vida do batalhador daria lugar, – quer derrotado ou vencedor; o importante era ser fiel aos verdadeiros ideais – a cenas lindíssimas, a episódios nobilíssimos, a cargas de agressões fenomenais472. O combate contra o romantismo e a impureza Neste período tinha também outra coisa. É que em comparação com a Revolução, certas músicas e certas formas literárias do século XIX pareciam-me contra-revolucionárias. E levei algum tempo para perceber que elas, no fundo, eram revolucionárias também, se bem que de uma Revolução atrasada. Havia certos compositores que naquela época me diziam muito. Desde logo e sempre, mas com prolongamentos de condescendência até hoje – não de cumplicidade, mas de compreensão – Mozart. Eu não conhecia ainda Boccherini. Um lado ruim disso era que eu tinha certa admiração por Chopin. E via na “Polonaise triunfal” o lado heroico, que é o contrário do cinema hollywoodiano. Na marcha fúnebre eu via um hino de seriedade, o oposto dos funerais hollywoodianos. Certos trechos de Lamartine e de outros literatos franceses do século XIX me pareciam elevados, grandiloquentes e eu não percebia diretamente o que tinham de revolucionário. Posso afirmar que aí não havia conivência com a Revolução. Havia uma não-percepção. Por ingenuidade, via um lado que existia mesmo, e que, por contradição em relação às coisas modernas, era contra-revolucionário. Mas não via o lado revolucionário. Quando fui percebendo que eram ruins, fui deixando também. Confesso que até Verdi teve certa repercussão na minha alma. A marcha da Aída eu reputava o auge da Contra-Revolução. Eu tinha um gramofonezinho e comprei um disco com essa marcha, não só pela música, mas também pelo fato de ser feito de uma matéria vermelha. Por aí podem ver as cogitações infantis misturadas com muita inocência. Aquilo me encantava.

472 SD 11/6/83 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 267


Fico pasmo como todo mundo tinha paciência em casa com a minha música. Porque naquele gramofone se podia graduar a intensidade, e aqueles cantores italianos cantavam a plenos pulmões, e eu tocava aquilo a plenos pulmões, sem a mínima ideia sensual ou sentimental com relação a Aída; não havia nenhuma Aída no meu espírito, nem nada disso. Mas havia outra coisa que era a seguinte: aquilo me parecia grandiloquente, o grande drama do teatro. E imaginava a Scala de Milão repleta de gente, o rei, a rainha – a Itália era monarquia naquele tempo – assistindo à peça na loggia. E o ator e a atriz cantando a plenos pulmões e sustentando aquela espécie de desafio, de maneira a simbolizar a pompa social e monárquica, real, em termos culturais, no seu esplendor. Tinha a audição perfeitamente normal, portanto, não por carência de audição, mas por truculência, punha o gramofone no volume mais alto, pois eu queria aquilo. E aquela “Aída” enchia a casa. Não havia quem se lastimasse com aquilo. E depois eram duas, três, cinco vezes a “Aída”. Posteriormente fui percebendo que a coisa era outra. Enfim, tudo mudou e fui deixando essas coisas473.

* O problema do romantismo eu tive mais tarde. E foi em parte constituído em torno do problema da pureza – não tenho nenhuma vergonha de dizer, porque isto é assim com toda criatura humana –, e em parte constituído por literatura: romancinhos infantis de revistas francesas, fecundas e deliciosas no apresentar matérias como estas, não diretamente impuras, mas com qualquer coisa de sentimental que não convinha; romancinhos alemães também, e alguma literatura italiana que entrava pelo meio. Tudo isto junto criava uma atmosfera de romantismo. Essa atmosfera de romantismo começou a me tentar em pleno primeiro combate de Revolução e de Contra-Revolução que tive. E pude perceber que ela me amolecia, e que eu teria de desistir do combate da Contra-Revolução se quisesse embarcar por aí. Nossa Senhora ajudou-me então a optar pela varonilidade, pela admiração do heroísmo como meio de preservar-me do romantismo, o grande inimigo disso. Esses combates foram duros. Em primeiro lugar, porque sou truculento de natureza: aquilo que quero, quero muito. E, portanto, também as minhas apetências são violentas.

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De nada disso tenho vergonha de afirmar. Teria plutôt vergonha de ser songamonga, não atraído por nada, nem frio nem quente. Poderia me perguntar: se eu fosse mais generoso, não teria extinguido essas lutas in limine, e elas não teriam apresentado menos perigo? Aí, sim, quando comparecer diante de Nossa Senhora, disso tenho medo. Mas, enfim, Ela que me perdoe. Mas o fato é que esta alternativa se pôs, e ela exigia de mim uma luta truculenta. Mais do que isto, ela exigia honestidade. Porque essas coisas todas existem nos desvãos da alma. É nos desvãos da alma que se aninham as semi-concessões sórdidas. Não digo sórdido apenas enquanto lúbrico, não é isto. Pode ser também isto, mas é sórdido enquanto concessivo, pouco honesto, comportando transigências com aquilo, a pessoa mente para si mesma. E aí entram os deleites. Por exemplo, para meu temperamento, ser compassivo é uma coisa deleitável. E ser combativo não é uma coisa deleitável. Não se diria. Mas ter pena, condoer-me com alguém e arranjar a situação de alguém me é delicioso. Pelo contrário, dizer “não” e estar na contingência de criar o sofrimento para outrem, e bater com o nariz na porta e sentir o sujeito gemer do outro lado, e manter-me nessa posição, isto é uma violência sobre mim. Mas a honestidade me obrigava a isto. Pois percebia que se eu cedesse a uma compassividade contrária aos princípios, eu me deixaria levar. Mais ainda. Se, ao ceder a uma compassividade conforme aos princípios – o que é sempre louvável e às vezes obrigatório – eu me deleitasse no gosto dessa compassividade, ficaria desarmado e acabaria sendo compassivo contra os princípios. De maneira que, fazendo o ato de bondade, não levava em relação ao indivíduo que beneficiei a efusão de minha bondade tão longe quanto estaria no meu modo de ser. Quase que ocultava a efusão de minha bondade para com ele, na hora mesma em que estava sendo bom, de medo de mim mesmo. Muitas vezes passo por ruim em razão disso, porque as pessoas não percebem o que vem de efusão atrás de minha atitude, no sentido contrário. Agora, isto exige uma honestidade para cada caso concreto que não é fácil474.

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474 CM 19/1/86 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 269


Está na natureza do homem concebido no pecado original que o problema da pureza comece para todo mundo e se ponha para todo mundo. Evidentemente, como já disse, se pôs para mim também. Esse problema tem isto de terrível: na alma da pessoa mole, a impureza amplia todas as molezas a um grau inimaginável. Todas as molezas são cúmplices dela. A fortaleza luta a favor da pureza, como reciprocamente a pureza luta a favor da fortaleza. Nossa Senhora me deu a graça de entender bem como a impureza era o contrário de todas as coisas adamantinas que tinha visto desde pequeno, e como ela era a inimiga frontal a ser combatida, mas combatida mais uma vez com a imolação da moleza. Preservar a pureza e mantê-la é uma luta. Sobretudo em certa idade, é uma batalha. É uma batalha sobre os sentidos, mas é uma batalha em torno da previdência também. Devemos expulsar, devemos enxotar a falta de vontade de ser previdente, de perceber, de ser consequente, de ser lógico, de evitar as ocasiões mesmo as mais remotas, os estados de espírito mais remotamente contíguos à impureza. Era favorecido por um senso da pureza muito grande, portanto também por um senso muito agudo da ignomínia que havia na impureza. Mas o apelo para a impureza era um apelo enorme475. Não me foi fácil preservar a minha virgindade. Não que eu tivesse muitas seduções externas. Até poucas, porque Nossa Senhora sempre me favoreceu, de tal maneira que nunca fui objeto de grandes assaltos do sexo feminino. Mesmo em ônibus, em trens, em viagens, em hotéis, essas coisas todas, até eu fazer 20 anos, no longo período em que eu não era congregado mariano, e que estava exposto como um outro qualquer, frequentava os ambientes como um outro qualquer, elas sempre se mantiveram à distância. Mas uma coisa é o que vem de fora para dentro, outra coisa é a que vem de dentro para fora. Mais ou menos entre os 10 e 13 anos, a batalha foi enorme. Naturalmente, entrava o demônio e a maldade da carne deteriorada pelo pecado original476.

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MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Já comentei atrás com quanta severidade me examino e julgo-me a mim mesmo. Uma das razões disto é o medo de que me escape alguma coisa que acabe me pondo no inferno. Não falo a toda hora disso, mas isto ocupa um grande papel no meu horizonte mental. Se na minha crise de adolescência resolvi permanecer na castidade, foi por medo do inferno. O amor de Deus se somou depois a isso, mas o pavor do inferno foi o que me moveu nessa circunstância. O temor obriga-nos a deixar de lado algumas coisas opostas ao amor. Removido o obstáculo, o amor então se evola477.

* O grande fator que me reteve na pureza foi perceber que, cedendo à impureza, teria de largar determinados valores de alma. Era, no fundo, a inocência que eu não queria de nenhum modo perder. Isto de um lado. De outro lado, sabia que era pecado contra o sexto Mandamento. No meu tempo, os padres ainda ensinavam o sexto Mandamento em toda a sua integridade. De maneira que estava vendo bem claramente como eram as coisas. Nossa Senhora me deu como graça, de início, como já disse, a resolução firme, porém não heroica, de resistir, custasse o que custasse. E, por causa disso, adotei o “agere contra” de Santo Inácio de Loyola, pelo qual procurava ver até o fim o mal que me atraía. E então fiz a análise interna de tudo quanto era tendência velada para a sensualidade, a qual depois levava para a sensualidade não velada. Tratava-se, pois, de desbastar tudo isso e não fazer concessão nenhuma, e manter-me, portanto, à margem de toda concessão478.

* Quando comecei a ser solicitado pela impureza, notei que um dos preços que pagaria pelo prazer impuro seria a perda da paz. A razão determinante para não ceder à tentação foi evidentemente o Mandamento: “Deus proibiu e eu não quero”, apoiado logo de perto pela noção de que, pelo prosaísmo que cercava o ato, eu imergiria no prosaico caso caísse na impureza e a achasse normal.

477 Jantar EANS 26/2/91 478 CSN 22/1/83 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 271


Entretanto, numa linha menor, ajudou-me muito na batalha da pureza a ideia de que iria perder essa paz. E para ajudar-me a mim mesmo na virtude da pureza, fiz o inventário de todas as delícias da virtude. Isto a pessoa não deve deixar nunca. Não há ocasião em que me deite na cama sem que não tenha a preocupação de fruir o prazer inocente de estar deitado e de ter o repouso. É uma categoria do espírito o fruir as castas alegrias inocentes. São os prazeres da inocência primeva. Os que pretendem gozar a vida pensam que o deleite da vida está só nos prazeres sofisticados. É um engano. Ou o indivíduo é inteiramente aberto a gostar intensamente dos prazeres simples e elementares, ou ele não compreenderá os prazeres requintados, os quais vão sendo conhecidos só ao longo da vida. Quando somos pequenos, não se é muito sensível a eles. Ao longo da vida, não deve haver uma ruptura, deve haver uma soma: a criança, nas suas horas, deve gostar muito dos prazeres simples anteriores, mas o tempo do lazer vai sendo tomado pelos prazeres novos, como por exemplo – estou descrevendo o meu itinerário – o da entrada da História e dos personagens míticos. Então é toda a história europeia, a vida de corte, a vida dos santos. Aí entra um desejo de maravilhoso, mas muito mais aculturado do que o do soldadinho de chumbo. Entra depois o descobrimento da lógica e o encanto pela lógica. E então me lembro das minhas alegrias diante do silogismo. Engendrar um raciocínio e dizer: “Eu agora, com isto, laço o outro, que coisa magnífica!” A minha deleitação diante da lógica era o prolongamento da degustação do prazer inocente que tinha, deleitando-me por exemplo diante do sorvete. São reversibilidades. Para mim, o prazer simples e primeiro nessa ordem de coisas era a felicidade religiosa que sentia vendo, por exemplo, mamãe rezar ao Sagrado Coração de Jesus em casa. Também a felicidade de olhar para dois ou três santinhos que eu tinha da minha Primeira Comunhão, e que eu havia pregado na parede. Eram impressões primeiras, mas ricas, cheias de elementos especificamente religiosos. Em um segundo momento, veio-me a alegria de perceber que aquelas impressões não vinham só na hora de rezar, mas era uma felicidade que se estendia à consonância daquilo com tudo quanto na ordem temporal, portanto na minha vida concreta, eu gostava. E quando gostava, era porque, em última análise, aquilo se rattachait, ligava-se às impressões religiosas do Coração de Jesus. Isto se dava também quando eu não gostava de certas coisas, por terem, no fundo, uma incompatibilidade com o Coração de Jesus.

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MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Veio-me então a ideia de sociedade temporal católica, de civilização católica; também de coisas que aceito, de coisas que rejeito e contra as quais luto, estabelecendo uma escolha do meu universo. Tinha nisto uma felicidade enorme, um bem-estar enorme, mas com suas horas de tranquilidade, com suas horas de sorvete, tudo somado e formando um todo que até hoje não abandonei. Daí também vinha a consolação espiritual. E na consolação espiritual, o auge de felicidade da minha vida. Porque nada se compara à consolação espiritual. É a felicidade por excelência, porque é o antegozo mais próximo do Céu. Não pensem com isto que eu nado em consolações, nem que tenha estados místicos. Tive algumas consolações espirituais, guardo delas uma memória atenta e muito analítica: quanto mais a analisava, mais me deleitava. Se não tivesse a esperança de que ainda em vida isso voltará, não teria coragem de viver. Se tivesse a sensação ou convicção de que já cumpri o que Nossa Senhora pode querer de mim, também não teria coragem de viver. Pediria para morrer e entrar na presença de Deus, de Nossa Senhora e no mundo dessas consolações. Porque, no Céu, não é a mera consolação. É algo como se fosse o contato com Deus misturado com a alegria: não se distinguem no caso479.

* Uma coisa que passei a notar, sobretudo naqueles que eram impuros, foi uma espécie de impossibilidade de levar a vida como eu entendia que ela devia ser levada. E aí a observação começava a ter certo sentido e a minha descompostura contra a impureza começava a tomar figura. E então com razão. Assim, de uma posição inicial infantil, partiu uma crítica razoável. Não havia menino impuro tranquilo. Quanto mais era impuro, mais era agitado, mais era frenético, mais se dava a correrias de um lado para outro, batia com os pés, se movia continuamente, não se sentava, não parava nunca e não refletia nunca. Estava continuamente brincando ou mexendo com os outros, e continuamente fazendo agitação em torno de si. Ele tinha pavor da solidão e daquela serenidade de que eu tanto gostava. Ele não a compreendia. Aquilo para ele seria um necrotério. Ora, se é legítimo gostar tanto das coisas de que eu gostava, não é legítimo não ter nada disso na própria vida. E percebia que a impureza 479 MNF 11/5/84 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 273


expulsava isto completamente da vida, da mentalidade, dos espaços temperamentais do menino; e destramelava completamente aquele menino, de maneira tal que era a fonte da desordem dele. E aí a minha crítica, que no ponto de partida era subjetiva, passou a tomar um ar objetivo. Prestava atenção num ou noutro menino puro que conhecia e notava a sua continuidade de temperamento. Não estavam sujeitos a, em certo dia, ficar numa “alta” muito grande e noutro dia numa “baixa” exagerada, mas estavam normalmente como deveriam ser. Pelo contrário, os meninos impuros – já aos 10, 11 anos! – em geral estavam sujeitos a umas “altas” e a umas alegrias delirantes. E quando se sentiam sozinhos, caíam imediatamente na tristeza. A impureza tinha horror à solidão. E isso tudo me chamava a atenção. A impureza tinha também horror à reflexão. Os meninos impuros eram irrefletidos, não tratavam de coisa séria nunca. Quando não estavam em correrias, faziam bobagens como coleção de fotografias de artistas de cinema e de quanta porcaria há. Eles não tinham sossego. E percebia-se neles uma consciência desassossegada. Quando acordavam, pulavam da cama e já começavam a se mover. Quer dizer, não tinham esses estados de transições graduadas, em que se passa por cada patamar sem excessos, nobremente, delicadamente. Não havia entre eles o conceito de amizade, quer dizer, essa nobre posição de alma por onde se conhece alguém e se tem uma afinidade de espírito a propósito de uma coisa mais alta, de um ideal mais alto. Entre eles, as amizades se faziam e se desfaziam ao léu, não tinham absolutamente consistência alguma. Nem eram amizades, eram hábitos de um estar com outro, está acabado. Desde logo percebi também que os impuros eram sujos. Eles rolavam pelo chão, misturavam-se com a poeira, sujavam os dedos, não se lavavam. O senso da limpeza desaparecia ou minguava com a impureza. E mesmo quando se tratava de um menino de muito boa família, bem-educado, e ao qual era, portanto, vedado fazer certas coisas prosaicas, ele as fazia de boa vontade, achando agradável, achando uma variedade fazer isso. A impureza, portanto, dominava todo o horizonte deles, e eles não tinham interesse por mais nada. Por causa da precocidade sexual dos tropicais, a impureza se tornava uma monomania, e tudo quanto não fosse impureza passava para eles a ser monótono na vida. Ia percebendo que essa impureza os modelava erradamente em tudo, e os tornava tortos em tudo. Tudo neles indicava um frenesi, um desregulamento inteiro do ser, com uma hipertrofia das preocupações físicas e um subdesenvolvimento das coisas mentais. E uma completa ausência de sentimento para tudo quanto não fosse imoralidade. 274

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Essas coisas estavam tão ao contrário do que entendia que a vida devia ser, que compreendi que a impureza trazia consigo a desordem moral. E que, conferindo certo prazer de momento, esparramava a agitação e o infortúnio na vida inteira. Compreendi também que a impureza era um incêndio. E que se quisesse conservar aquela bela e nobre placidez a que estava habituado, era uma razão a mais para eu me manter puro e deitar todo o empenho para ter a pureza na minha vida. Ficando um pouco mais velho, não tardou que começassem a cair na minha mão revistas contando historietas amorosas. Lia essas historietas, que não eram pornográficas. A pornografia era raríssima. Nunca tive em mãos uma revista pornográfica em minha vida. Essas revistas tinham contos em que o assunto amoroso entrava pelo meio. E não tardei a perceber que aquilo era uma coisa que tirava completamente a serenidade da vida, a tranquilidade da vida, a felicidade de situação. Era um X que passava a gostar de uma Y, e ele então ficava monomaníaco: só queria ouvir falar dela, correr atrás dela o dia inteiro. Então, só se interessava em ter fotografias dela, em conversar com ela, passar pela casa dela. E depois em pensar coisas assim: “Estará ela gostando de um outro? Vou perdê-la? Não vou perdê-la? Como é que fica?” O romance podia dar em casamento, mas se não desse em casamento, dava na mesma tendência de querer se satisfazer sem casamento. E pensava: “Como é esse negócio? Não há um só caso desses que não dê num sofrimento medonho para um dos dois lados. Vale a pena sofrer tudo isso? Vou examinar as pessoas casadas: esses estão casados porque se gostaram assim no começo, mas no que é que deu?” Notava que o efeito disso sobre meus companheiros de idade era, de duas, uma: – ou dava num amolecimento medonho, e então ficavam preguiçosos, lerdos, moles, pensando o tempo inteiro em coisas desse gênero; e, portanto, incapazes de estudar, de refletir, de fazer qualquer outra coisa; – ou, pelo contrário, ficavam frenéticos para ganhar dinheiro, porque viam que, se ganhassem dinheiro, teriam meios de se impor. Então eram acometidos por um desses frenesis: compram bicicleta, vendem bicicleta para comprar motocicleta, vendem isso para depois comprar aquilo. Desde muito cedo notei que todas as coisas nobres que o indivíduo ia adquirindo com a idade – por exemplo as boas maneiras –, não colavam no fundo da alma da pessoa que tinha se entregue à impureza. Todos os hábitos da civilização cristã dentro da qual ele estava encaixado, e da qual ele tinha muitas vezes esplêndidas aparências – muito bem educado, muito 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 275


bem vestido, muito agradável, possuidor de certa cultura – tudo isto era uma aparência, porque de fato ele estava corroído no fundo. Assim, essas suas maneiras externas que poderiam corresponder às que ele teria tido em menino se tivesse sido puro, dentro da alma dele a impureza tinha feito uma devastação pior, que se exprime no seguinte: o homem impuro é incapaz de princípios. Princípios, o homem impuro não tem, lógica de ferro ele não tem. A impureza corrói a capacidade mental de ter princípios. Quer dizer, o menino agitado tinha sido lixado e envernizado pelas exigências sociais, mas ele ficava pobre e vazio como era em menino. Assim era o mocinho e assim depois era o homem. A cada geração, certifiquei-me de que o caruncho era mais fundo, e aquelas aparências de beleza eram mais débeis; e haveria um momento em que tudo não seria senão caruncho480.

* No período de minha vida de adolescente, em que tive muita dificuldade em matéria de pureza481, na defesa da minha tranquilidade era muito previdente e dizia: “Afinal de contas, é para mim muito mais agradável levar uma vida plácida, sossegada, em vez de me meter nessas mixórdias todas da impureza. É uma batalha vencer a impureza, é verdade. Não vale a pena? Parafraseando a expressão francesa, “le jeu en vaut la chandelle” – o jogo vale a vela. Vamos fazer o jogo”. Não era esta a razão determinante, mas isto me ajudava. A razão da opção era o Mandamento e o amor inocente à virtude. Mas para consolar a parte do homem que chora aquilo que deseja ter e não tem, serviu muito a experiência própria de todo o sossego que tinha na época da inocência e de toda a agitação trazida pelo deleite proibido. O sossego do homem puro é uma coisa que não se compara com coisa alguma. E esse gosto pelo sossego é ordenado. Observava bem os meus colegas: todos já tinham namoradas, mas levavam uma vida de cachorro, porque os protocolos do namoro ya en aquel entonces, naquela quadra, eram complicados. O sujeito tinha que passar 20 vezes de automóvel diante da casa da Dulcineia dele, e bater a buzina. Ela então aparecia na janela.

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Mas acontecia que, às vezes, ela não estava, e ele ficava rodando ali de automóvel. E enquanto não tivesse visto a namorada duas, três vezes por dia, ele se punha aflito. Em certas ocasiões, ele encostava o automóvel e ficava passando naquela calçada a pé. Então a moça aparecia um pouco no terraço, cumprimentava fingindo surpresa, ele também fingia surpresa, e depois ela voltava para dentro. Dizia eu: “Estou aqui em casa bem sentado, com sombra e água fresca. E agora, ficar batendo perna em frente da casa da Fulana? Automóvel nem tenho! Não posso fazer isto de taxi. Também fazer o papel de bobo: anda, anda, anda… e aquela boba não vem. Não! Vamos tocar isto de outro jeito”482. Rezava então a Nossa Senhora. Não preciso dizer que Ela sempre me socorreu maternalmente, até que em certo momento, pela graça d’Ela, aquele vagalhão de tentações foi empurrado de lado. E comecei a gozar a vida calma e sem tentações. E me lembro de fazer este raciocínio: “Agora que estou na pureza absoluta, percebo como sou mais feliz do que imaginava ter felicidade com o ato” 483. Por aqui se entende bem que a castidade é, a seu modo, o prazer supremo da vida. O homem casto tem aquela desnecessidade de outrem para encontrar o seu próprio equilíbrio. E tem aquele bastar-se a si próprio sem “torcidas” nem dependências, nem anseios, nem sonhos, pelo qual lhe é frequente na vida de todos os dias estar em horas em que ele pode isolar-se e fruir do seu próprio ser, independente de quem quer que seja. Se eu devesse enumerar as graças recebidas outrora, esta seria uma que deveria incluir na enumeração com especial gratidão484. As duas escolas podiam se diferenciar neste ponto: a escola da pureza trazendo consigo todas as formas de tranquilidade; e a escola da felicidade impura chegando até à droga. Formavam duas vertentes. Dizer que para obter essa calma não lutei, não é exato. Tive tentações de ceder para entrar na civilização da “torcida” e do nervosismo. Mas a apetência da “torcida” e do nervosismo nunca fez parte das coisas que pudessem me atrair.

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482 CSN 2/2/85 483 MNF 17/3/95 484 MNF 25/9/86 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 277


Batalhei, lutei, rezei, por assim dizer desesperadamente, a Nossa Senhora485. Por causa da graça que tive na igreja do Coração de Jesus486, sentia-me animado a pedir a Ela essa graça da pureza. E pelo favor d’Ela, essa graça sobreveio487. A luta, qual foi? É que ainda não conhecia o que era a graça de Deus. Tinha a ideia de que era apenas a batalha contra a solicitação do corpo, e tinha dificuldade para vencer essa solicitação pavorosa. Então comecei a rezar a Nossa Senhora e dizer: – “Os outros são melhores do que eu e não precisam de milagre para ser puros; eu preciso, porque não me aguento, eu preciso. Dai-me uma força qualquer para conseguir manter-me na pureza”. De fato, eu estava pedindo a graça. Por assim dizer, descobri a graça nessa ocasião488. Aos poucos, as tentações foram cessando, dando origem a uma situação que tenho a impressão de que foi de fato uma verdadeira graça, pois em nenhuma idade posterior estive sujeito ao aguilhão da impureza, embora mantivesse inteiro o livre arbítrio. E dou graças de nunca ter querido, de nunca ter cedido. A cessação dessa atração, com a compreensão simultânea cada vez mais intensa da felicidade da alma casta, acho que veio diretamente de Nossa Senhora489. Se tivesse cedido nessa matéria, não teria visto o que estou vendo hoje em dia490. NOSSA SENHORA DAS VITÓRIAS ENTRA NO CAMPO DE BATALHA A bondade de Dona Lucilia, pórtico da devoção a Nossa Senhora É preciso dizer que, no início de minha vida, por causa do exemplo de mamãe, a minha devoção ia toda para o Sagrado Coração de Jesus. Embora eu visse mamãe rezar também a Nossa Senhora, ela tinha uma espécie de

485 MNF 26/6/86 486 Esta graça será o objeto de explanação do próximo item. 487 Chá SRM 6/1/91 488 SD 18/8/84 489 MNF 26/6/86 490 MNF 1/12/88 278

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relacionamento especial para com Nosso Senhor Jesus Cristo, e falava menos de Nossa Senhora e do Imaculado Coração de Maria. Formou-se então em mim um estado de espírito pelo qual tinha uma espécie de dificuldade com a devoção a Nossa Senhora. Eu a compreendia, achava-a bonita, mas tinha uma espécie de objeção que, no fundo, dizia o seguinte: “Reza-se demais para Nossa Senhora. Devia-se rezar menos para Ela e rezar mais para Jesus Cristo”. O que me fazia rezar pouco para Ela. Era uma péssima disposição de espírito. Não sabia que Nossa Senhora misericordiosamente me reservava um caminho especial nas vias d’Ela, de tal maneira que, mais tarde, em virtude das circunstâncias que vou relatar daqui a pouco, a minha vida acabou sendo um ato de devoção contínua a Nossa Senhora e, por meio d’Ela, a Nosso Senhor Jesus Cristo. Como se operou essa mudança?491

* Na minha primeira infância, durante certo tempo – não sei precisar se foi um mês, se foram seis meses – com frequência ficava à noite acordado, com insônia492. E me sentia perdido na escuridão, no negrume, no incógnito das horas que não passam nunca, da noite que não acaba mais e que é meio ameaçadora, meio misteriosa, e do vago mal-estar que sempre acompanha essas insônias493. E vinha-me aquela desolação: “Não tenho com quem falar, não tenho o que fazer, não tenho o que dizer, não posso descer porque minha cama é muito alta, tem umas grades e se for descer eu caio. O que vou fazer?”494 Mamãe deixava sempre abaixado o lado da grade de minha cama que dava para a cama dela, como que dizendo: “Faça o que você quiser, porque sua mãe é sua mãe”495. Então eu passava da minha cama para a cama dela e começava a mexer no seu rosto e dizia: “Manguinha!”, pois não sabia dizer “mãezinha”496. Em certo momento, literalmente me sentava sobre o seu peito, como se fosse um banco, e abria os olhos dela com as minhas mãos. 491 Palestra NC 28/2/95 492 Chá EPS 27/1/95 493 Jantar EANS 11/10/85 494 Chá EPS 27/1/95 495 Jantar EANS 11/10/85 496 SD 14/8/93 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 279


Os senhores estão vendo que eu já fazia um pouquinho de estratégia política: o avanço, o recuo, o conforme, o estudo da situação. Algumas coisas que eu teria que exercer várias vezes no futuro, comecei a exercer sentado sobre o peito de minha mãe e abrindo os olhos dela, quer dizer, jogando a cartada do máximo risco para sair de uma aflição que chegava ao extremo497. De repente, ela saía do fundo do sono dela e me via olhando para ela. Quando acordava, imediatamente ela se punha sentada na cama e se voltava para mim: – Filhinho, o que é que você quer? – Uma história. Notava que ela estava morta de sono. Mas contava a história e depois perguntava: – Você quer outra, meu filho? – Quero! Isto era feito com tanto afeto, entrando tanto dentro dos lados miúdos de minha alma, e me querendo tão bem por ser filho dela498 que, à medida que ela ia falando, ia me tranquilizando e o sono naturalmente ia subindo499. E quando ela de novo me fazia deitar na cama, vinha-me a reflexão: “Propriamente, com ela eu me arranjo até o fim. Ela não me recusa nada, e com ela posso contar até onde for500. Confio inteiramente nela”. E, como recíproca, sentia-me inteiramente dela. Daí um entrelaçamento à fond perdu, até onde fosse o caso501. Isto tudo preparava o quê? Evidentemente uma coisa muitíssimo maior: a devoção a Nossa Senhora. Quando rezo a Salve Regina e o Memorare, tenho a impressão de fazer com Nossa Senhora um pouco como abrir os olhos de mamãe, não no sentido físico da palavra, em que eu me atrevesse a pôr meus dedos nas pálpebras celestes d’Ela, nunca! Mas em dizer a Ela coisas que abrissem a sua misericórdia, como os meus dedos abriam os olhos de mamãe, compreendendo que súplica do filho aflito é ouvida e que eu posso suplicar com confiança, porque nunca serei mal recebido502. 497 Jantar EANS 11/10/85 498 Chá EPS 27/1/95 499 SD 14/8/93 500 CSN 31/8/85 501 CSN 25/4/92 502 Jantar EANS 11/10/85 280

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A graça de Nossa Senhora Auxiliadora Um fato veio marcar de uma vez por todas a minha devoção entranhada a Nossa Senhora. No Colégio São Luís, os padres distribuíam toda semana um boletim a cada aluno, no qual aparecia a nota da matéria lecionada. Em cada matéria havia dois quadradinhos especiais: um era Aplicação e outro Comportamento. A Aplicação visava premiar o bom aluno, ou censurar quem era relaxado, preguiçoso e não aprendia bem. O Comportamento considerava a conduta do aluno durante a aula. Essa distribuição era feita à tarde das sextas-feiras. Na segunda-feira, o aluno tinha que levar o boletim de volta, assinado pelo pai. Em geral, as minhas notas eram elevadas, eram até bem elevadas; e mesmo nas matérias de que não gostava, as notas que tirava ainda eram suportáveis. Minha conduta na aula também era boa. Era um aluno muito disciplinado e a nota de comportamento, graças a Deus, era quase sempre 10, a mais alta nota, em todas as matérias. Quando chegava em casa, Dona Lucilia me dizia: – Filhão, você trouxe seu boletim? Eu tirava o boletim da minha pasta e entregava a ela. Ela lia com atenção e depois em geral me beijava, e às vezes me dizia: “Fico especialmente contente por causa da nota dez de comportamento”. E me dava sempre a mesma explicação: “Ninguém tem culpa de ser burro, tem culpa de ser ruim. Um aluno que tenha nota baixa de comportamento não é burro, é ruim; ele não presta, ele não gosta da ordem, não gosta da disciplina, não gosta do esforço. Prefiro mil vezes ter um filho burro, mas bom, a um filho inteligente, mas ruim. O homem vale pelo caráter. A inteligência é uma coisa de valor, mas secundária. Sem inteligência se vai para o Céu, sem caráter não se vai para o Céu503. Ouvia aquilo com muito afeto e achava que ela tinha razão504. Aconteceu que certa vez a nota de comportamento em Geografia veio péssima: seis, muito abaixo do que Dona Lucilia toleraria. Olhei aquilo e fiquei pasmo: “Mas não fiz nada na aula de Geografia! Isso é uma injustiça ou um engano de quem copiou essa nota. Mamãe agora vai ficar indignada e eu não sei o que fazer. Preciso tirar essa nota de dentro do boletim”. 503 Palestra NC 28/2/95 504 CSN 26/7/80 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 281


Aí veio a criancice, a imbecilidade: como estava chovendo muito, pensei: “Vou lá fora, abro o boletim, cai água da chuva em cima e digo a mamãe que fui ler o boletim na chuva e pingou água na nota de Geografia”. Mas aconteceu uma coisa incrível: chovia em torno da nota 6, mas a água não caía em cima do 6. Então perdi a paciência e, com o dedo, molhei resolutamente a nota 6. Aí verifiquei que ficou uma coisa inaceitável. “Abyssus abyssum invocat”, diz a Escritura, quer dizer, um abismo atrai outro abismo, um erro atrai outro erro, uma má ação atrai outra má ação. Então resolvi escrever 10 em cima de tudo isso com a minha letra. Ela estava farta de conhecer minha letra e veria que era o auge da infantilidade e do não saber fazer as coisas505. Cheguei em casa, encontro mamãe no quarto de toilette dela, sentada numa cadeira de balanço. Eu me lembro perfeitamente da cena506. Ela, com o seu afeto habitual, disse: – Filhão, você tem seu boletim aí? Eu costumava entregar esse boletim aberto, mas desta vez o entreguei fechado, como se adiantasse fechar. Ela abriu e disse: – O que é isto aqui!?507 – Mamãe, eu recebi esse boletim e estava na chuva. Dentro da chuva mesmo quis ver qual era a minha nota e choveu em cima do boletim508. – Não, não me venha com essa história. Aqui em cima você escreveu dez. O que é que tinha embaixo? Eu disse: – Mamãe... tinha 6. – Ah?! O que é que você fez para o seu professor de Geografia lhe dar seis? – Não fiz nada, mamãe, mas saiu essa nota. E não querendo aborrecer a senhora, arranjei um jeito de pôr uma nota que deixasse a senhora contente. Ela ficou indignada e disse: – Eu prefiro tudo na vida a ter um filho falsário. Ela pronunciou a palavra falsário de tal maneira que, no modo de ela dizer, sem poder compreender bem o sentido da palavra, senti todo o mal existente na falsificação. 505 Palestra NC, 28/2/95 506 SD 9/7/94 507 Palestra NC 28/2/95 508 SD 9/7/94 282

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E ela prosseguiu: – Fique sabendo o seguinte: na segunda-feira seu pai irá ao Colégio São Luís, vai mostrar ao padre e vai pedir a ele para verificar nos assentamentos do colégio qual é a sua verdadeira nota. Se foi uma nota errada que copiaram mal, você está perdoado; mas se sua nota real for seis, você não vai ficar mais um dia sequer em São Paulo. Eu vou mandar você para o Colégio do Caraça. Fiquei pasmo: – Longe de casa, mamãe? – Sim, senhor. Não quero ter falsários perto de mim. Caí em vários abismos. Para mamãe não me querer mais perto dela, os senhores podem imaginar o que era: uma coisa horrorosa! Ela ao mesmo tempo me disse que esse Caraça era uma espécie de penitenciária para criança, o que não correspondia à verdade: era um dos melhores colégios do Brasil. Mas ela tinha essa informação errada e me disse509: – Eu vou mandar você para lá, vou passar um ano sem te ver e você também vai passar um ano sem me ver. Vou sofrer muito mais do que você, porque eu quero mais bem a você do que você quer a mim. Mas, se é para seu bem, eu mando você para lá. Você lá se lembre de que sua mãe está chorando infeliz por você estar na cadeia, mas você vai para a cadeia. Não pense que eu vá visitar você lá, porque mãe de falsário... eu não quero saber disso510. Cada vez que ela dizia uma coisa dessas, que contrastava com o carinho requintadíssimo e dulcíssimo com que ela me tratava, eu me sentia mais achatado. Depois, mais esmagado pelo meu próprio delito: “Falsário, que coisa horrorosa!” Nem sabia bem o que era o falsário, mas me sentia um falsário511. Ela não se aproximou de mim para que eu a beijasse, como era habitual. Saí. E fiquei numa depressão, uma coisa que os senhores podem imaginar, mas não disse nada a ela. Não pedi perdão, o que foi mal feito; deveria ter pedido perdão512. Passou-se a sexta-feira, o sábado, um sábado triste e aborrecido para mim. 509 Palestra NC 28/2/95 510 Palestra NC 28/2/95 e SD 9/7/94 511 Palestra NC 28/2/95 512 SD 9/7/94 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 283


No domingo, resolvi ir à Missa na igreja do Coração de Jesus. Estava muito agitado. Acordei cedíssimo, pois costumava acordar mais tarde aos domingos. E fui sozinho à Missa, sem mamãe nem papai, sem minha irmã, sem ninguém. Quando cheguei à igreja, esperava encontrar junto à imagem do Sagrado Coração um banco para me ajoelhar. Mas vi uma cena inteiramente diferente da costumeira. Sendo o Colégio do Coração de Jesus um internato enorme, todos os meninos desse internato estavam entrando na igreja para assistir à Missa. E não havia banco livre. Senti-me rechaçado por todos os lados, por Deus e pelos homens. E pensava: “Andei mal, sou um falsário, uma coisa horrorosa. Vou me espremer nesse canto direito da nave lateral, e aqui vou ficar bem no fundo, pois ainda há um lugar. Neste lugar, a um miserável de um falsário, a misericórdia de Deus ainda olha, e ele aqui pode rezar durante a Missa”. Por causa das colunas, não conseguia ver o padre e acompanhar os seus movimentos. Eu me levantava, ajoelhava e acompanhava a Missa pelo movimento do povo. Também não conseguia ver a imagem do Sagrado Coração de Jesus. A única imagem que via era uma imagem de mármore alvíssimo, branquíssimo513 de Nossa Senhora Auxiliadora, com o Menino no braço e uma coroa na cabeça, mas uma coroa aberta, porque se comparada com Nosso Senhor Ela é uma súdita. Ele é o Filho de Deus, é o Homem-Deus e, portanto, não há ninguém que se iguale a Ele. A simbologia é muito bonita, pois Ela tem o Menino no braço esquerdo e no braço direito Ela tem um cetro. O cetro é para dar a entender que o mando era d’Ela. O Menino está risonho, como quem está contente de ter dado o cetro para a Mãe, e Ela está olhando para os fiéis514. Por um jogo natural de ideias me veio à cabeça que eu, um falsário, se me dirigisse ao Sagrado Coração de Jesus, não seria atendido, mas que, se pedisse por meio d’Ela, eu seria atendido. Porque assim como eu fazia tudo quanto mamãe queria, assim também Ele faria tudo quanto a Mãe d’Ele queria. E pensei o seguinte: – Ela manda no mundo inteiro, e tudo quanto Ela quer Deus faz. Ela participa de algum modo da onipotência de Deus, porque Deus a ama como Mãe, e posso bem imaginar como Ele a ama, imaginando quanto eu quero à minha própria mãe. Se eu, que sou finito e sou um trapo destes, 513 Palestra NC 28/2/95 514 SD 9/7/94 284

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amo minha mãe tanto, tanto, tanto quanto a quero, imaginem Deus, que é infinito, como amará a Mãe d’Ele! Mas imaginem também como é a Mãe de Deus para que Ele a tenha escolhido por Mãe. Ela deve ser formidável! Não sabendo o que dizer a Ela, rezei uma Salve Rainha. Eu só sabia a Salve Rainha em português e rezei em português. Aí foi a primeira vez que prestei uma atenção séria na Salve Rainha que estava rezando. O texto me pareceu lindíssimo – e é mesmo – e convinha para a minha situação. Salve em latim é uma saudação, é como quem diz “bom dia” ou “eu te saúdo”515. Mas eu estava no primeiro ano de colégio e era muito pernibambo no latim. E entendi que Salve era “salvai-me”516. Então, dizendo Salve Rainha, eu entendia: “Salvai-me Rainha”. E, ao dizer Mãe de Misericórdia, pensei: “Está vendo? Mamãe é tão, tão boa, mas não diria dela que é mãe de misericórdia. Já Nossa Senhora é muito melhor do que ela. Nossa Senhora é Mãe de Misericórdia. Mãe já indica a ideia de misericórdia. Mãe de Misericórdia é uma mãe toda feita de misericórdia. Portanto, por mais que mamãe me queira bem, Nossa Senhora me quer mais do que mamãe. Ah! por meio d’Ela eu escapo dessa história517. Enquanto pensava assim e olhava para a imagem d’Ela – excluam qualquer ideia de milagre, não se deu milagre nenhum –, sem que houvesse no rosto de mármore da imagem o menor movimento, alguma coisa se passou pela qual eu tive a impressão de que Ela me olhava cheia de bondade e com muita pena de mim. E, por certo sorriso que os lábios d’Ela não definiram – os lábios não se moveram, a imagem é de pedra, não podia se mover –, tive a impressão de que Ela sorria como quem me conhecesse: “É o Plinio, filho de Dona Lucilia, filho do Dr. João Paulo”, e me olhava com uma misericórdia e uma bondade especiais518. Nisto podem ter concorrido fatores naturais, mas creio que foi sem dúvida preponderantemente uma coisa sobrenatural. Embora não fosse milagre, foi uma coisa sobrenatural. Por tudo quanto se passou em mim, e pelos efeitos que teve, não poderia deixar de ter sido sobrenatural519. Hoje tenho certeza de que foi uma voz da graça, mas naquele tempo não tinha ideia disso, por falta de instrução, de leitura sobre essas matérias520. 515 Palestra NC, 28/2/95 516 SD 21/7/90 517 Palestra NC 28/2/95 e SD 21/7/90 518 Palestra NC 28/2/95 519 CM 11/11/90 520 CSN 16/7/94 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 285


Aquilo produziu na minha alma uma verdadeira reviravolta. Eu compreendi, então, quem era Nossa Senhora e o papel de Nossa Senhora para com cada um de nós quando andamos mal, não só quando andamos bem. Então, sem ouvir nenhuma voz nem nada disso, alguma coisa me disse, no interior de minha alma, o seguinte: “Confie, Nossa Senhora rezará por você, tudo isto se resolverá e sua mãe ficará bem com você de novo”. Na realidade, quando voltei para casa, encontrei Dona Lucilia tal e qual. E não podia deixar de ser, porque ela só iria tomar conhecimento do boletim no dia seguinte. Passou-se assim o domingo. Na segunda-feira, a horas tantas, Dr. João Paulo foi ao Colégio São 521 Luís e, quando chegou de volta, eu fiquei de orelha em pé522. Ele nem percebeu que eu estava em casa. Mas sua fisionomia era calma, segura, tranquila, preocupado com o chaveiro que não funcionava bem. Eu pensei: “Isto é bom. Se ele está pensando no chaveiro, é porque não está preocupado comigo e tudo correu bem”. Meu pai era de Pernambuco e os pernambucanos antigos tinham o hábito de chamar as esposas de senhora. Ele chegou para ela e disse: – Senhora, aqui está o boletim de vosso filho. Mamãe o pegou logo e disse: – O que é que houve? – O Padre Reitor do colégio, com quem conversei, deu muita risada quando viu a borradela que o Plinio fez aqui. Depois me disse que ele achava que deveria haver um engano de cópia, porque o Plinio era em geral de uma boa educação e de uma correção excepcional nas aulas. Mas como pode sempre acontecer que um menino faça alguma coisa, iria falar com o professor de Geografia para saber o que foi. O Padre Reitor saiu, levou algum tempo, entrou depois com o boletim na mão e com uma nota escrita por ele, dizia que tinha havido um engano da secretária, e que a nota que dera ao meu comportamento era dez523. Aí mamãe abriu os braços para mim e me disse: – Vem cá que sua mãe vai lhe dar um beijo524.

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Eu vumm! em cima dela525: voei! E o assunto se resolveu. Mas essa foi a menor das soluções: a grande solução foi eu ter descoberto Nossa Senhora526. E começou aí a minha devoção a Nossa Senhora527. Aquela graça me marcou inteiramente a alma, queira Nossa Senhora que para todo o sempre, por toda a eternidade528. Marcou-me como? Cada um é feito de um determinado modo. Está no meu feitio ter uma apetência e uma tendência para o absoluto. Tal coisa só é tomada a sério se se pode reportar ao absoluto; se não puder reportar ao absoluto, não tomo a sério, é bagatela, eu não me interesso. E um dos pontos nos quais a alma humana quer notar o absoluto é no desinteresse do afeto de que ela é objeto. Ela pede para ser querida pelas razões adequadas, sem vantagem para ela e sem vantagem para quem a quer. E, de um modo absoluto, vai assim até o fim do caminho. Foi o que notei no como que olhar da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora naquela ocasião. E foi o que me tocou529. Tinha bem a noção, pelo meu senso do ser, da inteira equivalência entre a massa do gênero humano e aquela posição em que eu estava: “Eu sou sórdido e não valho nada, tal como esta gentalha toda que não vale nada, pela simples razão de que somos homens. Mas vejo que a misericórdia de Nossa Senhora é infatigável e que me dá isto a todo momento de novo, de maneira que de minha parte é só querer. Logo, é só querer para todo mundo”. Não tive a mínima noção de ser um privilegiado, um especialmente querido, nada! Era um católico como outro, encontrando-me nos apuros em que todos se encontram530 A gente compreende bem que ver uma tal Senhora ter pena, ter uma compaixão que envolve tudo, até mesmo aquele que a ofendeu indiscernidamente, e dá qualquer coisa que lhe seja pedida, isso toca no absoluto. Esse absoluto eu não via em mamãe. Eu sentia e notava bem, primeiro, que ela era incomparavelmente menor do que Nossa Senhora. Em segundo lugar, que em rigor ela era pecável e Nossa Senhora não. Em toda veneração

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que tinha para com mamãe, sentia nela a alma que está em via531, que está ainda a caminho da perfeição532.

* Foi aí que apareceu o arco-íris: Nossa Senhora! Aí é que apareceu o “sorriso” da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora na igreja do Sagrado Coração de Jesus533. Aí que compreendi: “Neste vale de lágrimas, tudo desfecha, em última análise, num caos. Mas esse aparente caos se desfaz, porque Deus mesmo, superior a tudo quanto eu poderia pensar d’Ele, excogitou este meio: deu-me a sua Mãe para ser também minha Mãe”. Então, os senhores podem compreender como fui correndo em direção a Ela e a Ela me agarrei. E disse: “Aqui está a solução!” Compreendi também outra coisa: sendo uma criatura humana gerada no pecado original, e ordinário como sou, esta é a solução para sempre! Porque, se não me apegar a Ela, não há solução possível. A batalha está a priori perdida. Pelo trato d’Ela, pelo jeito d’Ela, pela bondade d’Ela, sinto que, com Ela, por ser eu tão ordinário, tão fraco, tão ruim; e por ver em mim essa semente de mal tão marcada, sinto que Ela tem uma pena especial de mim. E que, enquanto meço a profundeza das minhas chagas, Ela sorri para mim. E que Ela como que me diz: “Meu filho, é verdade, você tem razão. Mas muito mais eu sou boa do que você é ruim. E passo por cima disso, lhe afago, lhe quero bem, lhe trago para junto de mim”. Daí: “Salve Regina, salve Regina, salve Regina”. E daí também o sentido da palavra “salve” que na infância entendia como “me salvar”. Não entendia o “salve” como uma saudação. Não estava pensando em protocolos quando eu naufragava. Era S.O.S. mesmo. Daí também veio o fato de Nossa Senhora me dar graças de ir vencendo aos poucos os meus defeitos.

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531 CSN 30/1/82 532 CSN 21/2/81 533 Sobre este fato, v. páginas 284-285. 288

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Tudo isto junto constituiu a trama da minha vida espiritual. Mais tarde vim a conhecer São Luís Maria Grignion de Montfort534. Os senhores compreendem como tudo isto estava preparado para eu me agarrar em São Luís Grignion de Montfort inimaginavelmente. Depois entrou, também, a “A alma de todo apostolado”535, as encíclicas papais que li torrencialmente. Tudo isto se pôs normalmente536. As duas formas de auxílio de Nossa Senhora Em suma, o auxílio de Nossa Senhora se deu em minha vida de duas formas diferentes. Uma foi a intercessão d’Ela, a proteção especial d’Ela para que todas as coisas corram de maneira a realizarmos a nossa vocação. Mas isto deve ser entendido no sentido de que nos aconteçam coisas boas, mas também coisas doloridas necessárias para a realização dessa vocação. Então, muitas vezes o auxílio se manifesta paradoxalmente no infortúnio, na tristeza, sem o que teríamos andado mal, ou pelo menos não nos teríamos aperfeiçoado tanto quanto era do desejo d’Ela. E a isto devemos chamar de auxílio, muito embora possa não parecer auxílio. O auxílio, nessas horas, pode parecer consistir em nos vermos livres daquele infortúnio, daquela tristeza. Mas, na verdade, o auxílio consiste em termos que passar por essas provações. Há outro modo de entender o auxílio, que é ao mesmo tempo compreendermos ser intenção de Nossa Senhora que soframos determinada coisa, mas que, por sentirmos que o sofrimento está forte demais, tenhamos a possibilidade de dizer: “Minha Mãe, dai um jeito de eu ficar igualmente bom sem sofrer tanto”. São, portanto, duas formas de auxílio. Posso dizer que no curso de minha vida fui largamente auxiliado por esses dois modos. Mas não saberia determinar se fui auxiliado mais por um modo do que por outro. Santa Teresinha tem a este respeito uma comparação muito bonita. Ela afigura uma criança andando pela mão do pai, e o pai vê no caminho uma pedra na qual ela pode tropeçar. E então, na presença da filha, afasta 534 A obra-princeps de São Luís Maria Grignion de Montfort, o “Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem”, teve papel marcante na vida espiritual de Dr. Plinio. (v. página 25). 535 Sobre este livro, ver nota 6 da página 14. 536 MNF 12/4/89 2a PARTE – A ATMOSFERA PRIMAVERIL DA VIDA ESPIRITUAL 289


aquela pedra. Vendo aquele gesto de proteção paterna, a criança fica agradecida ao pai. Mas poderia ter acontecido que este mesmo pai, passando antes, sem a criança, pelo mesmo trajeto, e vendo a pedra, fizesse a seguinte previsão: “Homem, minha filha bem pode tropeçar nesta pedra. Vou afastá-la do caminho para que isto não aconteça”. A criança, neste caso, foi favorecida de antemão pela providência paterna, mas, por ignorar o fato, não teria como agradecer. Pode ser que essa criança nunca venha a conhecer o cuidado prévio do pai. E não terá condições de manifestar seu agradecimento. Mas o que fica devendo ao pai é mais ainda. Achei muito fina essa comparação de Santa Teresinha. Então, a gratidão nossa a Deus, portanto também a Nossa Senhora, deve estender-se inclusive em relação às graças que nós não sabemos que recebemos. Ninguém presuma conhecer todas as graças que recebeu, porque não conhece. E devemos agradecer as graças que não percebeu, que às vezes foram maiores do que as percebidas. Agora, não posso nem de longe, em uma vida longa como a minha, fazer o balanço de todos esses auxílios. Mas tenho obrigação de saber que há essa variedade de auxílios, e de ser muito grato por todos eles. Então, a minha gratidão deve envolver os auxílios que não sei se recebi, mas de fato recebi. Em todas as etapas da realização de minha vocação, o assunto auxílio foi sempre o mesmo, não se caracterizou por coisas diferentes. Surgia um caso que parecia uma parede fechada e que não havia caminho; de repente, a parede se abre e surge um magnífico caminho. Anda-se mais um pouco, a parede se fecha de novo e sai uma catástrofe. É-se ajudado em vários pontos, e acaba-se saindo vivo da catástrofe e com a possibilidades de se mexer. E daí sai outra epopeia. Em todos os campos de minha vida – quer dizer, no apostolado, que é minha vida; o resto são os acessórios de minha vida – dá-se a mesma coisa: catástrofe, esperança, inviabilidade, realização, vitória; nova catástrofe, dentro dessa catástrofe uma pequena vitória; no fim um cambaleio, no cambaleio um golpe, e no golpe uma vitória537.

537 Chá SB 24/5/84 290

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Índice Onomástico A

Abreu, Casimiro José Marques de, 136 Agnès de Jesus, Irmã, 143 Agostinho, Santo, 19 Alacoque, Santa Margarida Maria, 229 Alcântara, Dom Pedro de, 156 Álvaro, (aluno do colégio São Luis), 261-262 Anticristo, 101-226 Antúnez, Fernando, 13 Aquiles (mitologia grega), 203 Aquino, São Tomás de, 19-55-169 Assis, São Francisco de, 18

B

Bartyzel, Jacek, 13 Belmira (empregada doméstica), 224 Bemelmans, Benoît, 13 Blackwell, Morton, 13 Boccherini, Luigi Rodolfo, 267 Bonaparte, Napoleão, 105 Bouillon, Godofredo de, 242 Bourbon-Duas Sicílias, Princesa Maria Pia da Graça de, 156 Brentano, Funk, 127 Bricout, J., 20

C

Cantoni, Giovanni, 13 Caruso, Enrico, 83-154 Castro e Costa, Pe. João (SJ), 206-261-262 Castro Magalhães, Da. Rosée, 129

Ch

Champeaux, Guilherme de, 147 Chopin, Frédéric François, 242-267

C

Condé, Príncipe Luís I de Bourbon de, 72 Corrêa de Oliveira, Cons. João Alfredo, 65 Corrêa de Oliveira, Dr. João Paulo, 285-286

D

Daniele, Leo Nino, 13 d’Arc, Santa Joana, 242 ÍNDICE ONOMÁSTICO 291


Davi, Rei e Profeta, 18-171 De Mattei, Prof. Roberto, 13-17-102 Decker, Bett, 13 Disraeli, Benjamin, 154 Dom Chautard, Jean-Baptiste, 14 Domingos de Gusmão, São, 197

E

Elias, Santo (Profeta AT), 9 Etzel, Herr, 130 Ezcurra, Alejandro, 13

F

Fra Angélico, (Giovanni da Fiesole), 197 Francisco José, Imperador, 154-245 Francisquini, Pe. David, 13 François d’Assise, Saint, 18 Fürstenberg, príncipe de, 147

G

Garrigou-Lagrange, Pe. Reginaldo, 176 Gladstone, William Ewart, 154 Goffiné, Pe. Leonard, 191 Grignion de Montfort, São Luís Maria, 25-101-288

H

Hector (mitologia grega), 203 Heldmann, Fraülein Mathilde, 102-129-173-176-203-205-206-215-254-256 Hindenburg, Paul Ludwig von, 154 Horvat II, John, 13 Hugo de São Victor, 147

J

Jaurès, Jean, 47-68-154 Joergenssen, Johannes, 18 Julião Eymard, São Pedro, 18 Julien Eymard, Bienhereux Pierre, 18

K

Kaiser, Frederick William Victor Albert (imperador Guilherme II), 154-244-245 Kaiserin, Hermínia Reuss de Greiz, 244-245 Kennedy, John Fitzgerald, 249 Kinker, Herr, 53

L

Leão XIII, Papa, 101 Lenôtre, Georges (Louis Léon Théodore Gosselin), 127 292

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Lindenberg, Adolpho, 13-14-15 Lorrain, Claude (Claude Gellée), 131 Loureiro Foresti, Prof. Luís Felipe, 13 Loyola, Santo Inácio de, 190-206-271 Luís IX, São (Rei), 242 Luís XIII, Rei, 104-231 Luís XIV, Rei, 104-105-198-231 Luís XV, Rei, 104-153 Luís XVI, Rei, 104-241

M

Marcondes Machado Filho, Min. Alexandre, 149 Max, Herr, 173 Merry del Val y Zulueta, Cardeal Rafael María José Pedro Francisco Borja Domingo Gerardo de la Santísma Trinidad, 161 Metternich, Klemens Wenzel von, 69-128 Mozart, Wolfgang Amadeus, 267

N

Navarro da Costa, Mario, 13 Nicolau II, Czar de todas as Rússias, 60 Nicolau, São, 224

O

Olphé-Galliard, Pe. Michel, 17 Orléans e Bragança e Dobrzensky de Dobrzenicz, Isabel Maria Amélia Luísa Vitória Teresa Joana Miguela Gabriela Rafaela Gonzaga de, Condessa de Paris, 156 Orleans e Bragança, Dom Bertrand, 90 Orleans e Bragança, Dom Luís, 156 Orleans e Bragança, Dom Luiz (Chefe da Casa Imperial), 13 Orleans e Bragança, Dom Pedro Henrique, 156

P

Páris, 203 Paulo, São (Apóstolo), 22-31 Pedro, São (Apóstolo), 180 Pio X, São (Papa), 154-201 Pio XI, Papa, 101 Pio XII, Papa, 101 Proença-a-Velha, Conde de, 13

R

Racas, dep. Antanas, 13 Recchi, Irmã Silvia, 23 Ribeiro dos Santos, Da. Gabriela, 146 Ribeiro dos Santos, Da. Lucilia, 37-48-50-173-182-191-217-278-281-285-286 Ricardo de São Victor, 147

ÍNDICE ONOMÁSTICO 293


Rodrigues dos Santos, Augusto, 148 Roosevelt, Franklin Delano, 249 Rostand, Edmond Eugène Alexis, 131 Royo Marín, Pe. Antonio, OP, 19-20-21-22

S

Saint-Simon, Duque de (Louis de Rouvroy), 198 Schaffer, Carlos Eduardo, 13 Souza Lima, Prof. Lizanias de, 13 Stickler, Cardeal Alfons Maria (SDB), 13

T

Tanquerey, Pe. Adolphe, 19-20-23-176 Teresa de Ávila, Santa, 194 Teresinha, Santa, 143-259-260-289 Toledo y Pimentel, Duque de Alba, Fernando Álvarez de, 266 Tomé, São (Apóstolo), 188 Trochu, Francis, 18

U

Urbano II, Papa, 242

V

Valladares, Emb. Armando, 13 Verdi, Giuseppe Fortunino Francesco, 267 Vitória, Rainha, 154 Von Sigler, Fraülein, 173

W

Wagner, Wilhelm Richard, 83

294

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Índice de Lugares A

Abadia de Aiguebelle, 14 Abadia de São Vitor, 147 Águas da Prata (Minas Gerais), 134-135-136 Alameda Glete, 119-149-151 Alemanha, 67-81-95-100-137-242-244-263 Avenida Angélica, 119

B

Bairro de Santana, 9-86 Bois de Boulogne, 141 Brasil, 34-45-85-86-100-108-111-122-156-201-235-242-283 Bretanha, 68

C

Castelo de Chambord, 37-68 Castelo de Chenonceaux, 67 Cemitério da Consolação, 27 Colégio Caraça (Minas Gerais), 283 Colégio São Luís, 119-160-173-187-223-226-228-248-251-260-261-281-282-286 Congregação Mariana de Santa Cecília, 196 Convento da Luz, 38

D

Dakar, 88 Deserto do Saara, 88

E

Engenho de Uruaé, 120 Êremo do Amparo, 9-96 Êremo Praesto Sum, 9-86-102 Estados Unidos, 235 Europa, 37-44-45-85-88-100-102-122-137-141-156-160-199-208-209-212-231-234-235244-249-262-263

F

Faculdade de Direito (Largo São Francisco-SP), 116 Florença, 46-78 França, 14-47-67-81-95-111-137202-238-243 Friburgo, 54

G

Goiana-PE, 120 ÍNDICE DE LUGARES 295


H

Hollywood, 15-156-228-229-232-237

I

Igreja de Nossa Senhora do Miracolo, 90 Igreja do Coração de Jesus, 38-138-158-163-180-185-190-191-193-201-229-232-246277-283-288 Igrejinha da Glória (RJ), 69

J

Jardim da Luz, 130-131

L

Largo do Boticário (RJ), 69 Largo do Coração de Jesus, 215-216-231-334 Las Vegas, 232

M

Maastricht, 76 Moscou, 60

O

Ordem de Cister, 14

P

Paris, 18-97-141-147 Pernambuco, 286 Poços de Caldas (Minas Gerais), 134 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 13 Portugal, 123-124-238 Praça de São Sulpício, 97

R

Recife, 14 Restaurante Marreiro, 45 Rio Arno, 46 Rio Danúbio, 147 Rio Le Cher, 67 Rio Rubicon, 63 Rio Yang-Tse-Kiang, 63 Roma, 23-29-90 Rottenburg, 51 Rua Barão de Limeira, 119-130-215-234

S

Salvador (Bahia), 69

296

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


São Paulo (SP), 13-14-27-31-92-102-138-150-152-167-194-202-222-226-231-232-235253-262-283 São Petersburgo, 60 São Vicente, 53-213

T

Teatro Guignol-Paris, 141 Teatro Municipal (São Paulo), 202 Teatro Scala de Milão, 268 Templo de Jerusalém, 59 Trapa de Sept-Fons, 14

U

Universidade de São Paulo, 13 Universidade Gregoriana de Roma, 23

V

Vale do Loire, 67 Varennes, 241 Veneza, 78-132-140-158-159 Versailles, 132-142-160-161-198-242 Vladivostok, 43

ÍNDICE DE LUGARES 297


298

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL



300

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL



Articles inside

ÍNDICE DE LUGARES

1min
pages 296-302

ÍNDICE ONOMÁSTICO

3min
pages 292-295

As duas formas de auxílio de Nossa Senhora

3min
pages 290-291

A graça de Nossa Senhora Auxiliadora

17min
pages 281-289

O combate contra a preguiça e o amor crescente à combatividade

43min
pages 257-278

O combate contra a falta de vigilância

4min
pages 255-256

A formação de um primeiro filtro interior, católico e contra-revolucionário, anti-“heresia branca”

18min
pages 243-251

As primeiras noções da própria miséria

3min
pages 253-254

O combate para preservar o modo de ser cerimonioso, fazer-se respeitar e obter uma situação de superioridade

5min
pages 240-242

O combate externo contra a visão prosaica e interesseira da vida e contra o espírito hollywoodiano

31min
pages 224-239

O combate para preservar uma criteriologia inocente e cheia de Fé

9min
pages 219-223

O desenvolvimento do amor pela lógica

9min
pages 206-210

O combate contra a tentação da mediocridade

5min
pages 216-218

A aurora do entusiasmo pela boa ordenação da ordem temporal e pela Cristandade

9min
pages 201-205

O itinerário desde os movimentos incipientes e inconscientes de piedade, até a comunhão frequente

10min
pages 193-197

O amadurecimento do amor pela ordem monárquica do universo

6min
pages 198-200

O pórtico de entrada da vida espiritual de Dr. Plinio: a devoção ao Sagrado Coração de Jesus ensinada por Dona Lucilia

10min
pages 183-187

O crescente amor à Igreja Católica

9min
pages 188-192

Felicidade de situação

12min
pages 172-179

O senso metafísico

7min
pages 149-152

Uma axiologia sã e firme: a ordem do universo é fundamentalmente boa

2min
page 171

Alegria pela harmonia entre a ordem interna e externa e a facilidade para fazer correlações

12min
pages 163-168

Certezas sólidas, filhas da admiração e fundadas nas evidências fornecidas pelos sentidos e na retidão interna da alma

4min
pages 169-170

O senso do sacral

8min
pages 158-161

O “senso do absoluto”

5min
pages 153-155

A vontade de explicitar

2min
page 148

As canduras de uma alma inocente

6min
pages 142-144

Atrativo pela boa ordenação da sociedade temporal e pela cultura

5min
pages 139-141

Amor à arquetipia

4min
pages 132-133

Aspiração pelo mundo angélico e pelos horizontes da Fé

10min
pages 134-138

Trato cerimonioso e cortês

3min
pages 126-127

Solenidade que impõe respeito

3min
pages 128-129

Equilíbrio entre mobilidade e imobilidade

3min
pages 120-121

Modo de escrever: frases longas, papel horizontal e prancheta, sentado numa poltrona

1min
page 119

Senso vivíssimo da própria dignidade

1min
page 110

Gosto em analisar os ambientes

2min
page 106

Gosto pela largueza física e pela bonomia

5min
pages 107-109

Correlação entre o prazer do corpo e o prazer da alma, entre a sede física e a sede metafísica

9min
pages 100-103

O reverso da medalha: incapacidade de elaborar

2min
page 105

Correlação entre o apetite mental e o apetite físico, entre a vontade de saber e a vontade de comer

4min
pages 98-99

Alcance simbólico do paladar

3min
pages 96-97

Alimentos de que se gosta ou se rejeita por razões físicas ou metafísicas

3min
pages 94-95

Predileção pelos pães alemães e pela cerveja

3min
pages 92-93

Preferência pelos alimentos elaborados

3min
pages 90-91

O SENTIDO DO TATO

1min
page 88

O SENTIDO DO OUVIDO

9min
pages 82-86

O SENTIDO DO OLFATO

1min
page 87

Predileção pelo vermelho

3min
pages 80-81

Carência de “nós” temperamentais

1min
page 75

Um reflexo particular da harmonia temperamental: o equilíbrio entre pessimismo e otimismo, entre confiança e desconfiança

7min
pages 71-74

Equilíbrio temperamental resultante da temperança e do gosto pelos opostos harmônicos e pela unidade dentro da variedade

11min
pages 65-70

Propensão para a truculência e para as soluções “transiberianas”

9min
pages 60-64

Propensão para a radicalidade e para a luta

3min
pages 58-59

Propensão para a ordem e para a reverência à autoridade

2min
page 57

Harmonia entre contemplação e ação

3min
pages 55-56

Propensão para a lógica e a clareza de expressão

5min
pages 52-54

Propensão para a reflexão, a seriedade e a gravidade

4min
pages 49-51

Propensão para viver numa clave transcendente, aristocrática e grandiosa

5min
pages 46-48

AO LEITOR

31min
pages 14-29

INTRODUÇÃO

4min
pages 30-33

Propensão para a calma, para o sossego e para degustar a normalidade da vida

6min
pages 42-45

SIGLAS DAS FONTES BIBLIOGRÁFICAS

2min
pages 10-13

Síntese do temperamento nativo

5min
pages 35-37

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL

2min
pages 7-8

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL

1min
page 9

Emotividade sem vibrações

7min
pages 38-41
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